quinta-feira, 30 de junho de 2016

71. Continuação de Diário de um ‘Maluco Beleza’ 

(Capítulos 8 e 9)

Jober Rocha

Capítulo 8
Terça Feira, 11 de março

             Hoje pretendo ir à companhia de águas e esgotos resolver um problema que ocorre não só comigo, mas, também, com meus vizinhos. Trata-se do seguinte: as contas da companhia chegam todos os meses com valores mais elevados, denotando que o consumo ou a tarifa estão aumentando. Entretanto, ocorre um fato bem estranho, tanto em minha casa quanto nas casas dos meus vizinhos, qual seja o de não termos água há vários meses. Nem uma gota do líquido para meu gato preto. 
               Se não é o garrafão de vinte litros que sou obrigado a comprar, mensalmente, eu e ele morreríamos de sede. Já tentei ligar para a companhia por várias vezes, mas, quase sempre, quando atendem e após eu explicar tudo, a ligação cai e a pessoa que atende a nova ligação que faço, já é outra e tenho que explicar tudo de novo. Por vezes, a voz mecânica que atende avisa: comprar figurinhas, digite 1; marcar exame de urina, digite 2; resultado do jogo do bicho, digite 3; condição de trafego nas estradas, digite 4; vôos cancelados, digite 5; preço do tomate, digite 6; segunda via da conta d’água, digite 7. Com as possibilidades de poder acessar o ramal de reclamações já se esgotando, continuo ouvindo: cotação do milho na Bolsa de Chicago, digite 8; preço do farelo de soja em Cingapura, digite 9 e, por fim; para encerrar a ligação, digite 0. Assim, sem conseguir fazer a minha reclamação resolvi ir pessoalmente à companhia de águas e esgotos.
        No trajeto de ônibus até a sede da companhia, pude comprovar que a moléstia cada dia mais se agravava. Agora, além de ir perdendo o contato com a realidade, também estava com distúrbios referentes ao meu sentido de direção.
                  Pela janela do ônibus, notava que as motocicletas andavam todas na contramão de direção. Ora, isto só podia significar que alguma coisa havia alterado meu sentido de direção e que eu estava tendo uma visão distorcida dos quatro pontos cardeais: para mim, agora o norte era sul, o sul era centro-oeste e o leste nordeste. Aquilo me deu uma enorme tristeza, pois, ao invés de melhorar, via que meu estado mental piorava. 
                 Totalmente desanimado me senti, ao contemplar carros em cima das calçadas; pois, aquilo indicava que o meu sentido de posição também estava alterado. Se minha saúde mental estivesse boa, certamente, eu os veria no lugar onde deveriam estar; isto é, nas ruas. Eu notei, também, que devia estar ficando Daltônico (talvez um pequeno tumor no cérebro estivesse comprimindo vasos e nervos oculares). Os veículos passavam com os sinais vermelhos. Ora, os sinais, certamente, deveriam estar verdes; mas, o meu daltonismo os via como se estivessem vermelhos, esta foi a minha triste conclusão.
        Chagando a empresa de águas e esgotos, após aguardar duas horas na fila, finalmente, fui atendido pela funcionária. Depois explicar que na rua de terra onde morava não tinha água, nem esgotos, mas a conta mensal chegava sempre com aumento e que aquela reclamação não era só minha; mas, também, de todos os meus vizinhos, a funcionária consultou seu computador e, fazendo um ar espantado, declarou bem alto para que todos na fila ouvissem: - Mas aqui no computador consta que a sua rua é asfaltada, que possui rede de esgotos e que o abastecimento d’água é normal. O senhor está falando a verdade ou está querendo me enganar para não pagar a conta?
        Notei que todos me olhavam e, na ausência de uma prova material concreta, que demonstrasse claramente que a rua era de terra, que não tinha esgoto e nem água, fiquei sem saber o que dizer. Ela, finalmente, vendo que eu nada respondia, disse: - Vou mandar fazer uma vistoria no local. Se não for encontrado asfalto na rua e nem rede de esgotos, o senhor e seus vizinhos terão de repor tudo; pois, isso indica que retiraram os encanamentos e destruíram o asfalto da rua.
- Esse povo pobre é useiro e vezeiro em roubar e destruir aquilo que o Estado disponibiliza para seu conforto e benefício – arrematou a funcionária indignada, finalizando o meu atendimento e chamando o próximo da fila.
                 Desanimado, segui direto para casa pensando no que diria aos meus vizinhos. Talvez devêssemos começar logo fazendo uma poupança comunitária para poder iniciar as obras de esgoto e asfaltamento da rua, no final do ano seguinte.
            Tendo perdido o dia todo na companhia da águas, finalmente em casa, comi um pedaço de pão e algumas bananas e iniciei a leitura de ‘Loucura e Civilização’, de Michel Foucault, no qual ele registra a transformação dos pontos de vista da sociedade ocidental em direção à doença mental, através dos séculos. A loucura era associada a conotações místicas. Pensava-se que os indivíduos eram abençoados pelos deuses ou que estavam, pelo menos, em contato direto com o Divino. Foucault também sustentava a opinião de que o espírito criativo e o limbo lunático não estavam tão distanciados e que muitos dos ‘lunáticos’ eram, em verdade, visionários e dissidentes sociais, fossem rebeldes dinâmicos ou, simplesmente, almas que marchavam ao som de um tambor diferente.
                    Estando eu passando por uma situação de insanidade mental, posso assegurar que jamais mantive qualquer contato com alguma divindade. Também não me considero um dissidente social; posto que, pauto sempre minha conduta pelas virtudes e pelos bons costumes. Como os tempos e os costumes estão sempre mudando, como já dizia Cícero, ao exclamar “Ó Tempora! Ó Mores!”, imagino que a opinião de Foucault, da qual discordo, seja devida ao momento e aos costumes da época em que ele viveu.
        Assim, lendo aquelas colocações que o filósofo havia deixado para a posteridade através das páginas que escrevera, adormeci sem me dar conta de que o fazia.


Capítulo 9
Quarta Feira, 12 de março


              Acordei com uma sensação de que vivia em um país onde as coisas aconteciam todas ao contrário. Esta sensação me deixou com receio de que estivesse próximo de ter alguma crise psicótica. Uma determinada ideia não me saia da cabeça, mas, imagino que se ela estivesse correta, já teria ocorrido, há muito tempo, a alguns juristas e advogados de renome; inclusive a membros do Ministério Público, do Poder Judiciário, do Legislativo e do Executivo. A ideia que me ocorre é a seguinte:
         Os políticos, em campanha, declaram coisas que jamais pretendem realizar, caracterizando, desta forma, segundo nossas leis, lesões em suas relações com os eleitores; já que pré-existia o dolo, isto é, a intenção de enganar aqueles que neles votaram, em razão de suas falsas promessas. 
                 Os políticos, que recebem altos salários pelo pouco que fazem, são custeados com recursos de impostos pagos pela totalidade da população, aí incluídos os eleitores e os não eleitores, para realizarem serviços do interesse exclusivo dos eleitores; mas, que, eventualmente, também possam interessar aos não eleitores. Creio eu, portanto, que está caracterizada uma relação de consumo entre políticos e eleitores. A plataforma eleitoral, os discursos e os pronunciamentos políticos dos candidatos constituem os contratos, de fato, estipulando os serviços que irão realizar após eleitos. Os votos dos eleitores, que os elegeram, constituem as ordens de pagamento que lhes darão o direito de receber, por quatro ou cinco anos, os vencimentos e vantagens dos cargos ocupados de vereadores, prefeitos, deputados, senadores e presidentes, custeados com recursos públicos oriundos de impostos arrecadados da população, aí incluídos os eleitores.
        Assim, promessa política não cumprida equivale ao não cumprimento das condições contratuais firmadas com os eleitores, antes das eleições, para a realização de determinados serviços constantes da plataforma política do candidato. 
           O Código de Defesa do Consumidor deveria, portanto, ser acionado pelos eleitores insatisfeitos, pleiteando a devolução dos vencimentos e vantagens recebidos pelo político, inadimplente contratualmente com aqueles que nele votaram. Os eleitores compraram um serviço que não foi realizado, cabendo, portanto, o ressarcimento daquilo que pagaram em impostos e que foi direcionado, direta ou indiretamente, para o bolso do político.
        O mesmo ocorre com os fiéis ou crentes. Em suas relações com os sacerdotes, lhes é prometido, constantemente, saúde, fama e fortuna, caso adotem aquela determinada religião ou seita e paguem o dízimo ou um valor correspondente, mensal ou semanal. 
                 Os sacerdotes, quando tudo aquilo que prometeram deixa de acontecer na vida dos fieis, costumam dizer que lhes faltou fé. Ora, embora os sacerdotes desempenhem o simples papel de intermediários entre Aquele que tudo pode e o fiel, que nada pode, eles se apresentam como representantes autorizados do Criador, este sim o prestador final dos serviços pleiteados. Como tal, os sacerdotes também podem ser responsabilizados judicialmente, pelo descumprimento dos termos contratuais pactuados entre eles e os fiéis, através do Código de Defesa do Consumidor, criado para proteger o lado mais fraco das relações de consumo, tanto de bens materiais quanto espirituais. 
                 A religião consiste, portanto, na prestação de serviços de natureza material e espiritual. Muitos fiéis a procuram visando evoluir espiritualmente e muitos a procuram objetivando evoluir materialmente. As religiões oferecem as duas possibilidades e cobram para prestar estes serviços de intermediação. Os templos, igrejas, mesquitas, sinagogas, terreiros, etc. constituem as sedes ou filiais, onde os contratos de prestação de serviços são pactuados. 
               Estes contratos são verbais e se lastreiam, por um lado, naquilo que os sacerdotes prometem, como representantes ou prepostos que afirmam ser do Criador, e, por outro, nos dízimos ou valores equivalentes pagos pelos crentes, mensalmente ou semanalmente, para verem suas demandas atendidas.
              Embora não sejam fixados prazos para a entrega dos serviços materiais contratados, é evidente que o contrato estabelecido com qualquer religião não deva se prolongar por um tempo muito grande, de modo a que o contratante beneficiado possa o receber ainda em vida. 
                    Quanto aos serviços espirituais, creio que possam existir controvérsias. Alguns juristas poderão afirmar que nada cabe a defesa do consumidor fazer; já que, o contratante pactuou por sua livre e espontânea vontade, um contrato de risco com o contratado. Assim, o contratante está pagando por um serviço que só poderá receber após a morte. Se o contratado irá honrar o contrato, prestando realmente o serviço proposto, o contratante só saberá após sua morte e, no caso de eventual inadimplência contratual, só poderá apelar, a partir da sua constatação, para a Justiça Divina. Acho, todavia, que alguns juristas poderão opinar em contrário; pois, através dos depoimentos de médiuns, os parentes do finado poderão se inteirar das condições e do local em que o espírito do falecido está, na dimensão etérea, e, assim, caso ele esteja sofrendo no fogo do inferno, cobrar judicialmente do sacerdote o cumprimento daquilo que prometeu, com danos materiais, morais e, principalmente, espirituais.
        Entretanto, enquanto permanecer vivo em nosso planeta, o fiel que, adimplente com todas as suas mensalidades, após um prazo considerado razoável não obtiver as benesses materiais prometidas pelo sacerdote, deveria poder, sem dúvida, solicitar o amparo do Código de Defesa do Consumidor, para se ver ressarcido de uma parte daquilo que pagou, já que a outra parte se destinava a benefícios espirituais, impossíveis de serem mensurados nesta existência humana e, portanto, não podendo o contratante, ainda em vida, caracterizar a inadimplência do contratado.
         Acredito que os advogados ainda não tenham atentado para as infinitas oportunidades que se descortinam para o mercado no qual atuam (o de promover a justiça entre os homens), com a possibilidade de inclusão das demandas de ordem religiosa e política, no âmbito do Código de Defesa do Consumidor. 
                   Eu diria mesmo que a inclusão destes novos setores ao abrigo do CDC constituiria um novo ‘El Dorado’ para a profissão, a impulsionar o surgimento de novos escritórios e a conduzir milhares de universitários para a carreira do Direito. Muito mais que o comércio, a indústria e os serviços, a política e a religião são os setores que mais violam o Código de Defesa do Consumidor, fazendo com que os contratos, verbais e de fato, firmados para a realização de serviços de cunho político e religioso, sejam, quase sempre, descumpridos pelos contratados e, em sua grande maioria, de uma maneira dolosa.
        Reconheço, no entanto, que a minha maneira de ver esta questão possa estar totalmente distorcida, com respeito a realidade dos fatos. Se nenhum dos famosos juristas e profissionais do Direito, até agora, sequer levantaram esta questão, suponho que a mesma não possua nenhum fundamento jurídico e que seja fruto, tão somente, de minha mente enferma e doentia.
        Encontrando-me, na ocasião, muito deprimido, fiz uma breve refeição constituída por algumas bananas e um pedaço de pão, e passei o resto do dia na cama, lendo ‘Opus Major’, de Roger Bacon. O filósofo propunha três caminhos para adquirir conhecimento: autoridade, razão e experiência; esta, dividida nos reinos do interior e do exterior. A experiência externa era a consciência da realidade física e do mundo dos sentidos. A experiência interna era similar à ‘iluminação’; isto é, um pequeno auxílio de Deus. Reconheço a contribuição que Bacon trouxe à Filosofia, mas, discordo se seus pontos de vista. Não entrarei em detalhes sobre esta discordância, por não ser este o local adequado para tal e o cansaço já estar batendo a minha porta.
        Terminada a leitura, apaguei a luz e caí em profundo sono.

(Continua no dia seguinte – nota do autor)


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