domingo, 5 de junho de 2016

36. Vendendo Gato por Lebre

Jober Rocha*

                   
                    O antigo ditado popular que critica a ‘venda de gato por lebre’, hoje já é tipificado no Direito Brasileiro e considerado pelo Código de Defesa do Consumidor como uma grave lesão às relações de consumo, podendo caracterizar-se como uma lesão enorme (quando o seu fundamento não caracterizaria nenhum vício presumido do consentimento, mas se assentaria na injustiça do contrato em si) ou como uma lesão imensa (quando se fundamentaria no dolo com que se conduziria aquele que do negócio tirava o proveito desarrazoado). A lesão enorme demonstraria, portanto, erro na vontade, objetivo e objeto do contrato. 
                  Assim, esta lesão se caracterizaria quando o consumidor, desejando inicialmente uma coisa, posteriormente, verificaria que aquilo que adquiriu era outra coisa, totalmente diferente daquilo que pretendia obter; já que as características, qualidades e utilidades daquele produto ou serviço que lhe foi entregue, seriam diferentes daquilo que foi apregoado pelo vendedor. A lesão enorme é, pois, praticada quando o fornecedor viola o seu dever de informar, ao consumidor, integralmente, os atos, obrigações, direitos e defeitos do produto ou serviço (mediante informação clara e precisa), omitindo algo para forçar a venda do produto ou a prestação do serviço. 
              Pelo até aqui exposto, os leitores mais perspicazes já terão se questionado: - Mas, então, o Código de Defesa do Consumidor não deveria também ser aplicado nas relações entre os políticos e seus eleitores e nas relações entre os fiéis e os sacerdotes? A nossa opinião é de que deveria, sim, ser aplicado em ambos os casos.
           Os políticos em campanha declaram coisas que jamais pretendem realizar, caracterizando, desta forma, lesões imensas em suas relações com os seus eleitores; já que, pré-existiria o dolo, isto é, a intenção de enganar aqueles que neles votaram em razão de suas falsas promessas. Os políticos, que recebem altos salários pelo pouco que normalmente fazem, são custeados com recursos de impostos pagos pela totalidade da população (aí incluídos os eleitores e os não eleitores), para realizarem serviços do interesse exclusivo dos eleitores, mas que, eventualmente, também possam beneficiar aos não eleitores. Creio, portanto, que estaria caracterizada uma relação de consumo entre políticos e eleitores. 
           A plataforma eleitoral, os discursos e os pronunciamentos políticos dos candidatos constituiriam os contratos, de fato, estipulando os serviços que estes iriam realizar após eleitos. Os votos dos eleitores que os elegeram constituiriam as ordens de pagamento que dariam aos políticos o direito de receber, por quatro ou cinco anos, os vencimentos e vantagens dos cargos ocupados de vereadores, prefeitos, deputados, senadores e presidentes, custeados todos com recursos públicos oriundos de impostos arrecadados da população, aí também incluídos os eleitores destes políticos.
           Desta forma, promessa política não cumprida equivaleria ao não cumprimento das condições contratuais firmadas com os eleitores antes das eleições, para a realização de determinados serviços constantes da plataforma política do candidato. O Código de Defesa do Consumidor deveria, portanto, ser acionado pelos eleitores insatisfeitos pleiteando a devolução dos vencimentos e vantagens recebidos pelo político, inadimplente contratualmente com aqueles que nele votaram. Os eleitores compraram um serviço que não foi realizado, cabendo, portanto, o ressarcimento daquilo que pagaram em impostos e que teria sido direcionado, direta ou indiretamente, para o bolso do político.
            O mesmo ocorreria com os fiéis ou crentes. Em suas relações com os sacerdotes lhes é assegurado, muitas vezes e fielmente, a obtenção de saúde, fama, fortuna e evolução espiritual, caso sigam aquela determinada religião ou seita e paguem o dízimo ou um valor correspondente, mensal ou semanal. Os sacerdotes, quando aquilo que prometeram não acontece na vida do fiel, costumam dizer que lhes faltou a fé. Ora, embora os sacerdotes desempenhem o simples papel de intermediários entre Aquele que tudo pode e o fiel, que nada pode, eles se apresentam como representantes autorizados do Criador, este sim o prestador final dos serviços pleiteados. 
                   Como tal, os sacerdotes também poderiam ser responsabilizados, pelo descumprimento dos termos contratuais, através do Código de Defesa do Consumidor, criado para proteger o lado mais fraco da relação de consumo. A religião consistiria, pois, na prestação de serviços de natureza material e espiritual. Muitos fiéis a procuram visando evoluir espiritualmente e muitos a procuram objetivando evoluir materialmente. As religiões oferecem as duas possibilidades e cobram para prestar estes serviços de intermediação. Os templos, igrejas, mesquitas, sinagogas, terreiros, etc., constituiriam as sedes ou filiais, onde os contratos de prestação de serviços seriam pactuados. Estes contratos são verbais e lastrear-se-iam, por um lado, naquilo que os sacerdotes prometem como representantes ou prepostos, que afirmam ser do Criador e, por outro, nos dízimos ou valores equivalentes pagos pelos fiéis, praticantes, adeptos ou crentes, mensalmente ou semanalmente, para verem suas demandas atendidas.
              Embora não sejam fixados prazos para a entrega ou consecução dos serviços materiais contratados, é evidente que o contrato de fato, com objetivos materiais, estabelecido com qualquer religião, não deva prolongar-se por um tempo muito grande, de modo a que o contratante a ser beneficiado possa recebê-lo ainda em vida. Quanto aos serviços de natureza espiritual, infelizmente, nada caberia no âmbito da defesa do consumidor; já que, o contratante pactuou, por sua livre e espontânea vontade, um contrato de risco com o contratado. Assim, o contratante estaria pagando por um serviço que só poderia receber após a morte. Se o contratado iria honrar o contrato, prestando realmente o serviço proposto, o contratante só saberia após sua morte e, no caso de eventual inadimplência contratual do contratado (o sacerdote), o fiel (contratante) só poderia apelar, a partir da sua constatação, para a Justiça Divina. 
             Entretanto, enquanto permanecesse vivo em nosso planeta, o fiel que, adimplente com todas as suas mensalidades e após um prazo considerado razoável, não obtivesse as benesses materiais prometidas pelo sacerdote, poderia, sem dúvida alguma, solicitar o amparo do Código de Defesa do Consumidor para se ver ressarcido de uma parte daquilo que pagou; já que, a outra parte destinar-se-ia aos benefícios espirituais, impossíveis de serem mensurados nesta existência humana e, portanto, não podendo o contratante, ainda em vida, caracterizar a inadimplência do contratado.
        Acredito que os nossos advogados ainda não tenham atentado para as infinitas oportunidades que se descortinariam para o mercado no qual atuam (o de promover a justiça entre os homens), com a possibilidade de inclusão das demandas de ordem religiosa e política no âmbito do Código de Defesa do Consumidor. Diria mesmo que a inclusão destes novos setores, ao abrigo do CDC, constituiria um novo ‘El Dorado’ para a profissão, a impulsionar o surgimento de novos escritórios e a conduzir milhares de universitários para a carreira do Direito. 
                   Muito mais do que o comércio, a indústria e os serviços, a política e a religião são os setores que mais violam o Código de Defesa do Consumidor, fazendo com que os contratos, verbais e de fato, firmados para a realização de serviços de natureza política e religiosa, sejam, quase sempre, descumpridos pelos contratados e, em sua grande maioria, de uma maneira dolosa. Concorda comigo?


_*/ Economista, M.S. e Doutor pela Universidade de Madrid, Espanha.

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