67. Continuação de Diário de um ‘Maluco Beleza’ (Capítulo 2)
Jober Rocha
Capítulo 2
Terça Feira, 04 de março
Ao acordar esta manhã, ainda trazia viva em minha mente às imagens de um pesadelo que me acometera durante o sono. Sonhara que estava em uma cidade totalmente diferente daquela em que habito. Os prédios eram enormes e em grande quantidade; mas, em que pese tudo isto, as ruas eram vazias de gente e com poucos veículos. Uma placa na calçada, apontando para a direita, dizia: ‘Downtown’.
Caminhando, notei que as ruas eram todas limpas e que os veículos paravam quando alguém colocava os pés na rua. As pessoas, todas bem vestidas, eram educadas e prestativas. Ao passar pela frente de uma loja pude ver como os preços eram reduzidos e os produtos de boa qualidade. Segui caminhando e, aos poucos, fui sendo dominado por um sentimento estranho, não conseguindo discernir bem do que se tratava e do qual não conseguia me livrar.
Ao entrar em uma grande loja de Departamentos, subitamente, me dei conta da razão de minha aflição: - e se eu ficasse preso ali, para sempre? E se não conseguisse mais retornar para o meu bairro de ruas sujas e sem asfalto, com valas negras, com veículos atropelando as crianças e os velhos, com as filas das quais já estava acostumado, com a falta de água encanada, com as casas pichadas por grafiteiros. Ao pensar naquela possibilidade, minha angustia foi crescendo a tal ponto que soltei um terrível grito de desespero, quando subia pela escada rolante. Todos os clientes me olharam com olhares complacentes e tive quase a certeza de que me entendiam e de que compartilhavam de minhas dúvidas e os meus temores.
Desci correndo pela outra escada e ganhei a rua, suando frio e com taquicardia. Como fazer para retornar à minha querida casinha com as paredes descascadas e o muro rachado, no meu adorado bairro e naquele Estado onde me sentia tão feliz?
Sem saber onde me encontrava, mas querendo sair rápido dali, comecei a correr pelas ruas. Vendo uma escada que conduzia para o subsolo, desci a mesma aos pulos. Cheguei a uma plataforma onde, logo em seguida, estacionou um trem cheio de vagões e com alguns poucos passageiros. Pude perceber que tudo era muito limpo e perfumado. Pensei em entrar em um dos vagões, mas me ocorreu que se o fizesse poderia perder-me, para sempre, nas entranhas daquele lugar desconhecido. Em minha mente um único desejo aflorava: voltar para minha casinha empoeirada, naquela rua esburacada, sem iluminação e sem transporte público.
Saindo rápido pelo mesmo caminho que havia feito, pensava: como as pessoas podiam chegar a se sentir felizes em um lugar como aquele? Ao retornar de novo a rua, prossegui em minha sôfrega caminhada, tentando encontrar uma ponte ou um portal, que me levasse ao outro lado daquele pesadelo; isto é, a minha confortável caminha, em meu pequeno quartinho de paredes sujas e mofadas.
Felizmente ou infelizmente tropecei em uma pequena maleta que, ao tombar, abriu-se e deixou a mostra o seu conteúdo, que eram bilhetes de cem dólares, segundo me pareceu, esquecidos dentro daquela maleta aberta na calçada. Ao cair ao solo, senti que batia com a cabeça no meio fio. O choque e a emoção deste acontecimento abriram o portal que me fez despertar daquele pesadelo e me vi, logo em seguida, sentado em minha cama, ofegante e com o coração disparado.
Tão logo me recuperei, abri a janela e constatei aliviado que retornara a minha querida casinha, como já disse, com sua velha pintura descascada e com parte do muro quebrado em razão das últimas chuvas. Poder contemplar as crianças brincando de apanhar camundongos e ratos na vala negra da rua, me trouxe uma felicidade sem par. Finalmente estava em casa, feliz no meu cantinho.
A simples possibilidade de ter de passar o resto dos meus dias naquela terra distante, onde tudo funcionava direito e em plena paz, me causou tanto mal, por não estar acostumado aquilo, que, durante o resto do dia, fiquei recolhido em casa, saboreando o aconchego da pobreza do meu lar e as deficiências da comunidade em que eu vivia.
Quase ao findar o dia e se iniciar o crepúsculo, cochilando em uma pequena poltrona da sala, fui despertado por disparos de fuzil, alguns dos quais perfuraram uma parede da sala, quebraram o lustre e danificaram alguns dos poucos móveis que possuo. Rapidamente me atirei ao solo, como havia aprendido no quartel no tempo em que servira ao Exército.
Ali deitado, ouvi muita gritaria na rua e pude perceber que se tratava de uma disputa entre traficantes locais, pelo ponto de venda de drogas daquela comunidade. Este ponto ficava bem na via principal, ao lado de um pequeno posto policial. Imagino que as autoridades permitiam que ele funcionasse vinte e quatro horas por dia, em razão das propriedades terapêuticas das drogas, notadamente no que se refere a supressão da fome e da dor, comuns em locais onde habitam populações carentes e desnutridas e onde as autoridades ainda não conseguiram implantar seus eficientes e modernos hospitais públicos. No chão, deitado, aos poucos fui sentindo o corpo relaxar e quando dei por mim o sol já estava nascendo novamente no horizonte.
(Continua no dia seguinte – nota do autor)
Nenhum comentário:
Postar um comentário