quinta-feira, 30 de junho de 2016


69. Continuação de Diário de um ‘Maluco Beleza’ 

(Capítulos 5 e 6)

Jober Rocha

Capítulo 5
Sábado, 08 de março

          Às vezes chego a invejar as pessoas da comunidade, que encontro em minhas caminhadas dos fins de semana. Todas alegres, fazendo seus churrascos na laje de suas casas, tomando banho na caixa d’água, vendo TV, jogando bola e brigando na rua. Estou certo de que é a minha enfermidade que não me permite achar nenhuma graça nas piadas pornográficas que contam, nem me divertir da maneira deles, assistindo futebol, vendo novelas e observando, atentos, as preleções dos pastores, como fazem durante os sábados e domingos.
        Nestes dias, após uma longa caminhada, volto para casa, leio os classificados de todos os jornais, buscando comparar preços de imóveis, cotações de veículos, ofertas de emprego, pessoas desaparecidas, animais a venda, etc. Após o almoço, que quase sempre é constituído por um pedaço de pão e algumas bananas, me dedico àquilo que mais gosto de fazer: estudar Filosofia. Passo, assim, o resto da tarde lendo Kant e Espinosa, filósofos estes que muito aprecio, embora sejam pouco profundos em seus ensaios e teses.
        À noite eu faço, normalmente, uma refeição ligeira, quase sempre constituída por um pedaço de pão e algumas bananas. Tomo meus remédios (cerca de oito comprimidos diferentes, de várias cores), visto meu pijama vermelho e me preparo para o sono reparador. Amanhã, domingo, pretendo conhecer a enorme piscina recém construída aqui por perto (já apelidada de ‘piscinão’ em razão do seu descomunal tamanho), destinada a evitar que os membros desta e de outras comunidades próximas, freqüentem, com seus corpos feios e desnutridos, as famosas praias da zona sul da cidade, cheias de turistas nesta época do ano e na proximidade das olimpíadas.
        Assim, tendo deitado cedo e lido alguns capítulos de ‘A Arte da Guerra’, de Sun Tzu, apaguei a luz de cabeceira e fiquei ouvindo, ao longe, os disparos de fuzil trocados entre as várias facções criminosas que comandam o tráfico de drogas nos morros próximos. Fiquei imaginando que Sun Tzu, ao escrever a sua obra entre os anos 400 e 320 a.C., não poderia sequer imaginar que facções criminosas, fortemente armadas, chegariam algum dia a disputar o poder entre elas, nas comunidades locais, e, todas juntas, disputarem-no com as forças policiais do Estado; Estado este, onde as autoridades já teriam lido a sua obra; mas, infelizmente, não saberiam como (ou não desejariam) aplicá-la à nossa realidade.    Aos poucos o sono veio chegando e perdi rapidamente a consciência, penetrando no território do inconsciente. 

Capítulo 6
Domingo, 09 de março

        Acordei cedo, tomei um gole de café, vesti um calção de banho por baixo da calça, como se fosse cueca, passei um pouco de protetor solar, saí de casa e me dirigi ao ponto de ônibus mais próximo; isto é, caminhei por cerca de cinco quilômetros. Os ônibus, ou passavam todos lotados ou não paravam no ponto, mesmo que estivessem vazios. Após quase uma hora, finalmente, consegui embarcar em um deles lotado, que só parou ali porque o motorista queria urinar na vala que margeia a estrada.
        Dentro do ônibus, em pé ao lado de vários idosos, aleijados e portadores de necessidades especiais (isto é, deficientes físicos), contemplei a algazarra produzida pelas crianças e adolescente sentados nos bancos do veículo. Gritavam tão alto que o som incomodava os meus ouvidos. Certamente estavam alegres porque se dirigiam ao ‘piscinão’ com seus pais, naquele domingo de céu azul e de sol quente.
               Finalmente, chegamos. Quase todos os passageiros desembarcaram ali. As crianças, como loucas, correram na frente de seus pais, atirando areia em cima um dos outros e naqueles frequentadores que estavam debaixo de suas barracas. Jogavam água em todo mundo, empurravam as demais crianças menores para o fundo da água, corriam por entre os frequentadores. 
             Seus pais, evidentemente, nada diziam, já que os modernos conceitos de psicologia infantil rezam que as crianças não podem ser tolhidas em suas manifestações de liberdade. Assim, eu me sentei calmamente em um canto e me pus a observar aquele ambiente, para mim uma grande novidade.
             Perto de onde eu estava, sob uma barraca, dois homens se beijavam e acariciavam, sob os olhares de duas meninas pequenas. Imaginei que aquele devia ser um casal que, tendo constituído família, adotara as duas crianças como filhas, conforme prevê e autoriza a nossa legislação.
             Mais a frente, duas mulheres gordas fritavam sardinhas em um fogareiro, enquanto um mulato forte abraçava uma menina de cerca de quinze anos, meio escondidos por umas caixas de cerveja vazias.
          Alguns jovens fumavam pequenos cigarros de maconha, deitados de barriga para cima e soprando a fumaça para dentro de garrafas vazias, fumaça esta que, findo o cigarro, eles tornavam a reaproveitar, aspirando de novo o conteúdo da garrafa. Alguns frequentadores, portando pulseiras e colares de ouro, aspiravam cocaína diretamente do pacotinho de plástico que traziam dentro do calção. Aquele ambiente parecia muito com o que nós tínhamos em nossa própria comunidade; isto é, bastante sujo e  com a polícia totalmente ausente.
             Após algum tempo, resolvi dar uma caída n’água. O cheiro de urina que senti, logo ao entrar naquela água escura, me deixou bastante nauseado. Sai rápido dali e fui andando pela orla, sem destino.
           Mais a frente, uma família almoçava sentada na areia. Eram mais ou menos umas trinta pessoas, entre filhos, netos, primos, sobrinhos, genros, etc. Reparei nos pratos que comiam avidamente, pois, também estava com fome. Pude reconhecer asas, pés e pescoços de galinha, junto ao feijão, ao arroz e a farofa. Um garrafão sem rótulo, com um líquido branco dentro, passava de boca em boca. Os restos do almoço iam direto para dentro d’água, onde eram lavados os pratos e os talheres. As mulheres, todas muito gordas, usavam maiôs do tipo ‘fio dental’ que penetrando em suas carnes, pareciam dividir seus corpos em dois.
                Perto dali, um conjunto musical formado por um tambor, um surdo, um tarol, uma caixa, um cavaquinho, dois pandeiros, um acordeão, um reco-reco, duas cornetas e um trombone, tocavam músicas de pagode e sambas. Algumas mulatas, apenas com a parte de baixo do ‘fio dental’, dançavam na areia, sob os olhares embevecidos de muitos meninos pequenos. Quatro caixas de som se encarregavam de espalhar a música que tocavam, por toda a área do ‘piscinão’ e creio que o som chegava até uma cidade próxima, distante cerca de 20 quilômetros dali onde nos encontrávamos.
               Como tivesse apanhado muito sol e estivesse com fome e sem dinheiro para fazer um lanche, resolvi retornar para casa. Já no ponto do ônibus, ao me dirigir para um coletivo que havia parado bruscamente, fui interceptado por dois menores armados com pistolas que disseram: - Aí Tio, perdeu! Passa logo tudo o que tem!
                Deixei com eles minha sandália havaiana, minha calça, a camisa, o boné, o pente de cabelos e o frasco com protetor solar, pois era apenas o que eu carregava comigo. O motorista, embora violando normas municipais, me conduziu até a minha comunidade apenas de calção.
           Chegando a casa, fiz uma breve refeição constituída por um pedaço de pão e algumas bananas e fui depressa para a cama, onde, sem ler nenhuma página de ‘A Ética a Maneira dos Geômetras’, de Baruch de Espinosa, que eu esperava resumir em cinco linhas naquele domingo, mergulhei em um sono profundo cheio de pesadelos e de temores.


(Continua no dia seguinte – nota do autor)



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