56. O PECADO E O DEMÔNIO
Jober Rocha*
Durante a Batalha de Verdun, na França, uma das principais e mais sangrentas da Primeira Guerra Mundial, na qual as tropas francesas opuseram-se aos exércitos alemães (com baixas de mais de trezentos mil soldados para cada lado), dentro da Fortaleza de Vaux, a segunda a cair durante a guerra, um grupo de soldados franceses ainda sobreviventes, face à proximidade do combate final, reuniu-se durante a noite para discutir sobre o pecado e sobre o demônio, preocupados que estavam com o que lhes poderia advir, caso fossem ceifados pela morte que se avizinhava.
O grupo era formado por vários soldados, diversos sargentos e alguns oficiais, dentre eles o comandante da fortaleza, tido como um militar inteligente e versado em Filosofia.
Aqueles guerreiros, há muito tempo envolvidos com a guerra, já tinham, em sua grande maioria, matado, roubado e cometido todo o tipo de ações consideradas crimes em tempos de paz e heroísmos em tempos de guerra. Na iminência da morte, temiam ver-se face a face com o demônio, em razão destas ações e de eventuais outros pecados menores que houvessem cometido.
A conversa já havia se estendido por algumas horas, quando o comandante da fortaleza instado por seus homens a se pronunciar, disse, acendendo o cachimbo e dirigindo-se à tropa:
“O conceito de pecado, companheiros, indiscutivelmente foi elaborado pela Teologia Cristã. Segundo o cristianismo, o pecado consiste em uma transgressão intencional de um mandamento divino. Não é, portanto, a transgressão de uma norma moral ou jurídica, como aquelas contidas nos nossos regulamentos militares.
De acordo com um dos teólogos do cristianismo, Tomás de Aquino, poder-se-ia definir o pecado pela intencionalidade e todo pecado seria, como tal, um pecado contra Deus. Este conceito permaneceu até o filósofo Kant, que acabou por repeti-lo, ao definir o pecado como a transgressão da lei moral; vista esta como um mandamento divino. O filósofo Kierkegaard também afirmou que o pecado só o é pecado perante Deus e consistiria em ‘buscar desesperadamente a identidade’ ou em ‘fugir desesperadamente para a identidade’; o que significa que consistiria, para aquele filósofo, no desespero de não ter fé.
As discussões filosóficas e teosóficas a respeito do pecado original tiveram como objeto o modo como esse pecado se transmitiu de Adão aos outros homens. Tomás de Aquino analisou duas hipóteses, que vigoravam em sua época, quais sejam:
1. A alma racional transmite-se com o sêmen, de tal modo que de uma alma infecta, pelo pecado, derivam almas infectas;
2. A culpa da alma do primeiro genitor transmite-se à prole, embora a alma não se transmita do mesmo modo, como os defeitos do corpo se transmitem de pai para filho.
Para Tomás de Aquino, ambas as hipóteses pareciam insustentáveis e ele lançou a sua, que afirmava: - ‘Todos os homens nascidos de Adão podem considerar-se um único homem, porquanto têm a mesma natureza, recebida do primeiro genitor, da mesma maneira como nas cidades todos os homens que pertencem à mesma comunidade se julgam um só corpo, e a comunidade inteira é como um único homem’.
Em Kant e em Kierkgaard encontra-se uma interpretação filosófica e, não teológica, para o pecado original. Para eles, o pecado original consistiria, portanto, ‘na perspectiva de uma possibilidade que, como tal, pode implicar a infração a norma moral ou à proibição divina’.
O conceito de pecado, como se pode ver, está intimamente ligado ao conceito de livre-arbítrio.
O filósofo Spinoza, neste sentido, afirmava que ‘só Deus era livre, pois, só ele agiria com base nas leis que criou, sem ser obrigado por ninguém; ao passo que o homem, como qualquer outra coisa, é determinado pela necessidade de sua Natureza Divina e, pode julgar-se livre somente por ignorar as causas de seus desejos e vontades’.
Platão, muito antes, foi o primeiro a enunciar o conceito segundo o qual ‘a liberdade consistiria na ‘justa medida’ e as almas, ‘antes de encarnar, seriam levadas a escolher o modelo de vida a que posteriormente ficariam presas’.
Voltaire, em seu Dicionário Filosófico, afirma que ‘não há uma só palavra referente ao pecado original, seja no Pentateuco, nos Profetas, no Gênesis, nos Evangelhos Apócrifos e Canônicos, seja entre os primeiros padres da igreja’.
A ideia de pecado original teria assim, surgido com Santo Agostinho e com Tomás de Aquino, pensadores da Igreja Católica.
Em seu livro Genealogia da Moral Nietzche afirma que: ‘O pecado tem sua origem no sentimento de culpa, instigado nas massas pelos sacerdotes’. Segundo ele, ‘os sacerdotes ao serem questionados pelos pobres de espírito (os seres mais fracos perante a Natureza), sobre as razões de seus sofrimentos, indicariam, como resposta, que eles deveriam buscá-la em si mesmo, em uma culpa anterior e que deveriam entender o seu sofrimento como uma punição’. Assim o doente foi transformado em pecador e, para expiar seus pecados, tem que viver atrelado ao sacerdote, pois só ele poderá levá-los ao reino dos céus, onde se livrarão de todos os sofrimentos.
Em outro livro, O Anticristo, Nietzche condena o cristianismo pelos meios que utiliza; entre eles, o aviltamento e a auto-violação do homem por meio do conceito de pecado. Segundo ele, para dominar a massa é necessário fazê-la infeliz, criando os conceitos de pecado, de culpa e de castigo. Assim, o homem deve sofrer de modo a que sempre tenha a necessidade do sacerdote. Desta forma, por meio da invenção do pecado é que o sacerdote dominaria".
Tendo o vento gelado que soprava, apagado a brasa do seu cachimbo, o comandante tornou a acendê-lo e continuou com sua explanação:
"No que respeita ao Demônio, ao longo da existência humana, o medo ante os fenômenos da natureza, até então inexplicáveis, fez com que o homem, para satisfazer seu raciocínio embrionário atribuísse tais fenômenos à potencias boas ou más, segundo os efeitos verificados dos fenômenos que o amedrontavam.
Assim, no decorrer da história humana, os povos criaram seus Demônios, que poderiam ser bons ou maus, já que a palavra grega ‘daimon’ significava gênio ou espírito, indistintamente bom ou mau.
Os Persas, no Zend-Avesta, criaram ‘Ormuz’ (Deus Bom ou do Bem), que criou o primeiro homem e a primeira mulher e que, por culpa de ‘Arhiman’ (Deus Mau ou do Mal), foram expulsos do jardim onde viviam.
Os Vedas afirmavam, segundo o Brahmanismo, que ‘Brahma’ (Deus Bom), criou o primeiro homem (Adima) e a primeira mulher (Heva) e que ‘Mohassura’ (Deus Mau) levantou-os contra o criador, tendo sido expulsos do local em que viviam pelo Deus ‘Siva’.
Os Fenícios e os Assírios tinham, também, seus deuses do mal, como, por exemplo, ‘Baal-Zebud’ (que originou o Belzebu moderno) e ‘Astaroth’, assim como os Egípcios e os Gregos possuíam o seu ‘Typhon’ e o seu ‘Python’.
Os Judeus em seu ‘Sabbat’ rendiam culto ao bode, que sacrificavam como um ‘bode expiatório’ (já que, ao sacrificá-lo, expiavam todo o mal da comunidade) e que, ainda hoje, se conserva na representação do Demônio que pintam com pés e chifres caprinos.
A ideia do Demônio entre os Hebreus não é, portanto, original; posto que, foi tomada emprestada dos Persas, dos Caldeus, dos Semitas e de outros povos antigos; até porque, antes do seu cativeiro pelos Persas, na Babilônia, os Hebreus não possuíam a doutrina da imortalidade da alma.
Embora Jesus tenha mencionado o Demônio como uma representação simbólica do mal (haja vista que chamou o apóstolo Pedro de Satanás, ao exclamar: - ‘Vai para trás de mim, Satanás! Tu estás sendo para mim como uma pedra de tropeço, pois tu não tens em mente as coisas de Deus, e sim a dos homens’! - Matheus, XVI, 23.), a Igreja Católica, através dos seus pensadores posteriores, desvirtuou tal ensinamento.
Os primeiros cristãos, a partir de Jesus, não acreditavam nesse tipo de céu e inferno, como um lugar para onde suas almas iriam quando morressem. Essa é uma invenção cristã, bem posterior a Cristo.
Assim, a doutrina que trata da existência do Demônio colide, por principio, com a da existência de Deus. Efetivamente, a luz da Filosofia, Deus e o Demônio são potencias mutuamente excludentes; isto é, que não podem existir simultaneamente. As relações mútuas a que se obrigaram, implicariam a destruição de um dos dois.
Esta incompatibilidade pode ser formulada através dos seguintes argumentos, segundo li em algum lugar:
1. Se Deus é o criador de tudo o que existe, deve ter sido, também, o criador do Demônio (ou pai do Demônio). Se o Demônio é criação de Deus (ou filho de Deus), indiscutivelmente, antes de ser criado estaria em Deus, participando de sua essência; o que impõe a conclusão de que Deus, o Eterno Bem, tenha em si a essência do Eterno Mal;
2. Se o Demônio não foi criado por Deus, então, existe alguma coisa que Deus não criou e que, ou foi criada por si mesma (o que a torna igual a Deus) ou deve a sua criação a outrem, o que ainda força a existência de um Deus anterior (caso em que se estabelece uma dualidade divina).
Contra a criação do Demônio por Deus, há, ainda, os seguintes raciocínios:
1. Deus seria incoerente porque conhecendo, pela sua onisciência, o futuro de todas as criaturas, teria criado uma delas voltada, exclusivamente, para combater a sua obra;
2. A doutrina católica de que Deus, antes de criar o universo da matéria, criou o mundo dos espíritos (destinados todos a louvarem, servirem e glorificarem seu Criador), impõe a seguinte conclusão: Se Deus precisa que o louvem, sirvam e glorifiquem, logicamente, é por que lhe falta alguma coisa, porque não tem em si tudo. Não há dúvida de que um Deus assim não é completo e, sendo incompleto, é imperfeito;
3. No Capítulo XXI, v.27 do Apocalipse, encontra-se: ‘Nada de profano nem ninguém que pratique abominações e mentiras entrará no céu, mas, unicamente, aqueles cujos nomes estão inscritos no livro de vida do Cordeiro’. No Capítulo XII, v 7, 8 e 9, o Apocalipse se contradiz, ao afirmar que ‘Houve uma batalha no céu e Satanás, o Demônio, foi precipitado na terra com seus anjos’. Assim, o Demônio, por ser um contaminado da maldade desde o principio (Primeira Epistola, João, III, 8) não podia estar no céu, para dele ser precipitado.
Consequentemente, meus companheiros, a estória do Demônio é falsa e, como Satanás não existe, não existe também o inferno, que consiste em outra alegoria oriunda de antigas crenças. Antes de a Bíblia registrá-lo, já existia nas mitologias Persa, Indiana, Egípcia, Gaulesa, etc.
Do que eu acabei de expor, conclui-se que tanto o pecado quanto o Demônio, bem como o inferno, constituem alegorias, já mencionadas por várias religiões que precederam o cristianismo. Tais alegorias fazem parte do universo interior de todos aqueles seres humanos que, iluminados pela verdade, defrontam-se, nesta ou em outra existência, com o fantasma do remorso, em face de crimes ou maldades que, eventualmente, praticaram".
Tendo finalizado sua exposição o comandante perguntou se alguém desejava fazer alguma pergunta.
Antes que qualquer um pudesse se manifestar, uma chuva de granadas alemãs caiu sobre a fortaleza, fazendo com que todos se abrigassem.
Os militares, tendo ouvido as palavras do comandante, pensaram consigo mesmo: - “Ainda bem que não existe o Demônio e tudo aquilo que fiz não era pecado. Se conseguir sair vivo desta fortaleza eu farei, novamente, tudo aquilo que já fiz; mas, agora, em dose dupla...”
O comandante, tornando a acender o seu cachimbo, pensou: - “Ainda bem que eles perderam o medo da morte com esta minha explanação, e irão resistir até o último homem, pela honra do nosso Exército. Com certeza, nenhum de nós sairá vivo desta fortaleza e tornaremos a nos encontrar juntos, novamente; mas, desta vez, nas profundezas do inferno...”
_*/ Economista, M.S. e Doutor pela Universidade de Madrid, Espanha.
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