27. Contradições Incoerentes ou Verdades Incontroversas?
Jober Rocha*
Costuma-se dizer que existe contradição quando se afirma e se nega, simultaneamente, algo sobre a mesma coisa. O Princípio da Contradição nos diz que duas proposições contraditórias não podem ser ambas falsas ou ambas verdadeiras, ao mesmo tempo. Existe, assim, uma relação de simetria; pois, ambas não podem ter o mesmo valor de verdade. Ocorre, portanto, uma contradição, quando uma afirmação é falsa e a outra é verdadeira. Se forem ambas verdadeiras ou falsas, não existirá, neste caso, contradição.
Pode ocorrer, no entanto, da contradição ser apenas aparente e, em razão da sua eventual incoerência (não detectável a primeira vista, mas somente após ser analisada em profundidade), vir a se constituir em uma verdade incontestável.
Esta pequena introdução tem por objetivo, simplesmente, o de indicar aos estimados leitores aonde quero chegar: as contradições, que afirmam e negam a mesma coisa, podem, eventualmente, ou serem verdades ou se tratarem de mentiras incontroversas. Explico-me melhor, através de um exemplo prático: grande parte dos seres humanos acredita possuir duas características, a animal e a espiritual; ou seja, um corpo e uma alma (espírito quando encarnado). Sabemos também que, segundo a Religião, estas características se opõem; isto é, quanto mais evoluído espiritualmente o ser humano (mais virtuoso, ou seja, bom, generoso, pacífico, caridoso, etc.), menos devem prevalecer sobre ele seus instintos animais (viciosos em certa medida, ou seja, gula, raiva, egoísmo, concupiscência, etc.). Tanto é assim que os monges e sacerdotes, que se dedicam a evolução espiritual, vivem em conventos e mosteiros isolados, celibatários, alimentando-se frugalmente, mortificando-se e meditando para vencer seus desejos e impulsos animais, sintetizados no Ego. Nota-se, com isto, que, perante as Religiões, existe uma clara oposição entre a evolução espiritual e a prevalência dos instintos animais e dos desejos materiais, isto é, aqueles sentimentos típicos do Ego.
Um óbvio exemplo de contradição, neste caso, consistiria no fato de ser possível ao ser humano evoluir espiritualmente mantendo vivos, ou mesmo expandindo, os desejos do seu Ego. Por Ego entendemos o Eu de cada um; isto é, o defensor da sua personalidade e dos seus interesses materiais intrínsecos. A principal função do Ego seria, pois, a de procurar harmonizar os desejos e a realidade; ou seja, conciliá-los com as exigências e os valores da sociedade. Seria, assim, a parte da psique que teria como funções a regulação das tendências instintivas (animais) e a comprovação da realidade. O Budismo e o Hinduísmo, por exemplo, pretendem, através da meditação, obter a eliminação do Ego, pois, este, mantendo o ser humano preso às coisas materiais e mundanas, dificultaria a evolução espiritual; já que, impediria a alma de integrar-se ao Todo Espiritual e fazer parte de uma Comunhão Universal.
A Evolução, qualquer que seja ela, ocorre sempre dialeticamente. A tese e a antítese, ao conflitarem, provocam a síntese, que já não é mais nem uma nem a outra, porém transformou-se em uma evolução das duas. O eterno conflito entre Vícios e Virtudes, comum aos seres inteligentes encarnados, faz parte do Processo Dialético de Evolução. É da oposição entre ambos que sintetizamos a nossa evolução espiritual. Com a eliminação do Ego, cessando os desejos materiais, a oposição entre vícios e virtudes acaba e teremos, então, atingido ao chamado Nirvana (estado que os Budistas consideram como de libertação suprema, obtido com a extinção dos desejos, da aversão e da ignorância, que conduziria à libertação de todo o sofrimento). Ao atingirmos este estado, seriamos espíritos iluminados, totalmente evoluídos segundo a interpretação budista.
A meu juízo, a única razão pela qual o Criador não necessitaria mais evoluir é a de que Ele nunca possuiu contradições; isto é, seria detentor apenas de virtudes (qualidades), não possuindo vícios (defeitos). Portanto, o processo dialético, válido para a evolução das criaturas, não atingiria o Criador, que não necessitaria evoluir.
Assim, a contradição mencionada anteriormente (evoluir espiritualmente mantendo vivos ou mesmo expandindo os desejos do Ego) pode constituir, no entanto, uma verdade incontroversa. A explicação para tão controversa afirmação é apresentada a continuação: Segundo o Cristianismo, em conformidade com o Livro do Gênesis (I-28), Deus, após a criação do homem e da mulher e abençoando-os, teria dito: - “Sejam férteis e multipliquem-se. Encham e subjuguem a Terra. Dominem sobre os peixes do mar, sobre as aves do céu e sobre todos os animais que se movam na Terra”!
Ora, os espíritos inteligentes e racionais, em conformidade com o que pregam as religiões, encarnam para proporcionar a possibilidade de suas almas evoluírem naquela existência. A existência humana, muito mais do que colaborativa (como, talvez, já possa ter sido em passado remoto), é, na atualidade, concorrencial (os indivíduos concorrem entre si pelos alimentos, pela água, pelos empregos, pelas riquezas ou bens, pelo conhecimento, pela educação, etc. etc. etc.). Tanto é assim que, ao nascer, já trazemos em nosso Ser interior (caráter) os Vícios e as Virtudes que nos permitirão sobreviver e evoluir, dialeticamente, em um planeta inóspito onde os conflitos de interesses são a tônica. Com certeza tudo isto foi antecipadamente pensado e planejado pelo Criador, para que pudéssemos sobreviver às adversidades e aos conflitos humanos e, ainda assim, evoluir espiritualmente.
Individualmente, no mundo atual, os seres humanos podem pautar suas vidas por comportamentos ascéticos que os conduzam a uma rápida evolução espiritual; entretanto, coletivamente isto não é possível. A perpetuação de nossa espécie, a sua conservação e a sua expansão, sempre dependeram, na prática, do espírito empreendedor e de conquista de nossos antepassados, já mencionado anteriormente em Gênesis (I-28) (independentemente de aquela suposta afirmação do Criador ser ou não verdadeira). Este espírito, traduzido na mensagem “Sejam férteis e multipliquem-se. Encham e subjuguem a Terra. Dominem sobre os peixes do mar, sobre as aves do céu e sobre todos os animais que se movam na Terra!”, bem demonstra, da parte de quem escreveu aquele texto, que seria necessária a satisfação dos desejos do Ego, em grande escala, para que a civilização humana pudesse se expandir, progredir e evoluir.
O Sistema Capitalista, que na atualidade domina a maior parcela dos países do planeta e que tem sido responsável pelo crescimento de suas economias, é baseado no consumo desenfreado. Os países Socialistas e Comunistas, que constituem a outra parcela, também desejam consumir cada vez mais. Este consumo nada mais é do que a subordinação, pela coletividade, dos valores espirituais aos valores materiais. Entretanto, é esta subordinação coletiva que permite ao ser humano poder se dedicar, individualmente, aos aspectos espirituais da existência. Traduzindo: os monges e religiosos em geral (bem como seus templos, mesquitas, igrejas e sinagogas), vivem de esmolas e de doações que arrecadam das suas comunidades, e essas comunidades só podem contribuir para a manutenção e a expansão das religiões na medida em que produzam, consumam e aufiram renda, cada vez em maior quantidade.
Constata-se, assim, que a evolução espiritual dos indivíduos pode ser coerente com a satisfação dos desejos do Ego coletivo (sem nenhuma contradição), pois é esta que possibilita, em grande parte, aquela.
A evolução espiritual obtida através das vias religiosa, filosófica e científica, por outro lado, depende também do conhecimento adquirido pelos indivíduos. Para adquirir conhecimento, principalmente nos países capitalistas ocidentais, recursos financeiros se fazem necessários (boas escolas, bons livros, materiais didáticos, recursos de informática, etc.). Assim, o dinheiro que constitui o símbolo máximo do materialismo é requerido, quase sempre, para que se alcance a almejada evolução espiritual. Observe meu caro leitor, como todas as religiões são ávidas por ele...
_*/ Economista, M.S. e Doutor pela Universidade de Madrid, Espanha.
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