quinta-feira, 30 de junho de 2016

70. Continuação de Diário de um ‘Maluco Beleza’ (Capítulo 7)

Jober Rocha


Capítulo 7
Segunda Feira, 10 de março


            Em dezembro do ano passado havia ligado para o meu médico psiquiatra, do plano de saúde, tentando marcar uma consulta de avaliação do tratamento fármaco químico que me receitara. Pretendia também obter nova receita, pois alguns dos medicamentos que ingeria diariamente estavam para terminar. Naquela ocasião só havia horário vago para Segunda Feira, dia 10 de março do ano seguinte. Hoje, portanto, acordei bem disposto e preparado para ir ao centro da cidade, onde ficava o consultório do psiquiatra que já me atendia há alguns anos. 
                 Aproveitaria, também, a ocasião, para lhe mostrar o diário que, por sugestão dele, eu vinha elaborando há alguns dias. Tive que fazer a caminhada de cinco quilômetros, da minha casa até o ponto do ônibus, viajar de pé no coletivo durante todo o trajeto até o centro da cidade e caminhar algumas quadras até o edifício onde estava situado o consultório. Esta última parte, eu reputo como a mais difícil e trabalhosa, pois, parecia uma verdadeira pista de obstáculos. 
                  Tive que ultrapassar inúmeras barracas de camelô, todas coladas umas as outras; saltar por cima de vários caixotes empilhados na calçada; passar por debaixo de andaimes de obras com pedras e cimento caindo lá de cima; pisar em excrementos de cachorros; contornar latas de lixo sem tampa, de onde saiam cheiros fétidos e ratazanas já saciadas; em suma, após este último trecho necessitei parar alguns minutos para descansar um pouco, antes de subir as escadas do edifício, pois os dois elevadores do prédio não funcionavam. O zelador, tirando um palito da boca, afirmou, com ar autoritário: - Tem que ser de escada mesmo, pois hoje é o dia da manutenção dos dois elevadores!
        Meia hora depois toquei a campainha da sala do médico, no décimo segundo andar. Ao me observar, arfando e suado, ele disse em tom professoral: - Vejo que está se excedendo na comida e na bebida e não tem tomado os remédios que lhe passei!
           Passando para o interior do seu consultório, expliquei o motivo da consulta. Ele redigiu rapidamente e com letra ininteligível uma nova receita, e estendeu a mão para se despedir; ocasião esta que aproveitei para lhe falar do diário, que vinha elaborando a pedido dele.
              Percebi a sua cara de enfado, quando lhe apresentei os manuscritos que havia redigido com letra tão caprichada. Após alguns minutos de leitura, virando-se para mim, disse: - Me devolva a receita, pois vou aumentar a dose e incluir alguns outros medicamentos novos!
            Ao lhe perguntar sobre o que achara daquele diário, ele respondeu, me olhando diretamente nos olhos: - Meu caro, eu noto que você está piorando. Sua percepção da realidade está completamente destorcida. Onde já se viu coisas do tipo destas que você vem relatando em seu diário. Só mesmo uma mente doentia poderia imaginar cenas tão trágicas, tão sem sentido, tão desvinculadas da realidade. Vou copiar estas páginas e mostrá-las para alguns colegas de profissão. Faremos uma junta médica sobre o seu caso; pois, talvez, ele seja bem mais grave do que eu supunha. Acho que redigirei uma nota para a Sociedade de Psiquiatria e enviarei um resumo do seu caso, com o diagnóstico e a medicação que prescrevi, para a ‘American Society of Psychiatry, Viticulture and Enology’.
- Pode ser até que, muito em breve, nós fiquemos famosos!- exclamou ele, me entregando os originais do diário, que já havia copiado em sua impressora, me apertando a mão e me conduzindo para a porta.
              Na saída, ainda disse: - Tome cuidado para que não lhe aconteça nada; pois, talvez, eu tenha que o levar em breve ao exterior, para apresentar seu caso como minha tese de doutorado em uma universidade norte americana! Você poderá se tornar conhecido no meio científico; pense bem nisto!
              No caminho de volta para casa, em pé na parte de trás do ônibus, meditava sobre tudo aquilo que ele havia dito. De que me valia possuir fama e fortuna, quando a minha percepção da realidade estava sendo distorcida, cada vez mais, a cada dia que passava? Eu queria era ficar curado, ser igual a todo mundo, achar graça e prazer nas mesmas coisas que todos achavam; encarar os meus dias da mesma forma que os demais encaravam os seus; isto é, com confiança e esperança. Mas qual, com a moléstia que aos poucos me consumia, era totalmente impossível alcançar este objetivo.
             Tão absorvido estava em meus terríveis pensamentos que somente percebi que o ônibus estava sendo assaltado, quando um indivíduo baixo e atarracado me encostou o cano do revolver na barriga e disse baixinho: - Tira tudo e põe nesta sacola! 
             Mais uma vez cheguei a casa apenas de cueca. Os vizinhos novamente me olharam de soslaio, desconfiados pelos trajes e pela hora em que estavam se acostumando a me ver chegar.
        Como eu havia passado o dia todo nessa faina de consulta médica e de compra dos medicamentos novos e antigos, cheguei bastante esfomeado. Preparei, então, suculenta refeição constituída de um pedaço de pão e algumas bananas, tomei um delicioso copo d’água e me recostei em uma poltrona para desvendar os segredos do ‘Discurso sobre a Origem e o Estabelecimento da Desigualdade entre os Homens’, de Jean-Jacques Rousseau.
             Pouco tempo depois, bateram a minha porta. Parei a leitura e fui me inteirar de quem era. Tratava-se de alguns pastores de determinada seita, que me ofereciam um pacto com Deus: eu autorizaria desconto mensal em folha de pagamento, por 24 meses e, ao fim deste período, eles garantiam que eu teria carro novo, casa nova, empresa em Miami, lancha e uma conta bancária para nunca mais me preocupar em economizar energia elétrica, comprar no crediário e contar tostões. 
               Achei muita facilidade naquilo tudo e, por isto, não aceitei de imediato. Disse que ia pensar e que passassem outro dia. Eu achei que aquilo era um conto do vigário; mas, tendo em conta que a minha percepção é distorcida em razão da minha enfermidade, achei melhor pensar um pouco mais, embora eles tenham dito que o prazo que Deus havia dado para a assinatura do pacto era até o dia seguinte, ao meio dia. Procurei me informar com os vizinhos e parece que na comunidade todos  os moradores haviam assinado o tal pacto. Ainda acho que aquilo é um estelionato religioso, mas, às vezes, tenho muitas dúvidas com relação ao meu modo de ver as coisas.
               Voltando para a cama, terminei a leitura que fazia de Rousseau.  Concordo com ele quando afirmou que os povos primitivos eram superiores às sociedades civilizadas, em todos os sentidos. Passei, em seguida, a ler ‘Do Contrato Social’, do mesmo autor, citado várias vezes por um nosso ex-presidente em seus pronunciamentos para as massas trabalhadoras e sindicalistas. 
            Do contrato social, de Rousseau, a mim, me pareceu um modelo para a implantação de um Estado Totalitário, modelo este desenvolvido por ele muitos anos antes do nascimento de Karl Marx e de que este tivesse trazido ao público a sua obra ‘O Capital’; entretanto, como o ex-presidente era aplaudido por uma boa parcela da população (de acordo com pesquisas de organizações que realizam consultas de opinião pública e que vendiam essas pesquisas para o governo, por altos preços), imagino que a maneira como eu vejo a questão, em razão do agravamento da moléstia que me acomete, deva estar totalmente errada e o ex-presidente e aqueles que o seguem devam estar absolutamente corretos em suas observações sobre a matéria.
          Finalmente, apaguei a luz, fechei os olhos e, aos poucos, minha mente foi se esvaziando e adormeci, preparando-me para um novo dia.

(Continua no dia seguinte – nota do autor)


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