68. Continuação de Diário de um ‘Maluco Beleza’
(Capítulos 3 e 4)
Jober Rocha
Capítulo 3
Quinta Feira, 06 de março
Conforme eu havia relatado na página anterior, referente ao dia cinco de março, nesta manhã acordei sentindo ainda aquela forte dor no peito que me acometera na véspera. Pensando que poderia se tratar de algum mal cardíaco, resolvi ir me consultar no posto de saúde da comunidade.
Ali chegando, notei que a fila dava voltas no prédio. Mães com crianças no colo sentadas no chão da rua, velhos deitados pelos cantos ou sentados em caixotes de madeira e latas de tinta vazias. Aguardei, pacientemente, por cerca de cinco horas, até que chegasse a minha vez. O médico que me atendeu era Dermatologista e, sem sequer tocar em mim, me receitou uma pomada de cortisona para que passasse entre os dedos do pé, após o banho.
Com respeito à dor no peito, que eu havia relatado, disse que aquilo era fruto da minha imaginação, pois sabia que eu era paciente psiquiátrico de colega seu e que também era dado a ter surtos de hipocondria. Ele me mandou sair da sua sala e chamou o próximo da fila.
Voltei para casa pensando em como a Medicina evoluíra nestes últimos anos. Os médicos atuais já não mais necessitavam auscultar os seus pacientes, como faziam os de antigamente. Bastava olhar para eles e, rapidamente, formulavam seus diagnósticos. Eu não havia permanecido no gabinete dele por mais do que cinco minutos e já saíra dali com o diagnóstico pronto e com uma receita nas mãos.
Como tomo muitos medicamentos fortes, que atuam no cérebro, acredito que a dor que sentia e que ainda sinto, seja realmente fruto de minha imaginação como bem disse o doutor, embora falando este em uma língua que me pareceu uma mistura de português e de espanhol, da qual apenas entendi algumas palavras.
Ao retornar para casa, notei uma pequena aglomeração de pessoas em um cruzamento e me aproximei para observar do que se tratava. Era um candidato a vereador, que prometia urbanizar o bairro construindo pontes, viadutos, escolas, esgotos, linha de metrô, aeroporto internacional, edifícios residenciais, etc. Enquanto ele falava para aquele povo, algumas pessoas batiam palmas e gritavam: - Muito bem! Apoiado!
No final da sua preleção, ele disse que apenas poderia fazer tudo aquilo se a comunidade inteira votasse nele. Todos prometeram que ele teria quantos votos precisasse daquela comunidade.
Em casa, à noite, já me preparando para dormir, ao coçar a cabeça de um gato preto que me acompanha há muitos anos, me lembrei de que não cabia aos vereadores fazerem obras, mas, sim, aos prefeitos. Acho que eu era o único que tinha aquela informação no local, mas, pode ser que estivesse enganado, principalmente, porque os médicos não cansam de afirmar que minha percepção da realidade é prejudicada pela enfermidade que possuo.
Já deitado, quase não conseguia prestar atenção no texto que lia de ‘Critica da Razão Pura’, de Immanuel Kant, na parte em que ele discorria sobre o Imperativo categórico. A dor que ainda sentia no peito, fazia com que suasse frio, mesmo debaixo das cobertas. Aos poucos, fui perdendo a consciência e penetrando nas profundezas do sono...
Capítulo 4
Sexta Feira, 07 de março
Hoje, finalmente, decidi procurar um pedreiro para consertar o muro que caiu durante as últimas chuvas, ocasião em que a comunidade toda foi alagada pelas águas do pequeno riacho, chamado Urubu, que corta a localidade e que cheio de lixo jogado pelos moradores acabou assoreado, entupindo e extravasando, alagando tudo.
Eu me lembro bem deste dia, pois as ratazanas sem ter para onde ir, já que suas tocas haviam sido alagadas, subiram nos muros e nos telhados das casas, de onde ficaram observando os moradores em suas atividades diárias.
Decidido, pois, a consertar o muro, passei toda a manhã percorrendo as ruas da comunidade a procura de um pedreiro. Infelizmente, embora encontrasse muitos espalhados pelos bares, bebendo, não consegui encontrar nenhum que quisesse fazer o serviço. Todos alegavam que agora eram funcionários do governo; isto é, recebiam uma determinada Bolsa (como os estudantes estagiários em organismos públicos), para a família toda. Assim, não poderiam trabalhar na iniciativa privada, já que eram bolsistas do poder público.
Desanimado, voltei para casa pensando em fazer, eu mesmo, aquele serviço ou em me cadastrar também como bolsista do Estado; entretanto, fui informado de que para ser bolsista era necessário possuir família e eu, infelizmente, morava sozinho.
Se tivesse algum filho presidiário, eu poderia receber, além da minha bolsa, também o salário reclusão, dele por direito. Com uma filha prostituta, eu poderia, ainda, receber o auxílio de quase dois salários mínimos, referente a este direito dela, aprovado por lei. Esse auxílio, segundo entendo, deve ser considerado como um subsídio, pois não as obriga a deixar a profissão que praticam. Assim, além deste subsídio, elas ainda ganhariam aquilo que cobram dos seus clientes. Ora, os subsídios concedidos pelos governos têm por objetivo incentivar o desenvolvimento daquelas atividades ou setores para os quais eles são concedidos e, desta forma, fico imaginando que o governo do nosso país tem por objetivo estimular a prostituição.
Somando-se isto tudo ao auxílio natalidade, de direito da esposa grávida, e ao auxílio desemprego para aquele que o perdeu; além do auxílio gás e da possibilidade de matricular os filhos de graça, aprovados automaticamente através dos regimes de quotas nas escolas e universidades públicas; tomando o café da manhã, almoçando e jantando no restaurante público a um real por refeição, muitos moradores daquela comunidade possuíam renda real mensal da ordem seis a sete mil reais, conforme fiquei sabendo. Só não sei quem está, na realidade, custeando tantos benefícios; pois, ao que eu saiba, o governo não produz dinheiro, mas, apenas, arrecada este, através de impostos, daqueles que produzem bens e serviços. Alguém deve estar muito revoltado por ter que pagar esta conta e nem aparecer como o benfeitor de tantas prodigalidades. Pode ser, também, que o meu entendimento sobre esses assuntos esteja totalmente errado, em razão de um raciocínio falho decorrente da ingestão dos fortes medicamentos de uso controlado, de que faço uso diariamente, ou da própria progressão da enfermidade que me acomete.
Tendo passado todo o dia preparando massa de cimento e assentando tijolos, a noite estava todo dolorido e apenas consegui ler alguns capítulos de ‘O Mundo como Vontade e Representação’, de Arthur Schopenhauer, pegando logo no sono.
(Continua no dia seguinte – nota do autor)
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