quarta-feira, 29 de junho de 2016

66. Diário de um ‘Maluco Beleza’ 

(Prefácio e Capítulo 1)

Jober Rocha*

Prefácio

                     Caro amigo leitor, tendo adquirido há alguns meses uma modesta casinha situada em distante subúrbio da cidade, ao dar início a algumas obras, necessárias para torná-la humanamente habitável, me deparei com um velho armário de madeira, abandonado em um vão de escada. Ao retirar o armário, para depositá-lo em um terreno baldio transformado em lixão pelos moradores da comunidade, percebi que dele havia caído um grosso caderno com capa de couro, envelhecido pelo tempo e com algumas páginas meio carcomidas pelos cupins, muito comuns aqui nesta região.
              Folheando o caderno mais tarde, embora ele não mencionasse nenhum nome próprio, constatei que se tratava de um diário elaborado por algum antigo morador daquela humilde residência, que eu havia adquirido em leilão por um preço bastante acessível ao meu reduzido salário de professor. Lendo o diário, verifiquei que o seu autor parecia ser alguém acometido de grave e rara enfermidade mental, reconhecida por ele mesmo em seu diário. Tendo eu achado as suas páginas bastante interessantes, demonstrando o elevado estágio de sua moléstia (quando já não dizia coisa com coisa e só escrevia disparates), achei por bem transcrever tudo o que eu havia lido (evidentemente, corrigindo erros gritantes de gramática que, como professor emérito que sou da nossa língua, eu encontrei em todas aquelas páginas), fazendo antes este prefácio; não só por possuir, volto a dizer como professor emérito de Língua Portuguesa, certa veia literária e gostar de escrever prólogos; mas, sobretudo, para que os leitores se dessem conta de como uma enfermidade mental pode afastar o ser humano da realidade factual, fazendo com que suas percepções dos acontecimentos sejam totalmente distorcidas.
              Pela análise do seu cotidiano, pude perceber que se tratava de um cidadão com razoável cultura; muito embora, as conclusões a que chega, bem como os comentários que faz, sejam todos destituídos de bom senso, para qualquer um brasileiro afinado, como eu, com o comportamento politicamente correto que vigora na atualidade em nosso país.
           O diário, embora abarcando apenas o período de cerca de dois meses, não possui um final, o que me leva a crer que ele tenha sido separado do autor por alguma razão superveniente ou de força maior. Imagino que ele possa ter tido um surto psicótico e que os vizinhos o tenham conduzido, às pressas, para algum dos inúmeros manicômios espalhados pelo nosso Estado.
                      Como a casa foi por mim adquirida em um leilão judicial do qual apenas eu participei, já que era amigo íntimo do leiloeiro, que não avisou a mais ninguém sobre aquele leilão para que eu fosse o único a dele participar (e sair vencedor com o lance mínimo, evidentemente), imagino que o seu autor tenha falecido no local mesmo onde estava internado e a sua casa tenha revertido para o Município, por falta de pagamento dos impostos; razão pela qual este a vendeu daquela forma.
                 Pretendo em retribuição a ele (por haver, com a sua prematura morte, contribuído para que a casa fosse leiloada pela mão do meu amigo) visitar, qualquer dia destes, o cemitério municipal para tentar localizar seu eventual túmulo, onde, após uma breve oração, deixarei algumas flores que apanharei na vala negra em frente à casa que anteriormente foi sua e que agora me pertence. Não tenho nenhuma superstição, mas, não convém ser negligente com as coisas do além; principalmente, quando penso que ele esqueceu aqui em casa o seu diário e que pode desejar prosseguir com o mesmo na nova dimensão etérea onde talvez se encontre. Se assim for, tive o cuidado de xerocar todas as páginas do diário, para guardá-las comigo, e deixar o original em local bem visível da casa, para que ele possa encontrá-lo com facilidade e desaparecer no meio da fumaça, como costumam fazer os espíritos errantes.
             Caso algum dos leitores tenha poderes mediúnicos, gostaria que se informasse com ele sobre o conteúdo da página referente ao dia cinco de março; pois, após a página que trata do dia quatro, vem logo a do dia seis. Com isto, fiquei sem saber o que lhe ocorreu naquele dia.
             Finalizando, se algum leitor, psiquiatra já formado ou mesmo acadêmico, se interessar em obter os originais, para instruir alguma tese de mestrado ou de doutorado sobre a grave e rara enfermidade mental deste cidadão desconhecido, o diário original, por ele mesmo manuscrito, poderá ser comigo negociado (já que sou um professor pragmático e consciente de que tudo nesta vida tem seu preço, sendo o meu bastante reduzido) e posso sempre deixar uma cópia Xerox no lugar do original, já que estou plenamente convencido de que um simples espírito não saberá distinguir uma da outra, tão aperfeiçoados estão os métodos de reprodução gráfica hoje em dia.
                   Por último, nominei a obra de Diário de um ‘Maluco Beleza’, em razão do seu verdadeiro autor, e personagem principal deste diário, me lembrar muito o tipo descrito na musica ‘Maluco Beleza’, de Raul Seixas – tipo aquele com problemas mentais e de comportamento, cujas atitudes contribuíam para alegrar qualquer ambiente, algumas vezes de maneira até admirável.
          Apresentarei o texto em capítulos, diariamente aqui postados devido ao pouco espaço disponível neste blog, cada capítulo correspondendo a um dia do referido diário. Se os estimados leitores julgarem ver no presente texto alguma possível critica deliberada à nossa gente, aos nossos costumes e às nossas instituições, saibam que não terá sido, tão somente, uma simples coincidência...

Capítulo 1
Segunda feira, 03 de março


        Hoje acordei preocupado. Tenho notado, já há algum tempo, que os insetos não aparecem mais em meu jardim. Será que isto ocorre só em meu jardim ou nos demais jardins da vizinhança eles também não estão presentes? - foi esta a pergunta que me fiz, logo após abrir a janela e dar uma longa respirada naquele ar poluído da comunidade em que estou morando.  Será que se trata de um assunto pessoal, entre mim e eles, por conta de alguma formiga que me viram esmigalhar com o pé, ao ir até o portão recolher as cartas e imaginam que fiz aquilo de propósito? Minha preocupação é pertinente, pois, sem eles minhas flores não florescerão e as fruteiras não darão frutos, da forma como sempre fizeram desde que adquiri a casa e resolvi construir um pequeno jardim.
        Fico imaginando que se isto estiver ocorrendo, não só em meu jardim, mas em todos os outros da vizinhança, do bairro, da cidade, do Estado, do país, do mundo inteiro; então, nossos dias estarão contados, pois não teremos mais a beleza das flores e os frutos das árvores. Talvez não tenhamos mais sementes para semear, nem alimentos para colher. Eu sei que existe toda uma cadeia biológica e que todos os insetos são importantes, bem como todos os animais, para o equilíbrio dos Ecossistemas. Entretanto, isto as nossas autoridades também sabem e se não dão importância ao fato, deve ser porque está tudo sob controle. Minha excessiva preocupação com estes pequenos detalhes, com certeza, é conseqüência da moléstia que me acomete e cujo nome, de tão complicado que é, jamais consegui decifrar nas letras pequenas e tortas dos meus psiquiatras, em seus laudos médicos encaminhados para os planos de saúde.
        Estou convencido de que muitas das questões que me atormentam são frutos, não só do avanço da moléstia, mas, também, da grande quantidade de medicamentos que me obrigam a ingerir diariamente.
        Ao dar um passeio pelas ruas da comunidade, como me recomendou o psiquiatra (isto para que eu mantivesse contato com a realidade e não me deixasse dominar por uma tendência ao isolamento mental, típico da minha doença), notei que havia muito lixo espalhado pelas calçadas, inclusive dejetos de animais nos quais acabei pisando ao saltar por sobre uns pneus velhos abandonados e cheios de água da chuva.
        Vendo alguns jovens pichar a parede de uma casa, fiquei admirando o trabalho que faziam. Um deles, tendo subido sobre as costas do outro, tentava atingir as partes mais altas da residência para continuar fazendo seus desenhos. Os desenhos me pareceram apenas rabiscos e garranchos, mas, certamente, deveriam conter alguma forma de arte, pois, caso contrário, os jovens não perderiam seu precioso tempo com algo tão arriscado. Pouco depois, tendo terminado o que fazia e me vendo os observar, um deles, se dirigindo a mim, exclamou: - Dá o fora maluco, senão você vai acabar na vala!
        Realmente, pensei, em um dia chuvoso e com as ruas enlameadas como estas do bairro em que moro (aonde o asfalto e o esgoto ainda não chegaram e as valas negras correm paralelas às ruas de terra batida), é muito fácil qualquer um escorregar e acabar na vala, principalmente se idoso como eu.
        Após o almoço e um descanso que se estendeu até por volta das seis horas da tarde, tomei os remédios (que consomem quase totalmente meu salário de aposentado) e me sentei, solitário, para assistir um pouco de televisão. Em um dos canais, um pastor ameaçava com o fogo do inferno e a ira de Deus, àqueles que estavam em débito com a sua igreja. Em outro canal, o pastor afirmava que a quantia do fiel depositada em suas mãos seria multiplicada por dez, pelo Criador de todas as coisas. Aquilo tudo me pareceu um estelionato religioso; mas, como os canais de televisão são concessões do Estado (e as autoridades, com certeza, também assistem televisão), estou convencido de que o governo sabe de tudo aquilo que é veiculado pelas emissoras. Assim, como permite que aquelas matérias sejam veiculadas, sou levado a supor que eu é que esteja tendo uma imagem distorcida da realidade em virtude da grave moléstia que me acomete.
            Mudando de canal por várias vezes, acabei parando em um que transmitia uma novela. Depois de alguns minutos contemplando a tela, talvez, volto a dizer, em razão dos fortes remédios que ingerira, me pareceu que todos os personagens defendiam apenas os vícios, vícios estes que todos eles praticavam.
        Imaginei logo que meu problema mental pudesse estar se agravando, em que pese os medicamentos que tomava, distorcendo a realidade dos fatos. Com certeza, os personagens não haviam dito nada daquilo que eu ouvira e que, na verdade, minha mente enferma havia construído tudo aquilo a partir da minha insanidade.  Talvez fosse o caso de marcar consulta urgente com o psiquiatra que me atendia pelo plano de saúde.
          Ainda tentei alguns outros canais, em busca de notícias sobre Ciência, Filosofia, Conhecimentos Gerais, História e Política, em seu sentido mais amplo; mas, como nada encontrei, tomei um chá bem quente, me deitei e continuei lendo ‘A Genealogia da Moral’, de Friedrich Nietzsche, até adormecer.     

(Continua no dia seguinte - nota do autor)

_*/ Economista, M.S. e Doutor pela Universidade de Madrid, Espanha. 


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