terça-feira, 21 de junho de 2016

59. Os milagres não existem...


Jober Rocha*


                                                                                             
                    Já passava da meia-noite quando o professor Herculano, catedrático de Filosofia, retornou ao seu carro estacionado no pátio da Universidade onde lecionava. Travassos, seu motorista particular, abriu-lhe a porta de trás do veículo, como sempre fazia, e, em seguida, sentando-se ao volante do automóvel iniciou o trajeto costumeiro em direção a casa do professor, no bairro do Cosme Velho, na cidade do Rio de Janeiro.
                              Após haver dirigido em silêncio por um quarto de hora, ao contornar uma curva da estrada quase foram atingidos por um ônibus vazio, conduzido em alta velocidade por seu motorista.
                               Travassos, com um rápido golpe de direção, desviou-se do coletivo, murmurando: - Escapamos por milagre! Valha-me Nossa Senhora!
                               O professor Herculano, cochilando no assento traseiro, abriu os olhos e, ouvindo as exclamações de Travassos, respondeu-lhe: - Você é muito crédulo, meu filho! Não sabe que os milagres não existem?
                      Travassos, ainda com o coração acelerado, contestou: - Como pode afirmar isto professor? Acabamos de ser salvos por um milagre. Íamos ser esmagados pelo ônibus, quando a mão do Criador nos salvou!
                              O professor Herculano, em que pese o seu cansaço físico e mental, após uma tarde em que dera várias aulas naquela Universidade, disse-lhe, mais uma vez, paternalmente: - Meu caro Travassos, na Antiguidade Clássica, os milagres eram entendidos, pelo povo, como fatos excepcionais ou inexplicáveis e considerados como sinais ou manifestações de uma vontade divina. Esta noção predominou até a Idade Média.
                             O pensador e filósofo católico Tomás de Aquino, afirmava: - “Nos milagres podem ser notadas duas coisas. A primeira é o que acontece; já que consiste, certamente, em algo que excede a faculdade da natureza e, neste sentido, os milagres são chamados de Virtudes. A segunda é a razão pela qual eles acontecem, ou seja, a manifestação de algo de sobrenatural. Neste sentido os milagres costumam ser chamados de sinais”.
                         O filósofo e escritor Jean Marie Arouet, conhecido como Voltaire, em seu ‘Dicionário Filosófico’, mencionava: - “Segundo as idéias aceitas, os milagres seriam violações das leis matemáticas, divinas, imutáveis, eternas. Mediante essa exposição, o milagre seria uma contradição; já que uma lei não pode ser violada”. Voltaire afirma, ademais: - “Deus nada pode fazer sem razão, sendo impossível conceber que a natureza divina trabalhasse para algum homem, em particular, em detrimento dos outros; constituindo-se a mais absurda das loucuras, imaginarmos que o Ser Infinito invertesse, em favor de alguns, o movimento dessas imensas molas que fazem mover o Universo inteiro. Assim, ousar supor que Deus realiza milagres é realmente insultá-lo (se é que os homens podem insultar a Deus), e desonrar de certo modo a divindade”. Voltaire cita, ainda, que, ao perguntarem a um filósofo o que diria se visse o sol deter sua marcha e os mortos ressuscitarem, o filósofo teria respondido: - “Tornar-me-ia Maniqueísta e diria que existe um principio que desfaz o que o outro fez”.
                                     O filósofo Baruch Spinoza, por sua vez, dizia: - “Contra a natureza, ou acima da natureza, o milagre não passa de absurdo e Deus era mais bem conhecido graças à ordem e à necessidade da natureza do que por pretensos milagres”.
                                    Alguns autores modernos especulam que, na impossibilidade da alteração de leis universais, imutavelmente por Ele mesmo criadas, Deus atuaria, apenas, nos eventos probabilísticos. Assim, se um indivíduo tem grande probabilidade de contrair uma doença mortal ou de sofrer algum revés, Deus poderia, em razão das súplicas e do merecimento deste, reduzir esta probabilidade, livrando-o completamente do mal.
                                    A questão, pelo visto, continua e ainda continuará por muito tempo em aberto; pois, embora ocorram eventos aparentemente sem explicação (como se dá com as mágicas e as prestidigitações) isto não significa que as explicações não existam e que não sejam de natureza humana e não sobrenatural.
                                  As igrejas cristãs e o próprio espiritismo, entretanto, enfatizam para os fiéis a ideia do milagre, da cura sobrenatural ou mediúnica, como forma de manter seus fiéis ou adeptos, sempre vinculados àquelas instituições e aos seus sacerdotes, médiuns ou dirigentes.
                        A igreja católica chegou a criar centros onde tais milagres, supostamente, aconteceriam com certa frequência, como Lourdes (na França), Fátima (em Portugal) e Aparecida do Norte (no Brasil). As igrejas evangélicas fazem com que os, supostos, milagres ocorram dentro dos próprios templos (com pastores fazendo, supostas, curas milagrosas nos cultos ao vivo e naqueles transmitidos pela televisão, exorcizando os demônios dos fiéis que, a seguir, se dizem curados do mal que tinham); da mesma forma que o espiritismo também propicia, supostas, curas mediúnicas nos próprios centros espíritas. Em um destes centros, em nosso país, um médium que, supostamente, receberia o espírito de um médico alemão, está, na atualidade, respondendo a dezenas de processos, cíveis e criminais, por lesões corporais graves, ocorridas em cirurgias mediúnicas, por ele realizadas com a utilização de facas e tesouras não esterilizadas, em frequentadores do centro espírita onde atua.
                                      Relativamente ao milagre de Fátima, supostamente, ocorrido na cova da Iria, na freguesia de Aljustrel, no Concelho de Ourém, em Portugal, no dia treze de maio de 1917, o padre católico Mario de Oliveira, autor do livro ‘Fátima Nunca Mais’, declarou para a jornalista portuguesa Alice Barcelos, em entrevista no You Tube: - “Trata-se de uma mentira que obrigaram as três crianças a contarem. Duas delas, Francisco e Jacinta, as menores, morreram pouco depois de pneumonia (não tendo sido salvas pela virgem, que disseram ter visto, capaz de tantos milagres). A Mais velha (Lucia), foi mantida encarcerada em um convento pelo resto dos seus dias, longe do contato com o público. Fátima é uma enorme fonte de renda para a igreja católica portuguesa e para o Vaticano. Constitui uma verdadeira galinha dos ovos de ouro, pois tudo ali é vendido em benefício da igreja”.
                                  Marcelo da Luz, em seu livro ‘Onde a Religião Termina’, argumenta: - “Durante muito tempo, a tradição cristã de base católica ensinou ao povo que sofrer resignadamente era virtude. Nesse contexto, o “milagre” era algo raro, patrocinado pelos santos tradicionais, mas sempre alimentado pela esperança dos fiéis. Os movimentos cristãos mais contemporâneos, especialmente o neo-pentecostalismo, “democratizaram” o milagre, tornando-o “mercadoria” acessível. O que move as multidões a migrarem de igreja em igreja é a expectativa do extraordinário, a obtenção do “favor” divino. Hoje, essa sede de milagres é explorada comercialmente, dando razão à máxima ‘Templo é dinheiro”.
                              Ao terminar sua exposição, o professor Herculano, cansado, fechou os olhos para um novo cochilo.
                            Foi sua sorte, pois nem viu o caminhão carregado de minério de ferro vindo de Minas Gerais e que, sem freios, colidiu e passou por cima do seu carro naquela esburacada estrada estadual. A batida foi tão violenta que ambos os veículos pegaram fogo, instantaneamente. Herculano teve morte imediata e, no dia seguinte, seu corpo era velado no salão nobre daquela Universidade em que por mais de vinte anos ministrara aulas de Filosofia.
                              Centenas de alunos, professores e amigos do professor compareceram ao cemitério para prestar-lhe o último adeus; inclusive Travassos, seu motorista particular, que, MILAGROSAMENTE, havia escapado, incólume, daquele fatal acidente...


_*/ Economista, M.S. e Doutor pela Universidade de Madrid, Espanha.

Nenhum comentário:

Postar um comentário