42. A Corrupção, a Religião e o Imperativo Categórico do filósofo Immanuel Kant**
Jober Rocha*
Desde quando os seres humanos deixaram a vida tribal, onde viviam em comunidades coletivas nas quais tudo dividiam, e passaram a viver sós e isolados em propriedades privadas e particulares, o egoísmo, a ganância, a ambição e o espírito de competição foram, aos poucos, ocupando os seus lugares nos corações e nas mentes dos indivíduos.
Jean Jacques Rousseau (1712-1778), no século XVIII, foi um dos primeiros pensadores a discorrer sobre as origens da propriedade privada, das leis, dos governantes e dos tiranos, o que lhe valeu inúmeras perseguições, tanto por católicos quanto por protestantes. Seus escritos eram considerados subversivos e, por diversas vezes, teve que fugir da cidade onde se encontrava para não ser preso. Em seu ‘Discurso Sobre a Origem da Desigualdade entre os Homens’, escrito em 1755, ele destacava: “Da cultura das terras resulta, necessariamente, a sua partilha e da propriedade, uma vez reconhecida, as primeiras regras de justiça”..., “Antes de terem sido inventados os sinais representativos de riqueza, estas só podiam consistir em terras e em animais, os únicos bens reais que os homens poderiam possuir”... “No entanto, com o desenvolvimento e a expansão das comunidades, os interesses entraram em conflito, armando-se uns contra os outros”... “Para livrar da opressão os fracos, conter os ambiciosos e assegurar, a cada um, a posse do que lhe pertencia, foram instituídos regulamentos de justiça e de paz, aos quais todos eram obrigados a se conformar”... “Assim, em vez de voltar as suas forças contra eles mesmos, reuniram-se em um poder supremo que os governava segundo leis que protegiam e defendiam todos os membros da associação, repeliam os inimigos comuns e os mantinham em uma eterna concórdia”... “Este poder supremo, entretanto, certamente, era formado pelos mais ricos, pelos mais inteligentes e pelos mais fortes”... “Dessa união originou-se a sociedade e as leis, que deram novos entraves aos fracos, aos pobres e aos menos inteligentes e novas forças aos ricos, aos fortes e aos mais inteligentes, destruindo, irremediavelmente, a liberdade natural e fixando, para sempre, a lei da propriedade e da desigualdade. De uma astuta usurpação fizeram um direito irrevogável e, para proveito de alguns ambiciosos, sujeitaram para o futuro todo o gênero humano ao trabalho, à servidão e à miséria”... “Com o estabelecimento de uma única sociedade deste tipo, tornou-se indispensável o estabelecimento de todas as outras, para fazer frente a esta comunidade com forças unidas, e, assim, as sociedades se multiplicaram sobre a face da terra”... “O povo, já acostumado à dependência, ao repouso e às comodidades da vida (e já incapaz de poder quebrar os ferros que o sujeitava), consentiu em deixar aumentar sua servidão para firmar sua tranqüilidade: e foi assim que os chefes tornados hereditários, acostumaram-se a olhar sua magistratura como um bem da família; a se olharem, eles mesmos, como os proprietários do Estado, do qual, a princípio, eram apenas seus oficiais; a considerar seus concidadãos como seus escravos; a contá-los como gado, no número das coisas que lhes pertenciam; e a se considerarem, eles próprios, iguais aos deuses e reis dos reis”. “Se seguirmos o progresso da desigualdade nessas diferentes revoluções, veremos que o estabelecimento da lei e do direito de propriedade foi o seu primeiro termo, a instituição da magistratura o segundo, e que o terceiro e último foi a mudança do poder legítimo em poder arbitrário. De sorte que a condição de rico e de pobre foi autorizada pela primeira época, a de poderoso e de fraco pela segunda, e a de senhor e de escravo pela terceira, que é o último grau de desigualdade, o termo ao qual chegam finalmente todos os outros, até que novas revoluções dissolvem completamente o governo, ou o aproximam da instituição legítima”.
Assim, as quatro características humanas já mencionadas (egoísmo, ganância, ambição e espírito de competição), têm, ao longo da História, ocupado papel importante na vida dos povos e das nações; fazendo com que a espécie humana deixasse de ser colaborativa e passasse a ser competidora.
Em razão destes aspectos constatamos que, ao longo dos tempos, a corrupção dos valores tem mudado e re-escrito a história dos povos e das nações. Inúmeras batalhas e guerras foram ganhas pelo fato de um soberano haver comprado, com ouro, os generais inimigos. Muitas cidades fortificadas e fortalezas, assediadas, foram tomadas sem muita resistência pelo fato de alguém, lá dentro, haver sido subornado e ter aberto os seus portões. Inúmeros soberanos foram mortos por guardas ou por criados de quarto, a soldo de inimigos, de parentes ou de concorrentes ao trono.
Em nosso país, tivemos um destes exemplos no passado, durante a invasão do corsário francês René Duguay-Trouin, em 1711, quando o governador do Rio de Janeiro, Francisco de Castro Morais, por dinheiro, facilitou a conquista da cidade, que teve de pagar elevado resgate. Pouco depois deste episódio, o governador foi condenado por um tribunal português à pena de ser queimado em esfinge (quando se fazia um boneco, representando a pessoa, e nele se ateava fogo, como fazem atualmente com os bonecos de Judas, na páscoa), demonstrando que, desde aquela época, no Brasil, as autoridades já eram lenientes com os crimes de corrupção das elites. Episódio semelhante teria ocorrido durante a Inconfidência Mineira, quando Joaquim Silvério dos Reis, um dos delatores da revolta e da participação de Tiradentes nela, obteve o perdão de suas dívidas e, conseguindo passaporte para viajar a Lisboa, recebeu do príncipe regente o Hábito de Cristo (colocado por este no peito do traidor da Inconfidência) e ainda ganhou uma pensão anual de duzentos mil réis.
No passado, mesmo punidos em alguns lugares com a pena capital, os crimes cometidos em razão de subornos, ocorriam com certa freqüência. No presente, com as brandas penas imputadas a tais crimes, a corrupção dos costumes generalizou-se a tal ponto que, em muitos países, nada caminha na administração pública se não houver, de um lado, alguém subornando e, do outro, alguém sendo subornado. Com isto, acabou-se a necessidade do mérito, da competência e da qualidade, tanto das empresas quanto dos produtos e dos serviços oferecidos à administração pública, substituídas que foram estas pelo suborno pago àqueles que detêm o poder de decisão sobre as compras e as obras realizadas pelo Estado.
Voltando novamente ao passado, podemos perceber que as Religiões sempre tiveram um papel teórico importante na contenção dos vícios e na exaltação das virtudes, embora, na prática, as coisas não fossem bem assim; ou seja, porque poucos eram aqueles religiosos que viviam as suas vidas inteiramente fiéis às doutrinas que aprendiam e que ensinavam.
Relativamente, ainda, ao aspecto religioso da questão, tem-se que, na antiguidade, as conquistas territoriais através das guerras, produziam enormes contingentes de prisioneiros que eram transformados em escravos. Tais populações escravizadas não possuíam nenhum direito e buscavam, sempre, a liberdade a qualquer preço. Os povos mais fortes, através das guerras, dominavam os mais fracos em busca de riquezas e, também, de mantê-los sob a condição de escravos; sendo estas as regras gerais.
Em determinado momento histórico, surgiu Jesus com uma nova proposição: “os bens terrestres não são importantes; já que, a verdadeira riqueza pertence a outro reino, o Reino dos Céus”.
Esta simples proposição mudou, radicalmente, a vida daqueles que, até então, viviam excluídos da posse de bens materiais. Para eles, ainda restava uma oportunidade, caso não se revoltassem ou rebelassem contra o ‘Status-Quo’ dominante e pautassem suas vidas por comportamentos virtuosos, dali por diante. Em uma nova vida, após a morte, iriam desfrutar de tudo aquilo que nesta existência lhes havia sido negado. Esta simples maneira de encarar a vida e a sua Metafísica despertou, ainda mais, o sentimento religioso das populações oprimidas e escravizadas, carentes de bens materiais e de liberdade.
O próprio Império Romano, em principio contra os cristãos por julgar que faziam parte de um movimento de libertação do Reino de Judá; logo a seguir, quando entendeu a verdadeira mensagem do cristianismo e viu que aquela nova proposta vinha de encontro aos seus próprios desejos (de que as populações escravizadas não mais se rebelassem contra a dominação romana), deixou de perseguir os cristãos e, inclusive, sob o império de Constantino, no Concilio realizado em Nicéia, criou uma nova religião, baseada nas palavras e nos ensinamentos de Jesus, buscando estendê-la por todos os territórios sob o seu domínio. Para o cristianismo, a existência de um Criador único, fazia parte das verdades reveladas por Jesus. Da mesma forma, para todas as demais religiões, a existência de um Criador sempre foi revelada àqueles que as propuseram ou instituíram. Todavia, como todos nós sabemos, o próprio Jesus foi traído por um dos seus discípulos, Judas Iscariotes, em troca de dinheiro, evidenciando que os próprios discípulos dele ainda permaneciam presos aos antigos valores.
Após a implantação do Cristianismo sob o Império Romano, os cargos da nova religião passaram a ser negociados entre as famílias nobres romanas, mais importantes e de maiores posses. Os cargos de papa, de cardeais, de arcebispos e de bispos eram vendidos e aqueles que os compravam buscavam se ressarcir, daquilo que tinham gasto, com os recursos financeiros que arrecadariam dos fiéis em suas respectivas dioceses e paróquias. Indulgências passaram a ser vendidas por dinheiro, em toda a Europa, facultando àqueles que as adquiriam à remissão dos seus antigos pecados e o direito de pecar novamente; fato este que teria provocado Martinho Lutero a escrever suas 95 teses contra a Igreja de Roma, dando inicio, assim, ao surgimento do Protestantismo.
No mundo moderno, embora as antigas práticas possam ter sofrido algumas mudanças, vê-se que todas as religiões continuam seguindo em busca do dinheiro; muitas delas tendo se transformado em verdadeiras empresas, a operarem em diversos setores da Economia e a aplicarem recursos financeiros em vários mercados mundiais. O argumento que utilizam, para o público, é o de que a religião precisa crescer, se expandir e, para tanto, necessitaria, cada vez mais, dos recursos de seus fiéis e adeptos; além do retorno dos investimentos que faz pelo mundo afora. Se as próprias religiões são ávidas pelo dinheiro, seus membros, por sua vez, são muito mais; isto com raríssimas exceções.
Muito já se escreveu sobre o papel da Mídia moderna ao induzir as populações ao consumo, em uma Economia inteiramente voltada para o gasto e para o desperdício; isto é, sobre o predomínio do ter sobre o ser e o conhecer. Na ânsia por consumir, todos necessitam do dinheiro e, para obtê-lo, tudo lhes é permitido, notadamente em épocas de crise econômica, de desemprego e de falta de autoridade.
Vão-se, assim, os antigos valores morais estabelecidos pela religião. Seus lugares, em uma transvaloração de valores ao estilo definido pelo filósofo Friedrich Nietzsche, são ocupados por comportamentos politicamente corretos, estabelecidos estes não mais pela religião (como os antigos valores), mas, agora, pelos costumes locais, pela Política e pela Ideologia dominante. É a época da chamada Lei de Gerson, onde a tônica é: - Rouba, mas faz! - Nós temos que levar vantagem em tudo! Certo? - Se eu não roubar, outros roubarão em meu lugar! Etc.
É também a época em que se busca descaracterizar e banalizar os crimes de corrupção cometidos pelas elites, chamando-os, eufemisticamente, de malfeitos ou de erros. Nota-se, pelo exposto, que a religião mostrou-se incapaz de fazer prevalecer os seus valores em países como o nosso, onde a maioria da população é praticante de algum tipo de religião. Na teoria, todos são fiéis e adeptos virtuosos; mas, na prática diária, mostram-se simplesmente viciosos ou, muitas vezes, coniventes com os vícios.
Analisando a corrupção sob a ótica da Filosofia, nós podemos concluir como bem sinalizou o filósofo Immanuel Kant em sua obra ‘Critica da Razão Prática’, que:
- “A religião não pode ser baseada na ciência nem na teologia; mas, sim, na moral”.
- “Temos de encontrar uma ética universal e necessária; princípios ‘a priori’ de moral, tão absolutos e certos, quanto a matemática. Temos de mostrar que a razão pura pode ser prática; isto é, pode, por si só, determinar a vontade, independentemente de qualquer coisa empírica, que o senso moral é inato, e não derivado de experiência. O imperativo moral de que precisamos, como base da religião, deve ser um imperativo absoluto, categórico.”
- “A mais impressionante realidade em toda a nossa experiência é, precisamente, o nosso senso moral, nosso sentimento inevitável, diante da tentação, de que isto ou aquilo está errado. Podemos ceder; mas, apesar disto, o sentimento lá está.”
- “E uma boa ação é boa não porque traz bons resultados, ou porque é sabia; mas porque é feita em obediência a esse senso íntimo do dever, essa lei moral que não vem de nossa experiência pessoal, mas legisla imperiosamente e ‘a priori’ para todo o nosso comportamento, passado, presente e futuro.”
A Filosofia desenvolvida por Kant, embora faça um diagnóstico correto ao afirmar que todos nós estamos conscientes de tudo aquilo que praticamos de errado (em razão do chamado Imperativo Categórico), da mesma forma como ocorre com a Religião, tem sido também incapaz de fazer os seres humanos levantarem templos às virtudes e cavarem masmorras aos vícios. Por alguma razão, ainda não identificada em todos os seus aspectos, embora nós busquemos sempre a felicidade, ao fazê-lo, muitas vezes nos tornamos a causa da infelicidade dos outros.
A busca da felicidade, da forma como a entendemos no mundo moderno (felicidade adquirida através do ter e não do ser e do conhecer), envolve aqueles quatro aspectos antes mencionados (o egoísmo, a ganância, a ambição e o espírito de competição). Vê-se, assim, que, para alcançar a felicidade que buscamos fazemos constantemente uso de vícios e não de virtudes; logo, seremos nós, invariavelmente, a causa da infelicidade de outros seres. Aqueles leitores mais perspicazes já terão percebido que nossos valores atuais necessitariam ser modificados, de forma a buscarmos a felicidade através das virtudes. Somente desta forma, conseguiríamos atingi-la sem contribuir para a infelicidade dos nossos semelhantes.
Como isto pressupõe um estado de evolução espiritual e cultural acima das possibilidades da nossa sociedade atual, creio que a única forma de resolvermos esta equação, para cuja solução nós necessitamos aumentar as virtudes e reduzir os vícios, de forma a maximizar a felicidade de todos, é a de selecionarmos as penas mais graves existentes no nosso Código Penal, para atribuí-las às ações de suborno e de corrupção, mães de todas as outras violações da lei; já que, através delas, todo o arcabouço que sustenta a nossa sociedade se rompe e sucumbe, talvez até de maneira definitiva.
_**/ Publicado na Revista Ideias em Destaque nº 47, jan/jul 2016. Instituto Histórico e Cultural da Aeronáutica - INCAER. Rio de Janeiro, RJ.
Nenhum comentário:
Postar um comentário