quinta-feira, 30 de junho de 2016

71. Continuação de Diário de um ‘Maluco Beleza’ 

(Capítulos 8 e 9)

Jober Rocha

Capítulo 8
Terça Feira, 11 de março

             Hoje pretendo ir à companhia de águas e esgotos resolver um problema que ocorre não só comigo, mas, também, com meus vizinhos. Trata-se do seguinte: as contas da companhia chegam todos os meses com valores mais elevados, denotando que o consumo ou a tarifa estão aumentando. Entretanto, ocorre um fato bem estranho, tanto em minha casa quanto nas casas dos meus vizinhos, qual seja o de não termos água há vários meses. Nem uma gota do líquido para meu gato preto. 
               Se não é o garrafão de vinte litros que sou obrigado a comprar, mensalmente, eu e ele morreríamos de sede. Já tentei ligar para a companhia por várias vezes, mas, quase sempre, quando atendem e após eu explicar tudo, a ligação cai e a pessoa que atende a nova ligação que faço, já é outra e tenho que explicar tudo de novo. Por vezes, a voz mecânica que atende avisa: comprar figurinhas, digite 1; marcar exame de urina, digite 2; resultado do jogo do bicho, digite 3; condição de trafego nas estradas, digite 4; vôos cancelados, digite 5; preço do tomate, digite 6; segunda via da conta d’água, digite 7. Com as possibilidades de poder acessar o ramal de reclamações já se esgotando, continuo ouvindo: cotação do milho na Bolsa de Chicago, digite 8; preço do farelo de soja em Cingapura, digite 9 e, por fim; para encerrar a ligação, digite 0. Assim, sem conseguir fazer a minha reclamação resolvi ir pessoalmente à companhia de águas e esgotos.
        No trajeto de ônibus até a sede da companhia, pude comprovar que a moléstia cada dia mais se agravava. Agora, além de ir perdendo o contato com a realidade, também estava com distúrbios referentes ao meu sentido de direção.
                  Pela janela do ônibus, notava que as motocicletas andavam todas na contramão de direção. Ora, isto só podia significar que alguma coisa havia alterado meu sentido de direção e que eu estava tendo uma visão distorcida dos quatro pontos cardeais: para mim, agora o norte era sul, o sul era centro-oeste e o leste nordeste. Aquilo me deu uma enorme tristeza, pois, ao invés de melhorar, via que meu estado mental piorava. 
                 Totalmente desanimado me senti, ao contemplar carros em cima das calçadas; pois, aquilo indicava que o meu sentido de posição também estava alterado. Se minha saúde mental estivesse boa, certamente, eu os veria no lugar onde deveriam estar; isto é, nas ruas. Eu notei, também, que devia estar ficando Daltônico (talvez um pequeno tumor no cérebro estivesse comprimindo vasos e nervos oculares). Os veículos passavam com os sinais vermelhos. Ora, os sinais, certamente, deveriam estar verdes; mas, o meu daltonismo os via como se estivessem vermelhos, esta foi a minha triste conclusão.
        Chagando a empresa de águas e esgotos, após aguardar duas horas na fila, finalmente, fui atendido pela funcionária. Depois explicar que na rua de terra onde morava não tinha água, nem esgotos, mas a conta mensal chegava sempre com aumento e que aquela reclamação não era só minha; mas, também, de todos os meus vizinhos, a funcionária consultou seu computador e, fazendo um ar espantado, declarou bem alto para que todos na fila ouvissem: - Mas aqui no computador consta que a sua rua é asfaltada, que possui rede de esgotos e que o abastecimento d’água é normal. O senhor está falando a verdade ou está querendo me enganar para não pagar a conta?
        Notei que todos me olhavam e, na ausência de uma prova material concreta, que demonstrasse claramente que a rua era de terra, que não tinha esgoto e nem água, fiquei sem saber o que dizer. Ela, finalmente, vendo que eu nada respondia, disse: - Vou mandar fazer uma vistoria no local. Se não for encontrado asfalto na rua e nem rede de esgotos, o senhor e seus vizinhos terão de repor tudo; pois, isso indica que retiraram os encanamentos e destruíram o asfalto da rua.
- Esse povo pobre é useiro e vezeiro em roubar e destruir aquilo que o Estado disponibiliza para seu conforto e benefício – arrematou a funcionária indignada, finalizando o meu atendimento e chamando o próximo da fila.
                 Desanimado, segui direto para casa pensando no que diria aos meus vizinhos. Talvez devêssemos começar logo fazendo uma poupança comunitária para poder iniciar as obras de esgoto e asfaltamento da rua, no final do ano seguinte.
            Tendo perdido o dia todo na companhia da águas, finalmente em casa, comi um pedaço de pão e algumas bananas e iniciei a leitura de ‘Loucura e Civilização’, de Michel Foucault, no qual ele registra a transformação dos pontos de vista da sociedade ocidental em direção à doença mental, através dos séculos. A loucura era associada a conotações místicas. Pensava-se que os indivíduos eram abençoados pelos deuses ou que estavam, pelo menos, em contato direto com o Divino. Foucault também sustentava a opinião de que o espírito criativo e o limbo lunático não estavam tão distanciados e que muitos dos ‘lunáticos’ eram, em verdade, visionários e dissidentes sociais, fossem rebeldes dinâmicos ou, simplesmente, almas que marchavam ao som de um tambor diferente.
                    Estando eu passando por uma situação de insanidade mental, posso assegurar que jamais mantive qualquer contato com alguma divindade. Também não me considero um dissidente social; posto que, pauto sempre minha conduta pelas virtudes e pelos bons costumes. Como os tempos e os costumes estão sempre mudando, como já dizia Cícero, ao exclamar “Ó Tempora! Ó Mores!”, imagino que a opinião de Foucault, da qual discordo, seja devida ao momento e aos costumes da época em que ele viveu.
        Assim, lendo aquelas colocações que o filósofo havia deixado para a posteridade através das páginas que escrevera, adormeci sem me dar conta de que o fazia.


Capítulo 9
Quarta Feira, 12 de março


              Acordei com uma sensação de que vivia em um país onde as coisas aconteciam todas ao contrário. Esta sensação me deixou com receio de que estivesse próximo de ter alguma crise psicótica. Uma determinada ideia não me saia da cabeça, mas, imagino que se ela estivesse correta, já teria ocorrido, há muito tempo, a alguns juristas e advogados de renome; inclusive a membros do Ministério Público, do Poder Judiciário, do Legislativo e do Executivo. A ideia que me ocorre é a seguinte:
         Os políticos, em campanha, declaram coisas que jamais pretendem realizar, caracterizando, desta forma, segundo nossas leis, lesões em suas relações com os eleitores; já que pré-existia o dolo, isto é, a intenção de enganar aqueles que neles votaram, em razão de suas falsas promessas. 
                 Os políticos, que recebem altos salários pelo pouco que fazem, são custeados com recursos de impostos pagos pela totalidade da população, aí incluídos os eleitores e os não eleitores, para realizarem serviços do interesse exclusivo dos eleitores; mas, que, eventualmente, também possam interessar aos não eleitores. Creio eu, portanto, que está caracterizada uma relação de consumo entre políticos e eleitores. A plataforma eleitoral, os discursos e os pronunciamentos políticos dos candidatos constituem os contratos, de fato, estipulando os serviços que irão realizar após eleitos. Os votos dos eleitores, que os elegeram, constituem as ordens de pagamento que lhes darão o direito de receber, por quatro ou cinco anos, os vencimentos e vantagens dos cargos ocupados de vereadores, prefeitos, deputados, senadores e presidentes, custeados com recursos públicos oriundos de impostos arrecadados da população, aí incluídos os eleitores.
        Assim, promessa política não cumprida equivale ao não cumprimento das condições contratuais firmadas com os eleitores, antes das eleições, para a realização de determinados serviços constantes da plataforma política do candidato. 
           O Código de Defesa do Consumidor deveria, portanto, ser acionado pelos eleitores insatisfeitos, pleiteando a devolução dos vencimentos e vantagens recebidos pelo político, inadimplente contratualmente com aqueles que nele votaram. Os eleitores compraram um serviço que não foi realizado, cabendo, portanto, o ressarcimento daquilo que pagaram em impostos e que foi direcionado, direta ou indiretamente, para o bolso do político.
        O mesmo ocorre com os fiéis ou crentes. Em suas relações com os sacerdotes, lhes é prometido, constantemente, saúde, fama e fortuna, caso adotem aquela determinada religião ou seita e paguem o dízimo ou um valor correspondente, mensal ou semanal. 
                 Os sacerdotes, quando tudo aquilo que prometeram deixa de acontecer na vida dos fieis, costumam dizer que lhes faltou fé. Ora, embora os sacerdotes desempenhem o simples papel de intermediários entre Aquele que tudo pode e o fiel, que nada pode, eles se apresentam como representantes autorizados do Criador, este sim o prestador final dos serviços pleiteados. Como tal, os sacerdotes também podem ser responsabilizados judicialmente, pelo descumprimento dos termos contratuais pactuados entre eles e os fiéis, através do Código de Defesa do Consumidor, criado para proteger o lado mais fraco das relações de consumo, tanto de bens materiais quanto espirituais. 
                 A religião consiste, portanto, na prestação de serviços de natureza material e espiritual. Muitos fiéis a procuram visando evoluir espiritualmente e muitos a procuram objetivando evoluir materialmente. As religiões oferecem as duas possibilidades e cobram para prestar estes serviços de intermediação. Os templos, igrejas, mesquitas, sinagogas, terreiros, etc. constituem as sedes ou filiais, onde os contratos de prestação de serviços são pactuados. 
               Estes contratos são verbais e se lastreiam, por um lado, naquilo que os sacerdotes prometem, como representantes ou prepostos que afirmam ser do Criador, e, por outro, nos dízimos ou valores equivalentes pagos pelos crentes, mensalmente ou semanalmente, para verem suas demandas atendidas.
              Embora não sejam fixados prazos para a entrega dos serviços materiais contratados, é evidente que o contrato estabelecido com qualquer religião não deva se prolongar por um tempo muito grande, de modo a que o contratante beneficiado possa o receber ainda em vida. 
                    Quanto aos serviços espirituais, creio que possam existir controvérsias. Alguns juristas poderão afirmar que nada cabe a defesa do consumidor fazer; já que, o contratante pactuou por sua livre e espontânea vontade, um contrato de risco com o contratado. Assim, o contratante está pagando por um serviço que só poderá receber após a morte. Se o contratado irá honrar o contrato, prestando realmente o serviço proposto, o contratante só saberá após sua morte e, no caso de eventual inadimplência contratual, só poderá apelar, a partir da sua constatação, para a Justiça Divina. Acho, todavia, que alguns juristas poderão opinar em contrário; pois, através dos depoimentos de médiuns, os parentes do finado poderão se inteirar das condições e do local em que o espírito do falecido está, na dimensão etérea, e, assim, caso ele esteja sofrendo no fogo do inferno, cobrar judicialmente do sacerdote o cumprimento daquilo que prometeu, com danos materiais, morais e, principalmente, espirituais.
        Entretanto, enquanto permanecer vivo em nosso planeta, o fiel que, adimplente com todas as suas mensalidades, após um prazo considerado razoável não obtiver as benesses materiais prometidas pelo sacerdote, deveria poder, sem dúvida, solicitar o amparo do Código de Defesa do Consumidor, para se ver ressarcido de uma parte daquilo que pagou, já que a outra parte se destinava a benefícios espirituais, impossíveis de serem mensurados nesta existência humana e, portanto, não podendo o contratante, ainda em vida, caracterizar a inadimplência do contratado.
         Acredito que os advogados ainda não tenham atentado para as infinitas oportunidades que se descortinam para o mercado no qual atuam (o de promover a justiça entre os homens), com a possibilidade de inclusão das demandas de ordem religiosa e política, no âmbito do Código de Defesa do Consumidor. 
                   Eu diria mesmo que a inclusão destes novos setores ao abrigo do CDC constituiria um novo ‘El Dorado’ para a profissão, a impulsionar o surgimento de novos escritórios e a conduzir milhares de universitários para a carreira do Direito. Muito mais que o comércio, a indústria e os serviços, a política e a religião são os setores que mais violam o Código de Defesa do Consumidor, fazendo com que os contratos, verbais e de fato, firmados para a realização de serviços de cunho político e religioso, sejam, quase sempre, descumpridos pelos contratados e, em sua grande maioria, de uma maneira dolosa.
        Reconheço, no entanto, que a minha maneira de ver esta questão possa estar totalmente distorcida, com respeito a realidade dos fatos. Se nenhum dos famosos juristas e profissionais do Direito, até agora, sequer levantaram esta questão, suponho que a mesma não possua nenhum fundamento jurídico e que seja fruto, tão somente, de minha mente enferma e doentia.
        Encontrando-me, na ocasião, muito deprimido, fiz uma breve refeição constituída por algumas bananas e um pedaço de pão, e passei o resto do dia na cama, lendo ‘Opus Major’, de Roger Bacon. O filósofo propunha três caminhos para adquirir conhecimento: autoridade, razão e experiência; esta, dividida nos reinos do interior e do exterior. A experiência externa era a consciência da realidade física e do mundo dos sentidos. A experiência interna era similar à ‘iluminação’; isto é, um pequeno auxílio de Deus. Reconheço a contribuição que Bacon trouxe à Filosofia, mas, discordo se seus pontos de vista. Não entrarei em detalhes sobre esta discordância, por não ser este o local adequado para tal e o cansaço já estar batendo a minha porta.
        Terminada a leitura, apaguei a luz e caí em profundo sono.

(Continua no dia seguinte – nota do autor)


70. Continuação de Diário de um ‘Maluco Beleza’ (Capítulo 7)

Jober Rocha


Capítulo 7
Segunda Feira, 10 de março


            Em dezembro do ano passado havia ligado para o meu médico psiquiatra, do plano de saúde, tentando marcar uma consulta de avaliação do tratamento fármaco químico que me receitara. Pretendia também obter nova receita, pois alguns dos medicamentos que ingeria diariamente estavam para terminar. Naquela ocasião só havia horário vago para Segunda Feira, dia 10 de março do ano seguinte. Hoje, portanto, acordei bem disposto e preparado para ir ao centro da cidade, onde ficava o consultório do psiquiatra que já me atendia há alguns anos. 
                 Aproveitaria, também, a ocasião, para lhe mostrar o diário que, por sugestão dele, eu vinha elaborando há alguns dias. Tive que fazer a caminhada de cinco quilômetros, da minha casa até o ponto do ônibus, viajar de pé no coletivo durante todo o trajeto até o centro da cidade e caminhar algumas quadras até o edifício onde estava situado o consultório. Esta última parte, eu reputo como a mais difícil e trabalhosa, pois, parecia uma verdadeira pista de obstáculos. 
                  Tive que ultrapassar inúmeras barracas de camelô, todas coladas umas as outras; saltar por cima de vários caixotes empilhados na calçada; passar por debaixo de andaimes de obras com pedras e cimento caindo lá de cima; pisar em excrementos de cachorros; contornar latas de lixo sem tampa, de onde saiam cheiros fétidos e ratazanas já saciadas; em suma, após este último trecho necessitei parar alguns minutos para descansar um pouco, antes de subir as escadas do edifício, pois os dois elevadores do prédio não funcionavam. O zelador, tirando um palito da boca, afirmou, com ar autoritário: - Tem que ser de escada mesmo, pois hoje é o dia da manutenção dos dois elevadores!
        Meia hora depois toquei a campainha da sala do médico, no décimo segundo andar. Ao me observar, arfando e suado, ele disse em tom professoral: - Vejo que está se excedendo na comida e na bebida e não tem tomado os remédios que lhe passei!
           Passando para o interior do seu consultório, expliquei o motivo da consulta. Ele redigiu rapidamente e com letra ininteligível uma nova receita, e estendeu a mão para se despedir; ocasião esta que aproveitei para lhe falar do diário, que vinha elaborando a pedido dele.
              Percebi a sua cara de enfado, quando lhe apresentei os manuscritos que havia redigido com letra tão caprichada. Após alguns minutos de leitura, virando-se para mim, disse: - Me devolva a receita, pois vou aumentar a dose e incluir alguns outros medicamentos novos!
            Ao lhe perguntar sobre o que achara daquele diário, ele respondeu, me olhando diretamente nos olhos: - Meu caro, eu noto que você está piorando. Sua percepção da realidade está completamente destorcida. Onde já se viu coisas do tipo destas que você vem relatando em seu diário. Só mesmo uma mente doentia poderia imaginar cenas tão trágicas, tão sem sentido, tão desvinculadas da realidade. Vou copiar estas páginas e mostrá-las para alguns colegas de profissão. Faremos uma junta médica sobre o seu caso; pois, talvez, ele seja bem mais grave do que eu supunha. Acho que redigirei uma nota para a Sociedade de Psiquiatria e enviarei um resumo do seu caso, com o diagnóstico e a medicação que prescrevi, para a ‘American Society of Psychiatry, Viticulture and Enology’.
- Pode ser até que, muito em breve, nós fiquemos famosos!- exclamou ele, me entregando os originais do diário, que já havia copiado em sua impressora, me apertando a mão e me conduzindo para a porta.
              Na saída, ainda disse: - Tome cuidado para que não lhe aconteça nada; pois, talvez, eu tenha que o levar em breve ao exterior, para apresentar seu caso como minha tese de doutorado em uma universidade norte americana! Você poderá se tornar conhecido no meio científico; pense bem nisto!
              No caminho de volta para casa, em pé na parte de trás do ônibus, meditava sobre tudo aquilo que ele havia dito. De que me valia possuir fama e fortuna, quando a minha percepção da realidade estava sendo distorcida, cada vez mais, a cada dia que passava? Eu queria era ficar curado, ser igual a todo mundo, achar graça e prazer nas mesmas coisas que todos achavam; encarar os meus dias da mesma forma que os demais encaravam os seus; isto é, com confiança e esperança. Mas qual, com a moléstia que aos poucos me consumia, era totalmente impossível alcançar este objetivo.
             Tão absorvido estava em meus terríveis pensamentos que somente percebi que o ônibus estava sendo assaltado, quando um indivíduo baixo e atarracado me encostou o cano do revolver na barriga e disse baixinho: - Tira tudo e põe nesta sacola! 
             Mais uma vez cheguei a casa apenas de cueca. Os vizinhos novamente me olharam de soslaio, desconfiados pelos trajes e pela hora em que estavam se acostumando a me ver chegar.
        Como eu havia passado o dia todo nessa faina de consulta médica e de compra dos medicamentos novos e antigos, cheguei bastante esfomeado. Preparei, então, suculenta refeição constituída de um pedaço de pão e algumas bananas, tomei um delicioso copo d’água e me recostei em uma poltrona para desvendar os segredos do ‘Discurso sobre a Origem e o Estabelecimento da Desigualdade entre os Homens’, de Jean-Jacques Rousseau.
             Pouco tempo depois, bateram a minha porta. Parei a leitura e fui me inteirar de quem era. Tratava-se de alguns pastores de determinada seita, que me ofereciam um pacto com Deus: eu autorizaria desconto mensal em folha de pagamento, por 24 meses e, ao fim deste período, eles garantiam que eu teria carro novo, casa nova, empresa em Miami, lancha e uma conta bancária para nunca mais me preocupar em economizar energia elétrica, comprar no crediário e contar tostões. 
               Achei muita facilidade naquilo tudo e, por isto, não aceitei de imediato. Disse que ia pensar e que passassem outro dia. Eu achei que aquilo era um conto do vigário; mas, tendo em conta que a minha percepção é distorcida em razão da minha enfermidade, achei melhor pensar um pouco mais, embora eles tenham dito que o prazo que Deus havia dado para a assinatura do pacto era até o dia seguinte, ao meio dia. Procurei me informar com os vizinhos e parece que na comunidade todos  os moradores haviam assinado o tal pacto. Ainda acho que aquilo é um estelionato religioso, mas, às vezes, tenho muitas dúvidas com relação ao meu modo de ver as coisas.
               Voltando para a cama, terminei a leitura que fazia de Rousseau.  Concordo com ele quando afirmou que os povos primitivos eram superiores às sociedades civilizadas, em todos os sentidos. Passei, em seguida, a ler ‘Do Contrato Social’, do mesmo autor, citado várias vezes por um nosso ex-presidente em seus pronunciamentos para as massas trabalhadoras e sindicalistas. 
            Do contrato social, de Rousseau, a mim, me pareceu um modelo para a implantação de um Estado Totalitário, modelo este desenvolvido por ele muitos anos antes do nascimento de Karl Marx e de que este tivesse trazido ao público a sua obra ‘O Capital’; entretanto, como o ex-presidente era aplaudido por uma boa parcela da população (de acordo com pesquisas de organizações que realizam consultas de opinião pública e que vendiam essas pesquisas para o governo, por altos preços), imagino que a maneira como eu vejo a questão, em razão do agravamento da moléstia que me acomete, deva estar totalmente errada e o ex-presidente e aqueles que o seguem devam estar absolutamente corretos em suas observações sobre a matéria.
          Finalmente, apaguei a luz, fechei os olhos e, aos poucos, minha mente foi se esvaziando e adormeci, preparando-me para um novo dia.

(Continua no dia seguinte – nota do autor)



69. Continuação de Diário de um ‘Maluco Beleza’ 

(Capítulos 5 e 6)

Jober Rocha

Capítulo 5
Sábado, 08 de março

          Às vezes chego a invejar as pessoas da comunidade, que encontro em minhas caminhadas dos fins de semana. Todas alegres, fazendo seus churrascos na laje de suas casas, tomando banho na caixa d’água, vendo TV, jogando bola e brigando na rua. Estou certo de que é a minha enfermidade que não me permite achar nenhuma graça nas piadas pornográficas que contam, nem me divertir da maneira deles, assistindo futebol, vendo novelas e observando, atentos, as preleções dos pastores, como fazem durante os sábados e domingos.
        Nestes dias, após uma longa caminhada, volto para casa, leio os classificados de todos os jornais, buscando comparar preços de imóveis, cotações de veículos, ofertas de emprego, pessoas desaparecidas, animais a venda, etc. Após o almoço, que quase sempre é constituído por um pedaço de pão e algumas bananas, me dedico àquilo que mais gosto de fazer: estudar Filosofia. Passo, assim, o resto da tarde lendo Kant e Espinosa, filósofos estes que muito aprecio, embora sejam pouco profundos em seus ensaios e teses.
        À noite eu faço, normalmente, uma refeição ligeira, quase sempre constituída por um pedaço de pão e algumas bananas. Tomo meus remédios (cerca de oito comprimidos diferentes, de várias cores), visto meu pijama vermelho e me preparo para o sono reparador. Amanhã, domingo, pretendo conhecer a enorme piscina recém construída aqui por perto (já apelidada de ‘piscinão’ em razão do seu descomunal tamanho), destinada a evitar que os membros desta e de outras comunidades próximas, freqüentem, com seus corpos feios e desnutridos, as famosas praias da zona sul da cidade, cheias de turistas nesta época do ano e na proximidade das olimpíadas.
        Assim, tendo deitado cedo e lido alguns capítulos de ‘A Arte da Guerra’, de Sun Tzu, apaguei a luz de cabeceira e fiquei ouvindo, ao longe, os disparos de fuzil trocados entre as várias facções criminosas que comandam o tráfico de drogas nos morros próximos. Fiquei imaginando que Sun Tzu, ao escrever a sua obra entre os anos 400 e 320 a.C., não poderia sequer imaginar que facções criminosas, fortemente armadas, chegariam algum dia a disputar o poder entre elas, nas comunidades locais, e, todas juntas, disputarem-no com as forças policiais do Estado; Estado este, onde as autoridades já teriam lido a sua obra; mas, infelizmente, não saberiam como (ou não desejariam) aplicá-la à nossa realidade.    Aos poucos o sono veio chegando e perdi rapidamente a consciência, penetrando no território do inconsciente. 

Capítulo 6
Domingo, 09 de março

        Acordei cedo, tomei um gole de café, vesti um calção de banho por baixo da calça, como se fosse cueca, passei um pouco de protetor solar, saí de casa e me dirigi ao ponto de ônibus mais próximo; isto é, caminhei por cerca de cinco quilômetros. Os ônibus, ou passavam todos lotados ou não paravam no ponto, mesmo que estivessem vazios. Após quase uma hora, finalmente, consegui embarcar em um deles lotado, que só parou ali porque o motorista queria urinar na vala que margeia a estrada.
        Dentro do ônibus, em pé ao lado de vários idosos, aleijados e portadores de necessidades especiais (isto é, deficientes físicos), contemplei a algazarra produzida pelas crianças e adolescente sentados nos bancos do veículo. Gritavam tão alto que o som incomodava os meus ouvidos. Certamente estavam alegres porque se dirigiam ao ‘piscinão’ com seus pais, naquele domingo de céu azul e de sol quente.
               Finalmente, chegamos. Quase todos os passageiros desembarcaram ali. As crianças, como loucas, correram na frente de seus pais, atirando areia em cima um dos outros e naqueles frequentadores que estavam debaixo de suas barracas. Jogavam água em todo mundo, empurravam as demais crianças menores para o fundo da água, corriam por entre os frequentadores. 
             Seus pais, evidentemente, nada diziam, já que os modernos conceitos de psicologia infantil rezam que as crianças não podem ser tolhidas em suas manifestações de liberdade. Assim, eu me sentei calmamente em um canto e me pus a observar aquele ambiente, para mim uma grande novidade.
             Perto de onde eu estava, sob uma barraca, dois homens se beijavam e acariciavam, sob os olhares de duas meninas pequenas. Imaginei que aquele devia ser um casal que, tendo constituído família, adotara as duas crianças como filhas, conforme prevê e autoriza a nossa legislação.
             Mais a frente, duas mulheres gordas fritavam sardinhas em um fogareiro, enquanto um mulato forte abraçava uma menina de cerca de quinze anos, meio escondidos por umas caixas de cerveja vazias.
          Alguns jovens fumavam pequenos cigarros de maconha, deitados de barriga para cima e soprando a fumaça para dentro de garrafas vazias, fumaça esta que, findo o cigarro, eles tornavam a reaproveitar, aspirando de novo o conteúdo da garrafa. Alguns frequentadores, portando pulseiras e colares de ouro, aspiravam cocaína diretamente do pacotinho de plástico que traziam dentro do calção. Aquele ambiente parecia muito com o que nós tínhamos em nossa própria comunidade; isto é, bastante sujo e  com a polícia totalmente ausente.
             Após algum tempo, resolvi dar uma caída n’água. O cheiro de urina que senti, logo ao entrar naquela água escura, me deixou bastante nauseado. Sai rápido dali e fui andando pela orla, sem destino.
           Mais a frente, uma família almoçava sentada na areia. Eram mais ou menos umas trinta pessoas, entre filhos, netos, primos, sobrinhos, genros, etc. Reparei nos pratos que comiam avidamente, pois, também estava com fome. Pude reconhecer asas, pés e pescoços de galinha, junto ao feijão, ao arroz e a farofa. Um garrafão sem rótulo, com um líquido branco dentro, passava de boca em boca. Os restos do almoço iam direto para dentro d’água, onde eram lavados os pratos e os talheres. As mulheres, todas muito gordas, usavam maiôs do tipo ‘fio dental’ que penetrando em suas carnes, pareciam dividir seus corpos em dois.
                Perto dali, um conjunto musical formado por um tambor, um surdo, um tarol, uma caixa, um cavaquinho, dois pandeiros, um acordeão, um reco-reco, duas cornetas e um trombone, tocavam músicas de pagode e sambas. Algumas mulatas, apenas com a parte de baixo do ‘fio dental’, dançavam na areia, sob os olhares embevecidos de muitos meninos pequenos. Quatro caixas de som se encarregavam de espalhar a música que tocavam, por toda a área do ‘piscinão’ e creio que o som chegava até uma cidade próxima, distante cerca de 20 quilômetros dali onde nos encontrávamos.
               Como tivesse apanhado muito sol e estivesse com fome e sem dinheiro para fazer um lanche, resolvi retornar para casa. Já no ponto do ônibus, ao me dirigir para um coletivo que havia parado bruscamente, fui interceptado por dois menores armados com pistolas que disseram: - Aí Tio, perdeu! Passa logo tudo o que tem!
                Deixei com eles minha sandália havaiana, minha calça, a camisa, o boné, o pente de cabelos e o frasco com protetor solar, pois era apenas o que eu carregava comigo. O motorista, embora violando normas municipais, me conduziu até a minha comunidade apenas de calção.
           Chegando a casa, fiz uma breve refeição constituída por um pedaço de pão e algumas bananas e fui depressa para a cama, onde, sem ler nenhuma página de ‘A Ética a Maneira dos Geômetras’, de Baruch de Espinosa, que eu esperava resumir em cinco linhas naquele domingo, mergulhei em um sono profundo cheio de pesadelos e de temores.


(Continua no dia seguinte – nota do autor)



68. Continuação de Diário de um ‘Maluco Beleza’ 

(Capítulos 3 e 4)

Jober Rocha

Capítulo 3
Quinta Feira, 06 de março
 

        Conforme eu havia relatado na página anterior, referente ao dia cinco de março, nesta manhã acordei sentindo ainda aquela forte dor no peito que me acometera na véspera.  Pensando que poderia se tratar de algum mal cardíaco, resolvi ir me consultar no posto de saúde da comunidade.
        Ali chegando, notei que a fila dava voltas no prédio. Mães com crianças no colo sentadas no chão da rua, velhos deitados pelos cantos ou sentados em caixotes de madeira e latas de tinta vazias. Aguardei, pacientemente, por cerca de cinco horas, até que chegasse a minha vez. O médico que me atendeu era Dermatologista e, sem sequer tocar em mim, me receitou uma pomada de cortisona para que passasse entre os dedos do pé, após o banho. 
             Com respeito à dor no peito, que eu havia relatado, disse que aquilo era fruto da minha imaginação, pois sabia que eu era paciente psiquiátrico de colega seu e que também era dado a ter surtos de hipocondria. Ele me mandou sair da sua sala e chamou o próximo da fila. 
              Voltei para casa pensando em como a Medicina evoluíra nestes últimos anos. Os médicos atuais já não mais necessitavam auscultar os seus pacientes, como faziam os de antigamente. Bastava olhar para eles e, rapidamente, formulavam seus diagnósticos. Eu não havia permanecido no gabinete dele por mais do que cinco minutos e já saíra dali com o diagnóstico pronto e com uma receita nas mãos.
        Como tomo muitos medicamentos fortes, que atuam no cérebro, acredito que a dor que sentia e que ainda sinto, seja realmente fruto de minha imaginação como bem disse o doutor, embora falando este em uma língua que me pareceu uma mistura de português e de espanhol, da qual apenas entendi algumas palavras.
        Ao retornar para casa, notei uma pequena aglomeração de pessoas em um cruzamento e me aproximei para observar do que se tratava. Era um candidato a vereador, que prometia urbanizar o bairro construindo pontes, viadutos, escolas, esgotos, linha de metrô, aeroporto internacional, edifícios residenciais, etc. Enquanto ele falava para aquele povo, algumas pessoas batiam palmas e gritavam: - Muito bem!  Apoiado!
            No final da sua preleção, ele disse que apenas poderia fazer tudo aquilo se a comunidade inteira votasse nele. Todos prometeram que ele teria quantos votos precisasse daquela comunidade.
        Em casa, à noite, já me preparando para dormir, ao coçar a cabeça de um gato preto que me acompanha há muitos anos, me lembrei de que não cabia aos vereadores fazerem obras, mas, sim, aos prefeitos. Acho que eu era o único que tinha aquela informação no local, mas, pode ser que estivesse enganado, principalmente, porque os médicos não cansam de afirmar que minha percepção da realidade é prejudicada pela enfermidade que possuo.
        Já deitado, quase não conseguia prestar atenção no texto que lia de ‘Critica da Razão Pura’, de Immanuel Kant, na parte em que ele discorria sobre o Imperativo categórico. A dor que ainda sentia no peito, fazia com que suasse frio, mesmo debaixo das cobertas. Aos poucos, fui perdendo a consciência e penetrando nas profundezas do sono...


                                                             Capítulo 4

Sexta Feira, 07 de março


        Hoje, finalmente, decidi procurar um pedreiro para consertar o muro que caiu durante as últimas chuvas, ocasião em que a comunidade toda foi alagada pelas águas do pequeno riacho, chamado Urubu, que corta a localidade e que cheio de lixo jogado pelos moradores acabou assoreado, entupindo e extravasando, alagando tudo. 
              Eu me lembro bem deste dia, pois as ratazanas sem ter para onde ir, já que suas tocas haviam sido alagadas, subiram nos muros e nos telhados das casas, de onde ficaram observando os moradores em suas atividades diárias.
        Decidido, pois, a consertar o muro, passei toda a manhã percorrendo as ruas da comunidade a procura de um pedreiro. Infelizmente, embora encontrasse muitos espalhados pelos bares, bebendo, não consegui encontrar nenhum que quisesse fazer o serviço. Todos alegavam que agora eram funcionários do governo; isto é, recebiam uma determinada Bolsa (como os estudantes estagiários em organismos públicos), para a família toda. Assim, não poderiam trabalhar na iniciativa privada, já que eram bolsistas do poder público. 
            Desanimado, voltei para casa pensando em fazer, eu mesmo, aquele serviço ou em me cadastrar também como bolsista do Estado; entretanto, fui informado de que para ser bolsista era necessário possuir família e eu, infelizmente, morava sozinho. 
              Se tivesse algum filho presidiário, eu poderia receber, além da minha bolsa, também o salário reclusão, dele por direito. Com uma filha prostituta, eu poderia, ainda, receber o auxílio de quase dois salários mínimos, referente a este direito dela, aprovado por lei. Esse auxílio, segundo entendo,  deve ser considerado como um subsídio, pois não as obriga a deixar a profissão que praticam. Assim, além deste subsídio, elas ainda ganhariam aquilo que cobram dos seus clientes. Ora, os subsídios concedidos pelos governos têm por objetivo incentivar o desenvolvimento daquelas atividades ou setores para os quais eles são concedidos e, desta forma, fico imaginando que o governo do nosso país tem por objetivo estimular a prostituição. 
              Somando-se isto tudo ao auxílio natalidade, de direito da esposa grávida, e ao auxílio desemprego para aquele que o perdeu; além do auxílio gás e da possibilidade de matricular os filhos de graça, aprovados automaticamente através dos regimes de quotas nas escolas e universidades públicas; tomando o café da manhã, almoçando e jantando no restaurante público a um real por refeição, muitos moradores daquela comunidade possuíam renda real mensal da ordem seis a sete mil reais, conforme fiquei sabendo. Só não sei quem está, na realidade, custeando tantos benefícios; pois, ao que eu saiba, o governo não produz dinheiro, mas, apenas, arrecada este, através de impostos, daqueles que produzem bens e serviços. Alguém deve estar muito revoltado por ter que pagar esta conta e nem aparecer como o benfeitor de tantas prodigalidades. Pode ser, também, que o meu entendimento sobre esses assuntos esteja totalmente errado, em razão de um raciocínio falho decorrente da ingestão dos fortes medicamentos de uso controlado, de que faço uso diariamente, ou da própria progressão da enfermidade que me acomete.
             Tendo passado todo o dia preparando massa de cimento e assentando tijolos, a noite estava todo dolorido e apenas consegui ler alguns capítulos de ‘O Mundo como Vontade e Representação’, de Arthur Schopenhauer, pegando logo no sono.

(Continua no dia seguinte – nota do autor)


quarta-feira, 29 de junho de 2016

67. Continuação de Diário de um ‘Maluco Beleza’ (Capítulo 2)

Jober Rocha

Capítulo 2
Terça Feira, 04 de março


               Ao acordar esta manhã, ainda trazia viva em minha mente às imagens de um pesadelo que me acometera durante o sono. Sonhara que estava em uma cidade totalmente diferente daquela em que habito. Os prédios eram enormes e em grande quantidade; mas, em que pese tudo isto, as ruas eram vazias de gente e com poucos veículos. Uma placa na calçada, apontando para a direita, dizia: ‘Downtown’. 
                  Caminhando, notei que as ruas eram todas limpas e que os veículos paravam quando alguém colocava os pés na rua. As pessoas, todas bem vestidas, eram educadas e prestativas. Ao passar pela frente de uma loja pude ver como os preços eram reduzidos e os produtos de boa qualidade. Segui caminhando e, aos poucos, fui sendo dominado por um sentimento estranho, não conseguindo discernir bem do que se tratava e do qual não conseguia me livrar. 
                        Ao entrar em uma grande loja de Departamentos, subitamente, me dei conta da razão de minha aflição: - e se eu ficasse preso ali, para sempre? E se não conseguisse mais retornar para o meu bairro de ruas sujas e sem asfalto, com valas negras, com veículos atropelando as crianças e os velhos, com as filas das quais já estava acostumado, com a falta de água encanada, com as casas pichadas por grafiteiros. Ao pensar naquela possibilidade, minha angustia foi crescendo a tal ponto que soltei um terrível grito de desespero, quando subia pela escada rolante. Todos os clientes me olharam com olhares complacentes e tive quase a certeza de que me entendiam e de que compartilhavam de minhas dúvidas e os meus temores. 
                         Desci correndo pela outra escada e ganhei a rua, suando frio e com taquicardia. Como fazer para retornar à minha querida casinha com as paredes descascadas e o muro rachado, no meu adorado bairro e naquele Estado onde me sentia tão feliz? 
                          Sem saber onde me encontrava, mas querendo sair rápido dali, comecei a correr pelas ruas. Vendo uma escada que conduzia para o subsolo, desci a mesma aos pulos. Cheguei a uma plataforma onde, logo em seguida, estacionou um trem cheio de vagões e com alguns poucos passageiros. Pude perceber que tudo era muito limpo e perfumado. Pensei em entrar em um dos vagões, mas me ocorreu que se o fizesse poderia perder-me, para sempre, nas entranhas daquele lugar desconhecido. Em minha mente um único desejo aflorava: voltar para minha casinha empoeirada, naquela rua esburacada, sem iluminação e sem transporte público. 
                        Saindo rápido pelo mesmo caminho que havia feito, pensava: como as pessoas podiam chegar a se sentir felizes em um lugar como aquele? Ao retornar de novo a rua, prossegui em minha sôfrega caminhada, tentando encontrar uma ponte ou um portal, que me levasse ao outro lado daquele pesadelo; isto é, a minha confortável caminha, em meu pequeno quartinho de paredes sujas e mofadas. 
                      Felizmente ou infelizmente tropecei em uma pequena maleta que, ao tombar, abriu-se e deixou a mostra o seu conteúdo, que eram bilhetes de cem dólares, segundo me pareceu, esquecidos dentro daquela maleta aberta na calçada. Ao cair ao solo, senti que batia com a cabeça no meio fio. O choque e a emoção deste acontecimento abriram o portal que me fez despertar daquele pesadelo e me vi, logo em seguida, sentado em minha cama, ofegante e com o coração disparado.
                     Tão logo me recuperei, abri a janela e constatei aliviado que retornara a minha querida casinha, como já disse, com sua velha pintura descascada e com parte do muro quebrado em razão das últimas chuvas. Poder contemplar as crianças brincando de apanhar camundongos e ratos na vala negra da rua, me trouxe uma felicidade sem par. Finalmente estava em casa, feliz no meu cantinho.
                     A simples possibilidade de ter de passar o resto dos meus dias naquela terra distante, onde tudo funcionava direito e em plena paz, me causou tanto mal, por não estar acostumado aquilo, que, durante o resto do dia, fiquei recolhido em casa, saboreando o aconchego da pobreza do meu lar e as deficiências da comunidade em que eu vivia.
                       Quase ao findar o dia e se iniciar o crepúsculo, cochilando em uma pequena poltrona da sala, fui despertado por disparos de fuzil, alguns dos quais perfuraram uma parede da sala, quebraram o lustre e danificaram alguns dos poucos móveis que possuo. Rapidamente me atirei ao solo, como havia aprendido no quartel no tempo em que servira ao Exército.
                           Ali deitado, ouvi muita gritaria na rua e pude perceber que se tratava de uma disputa entre traficantes locais, pelo ponto de venda de drogas daquela comunidade. Este ponto ficava bem na via principal, ao lado de um pequeno posto policial. Imagino que as autoridades permitiam que ele funcionasse vinte e quatro horas por dia, em razão das propriedades terapêuticas das drogas, notadamente no que se refere a supressão da fome e da dor, comuns em locais onde habitam populações carentes e desnutridas e onde as autoridades ainda não conseguiram implantar seus eficientes e modernos hospitais públicos.  No chão, deitado, aos poucos fui sentindo o corpo relaxar e quando dei por mim o sol já estava nascendo novamente no horizonte.


(Continua no dia seguinte – nota do autor)


66. Diário de um ‘Maluco Beleza’ 

(Prefácio e Capítulo 1)

Jober Rocha*

Prefácio

                     Caro amigo leitor, tendo adquirido há alguns meses uma modesta casinha situada em distante subúrbio da cidade, ao dar início a algumas obras, necessárias para torná-la humanamente habitável, me deparei com um velho armário de madeira, abandonado em um vão de escada. Ao retirar o armário, para depositá-lo em um terreno baldio transformado em lixão pelos moradores da comunidade, percebi que dele havia caído um grosso caderno com capa de couro, envelhecido pelo tempo e com algumas páginas meio carcomidas pelos cupins, muito comuns aqui nesta região.
              Folheando o caderno mais tarde, embora ele não mencionasse nenhum nome próprio, constatei que se tratava de um diário elaborado por algum antigo morador daquela humilde residência, que eu havia adquirido em leilão por um preço bastante acessível ao meu reduzido salário de professor. Lendo o diário, verifiquei que o seu autor parecia ser alguém acometido de grave e rara enfermidade mental, reconhecida por ele mesmo em seu diário. Tendo eu achado as suas páginas bastante interessantes, demonstrando o elevado estágio de sua moléstia (quando já não dizia coisa com coisa e só escrevia disparates), achei por bem transcrever tudo o que eu havia lido (evidentemente, corrigindo erros gritantes de gramática que, como professor emérito que sou da nossa língua, eu encontrei em todas aquelas páginas), fazendo antes este prefácio; não só por possuir, volto a dizer como professor emérito de Língua Portuguesa, certa veia literária e gostar de escrever prólogos; mas, sobretudo, para que os leitores se dessem conta de como uma enfermidade mental pode afastar o ser humano da realidade factual, fazendo com que suas percepções dos acontecimentos sejam totalmente distorcidas.
              Pela análise do seu cotidiano, pude perceber que se tratava de um cidadão com razoável cultura; muito embora, as conclusões a que chega, bem como os comentários que faz, sejam todos destituídos de bom senso, para qualquer um brasileiro afinado, como eu, com o comportamento politicamente correto que vigora na atualidade em nosso país.
           O diário, embora abarcando apenas o período de cerca de dois meses, não possui um final, o que me leva a crer que ele tenha sido separado do autor por alguma razão superveniente ou de força maior. Imagino que ele possa ter tido um surto psicótico e que os vizinhos o tenham conduzido, às pressas, para algum dos inúmeros manicômios espalhados pelo nosso Estado.
                      Como a casa foi por mim adquirida em um leilão judicial do qual apenas eu participei, já que era amigo íntimo do leiloeiro, que não avisou a mais ninguém sobre aquele leilão para que eu fosse o único a dele participar (e sair vencedor com o lance mínimo, evidentemente), imagino que o seu autor tenha falecido no local mesmo onde estava internado e a sua casa tenha revertido para o Município, por falta de pagamento dos impostos; razão pela qual este a vendeu daquela forma.
                 Pretendo em retribuição a ele (por haver, com a sua prematura morte, contribuído para que a casa fosse leiloada pela mão do meu amigo) visitar, qualquer dia destes, o cemitério municipal para tentar localizar seu eventual túmulo, onde, após uma breve oração, deixarei algumas flores que apanharei na vala negra em frente à casa que anteriormente foi sua e que agora me pertence. Não tenho nenhuma superstição, mas, não convém ser negligente com as coisas do além; principalmente, quando penso que ele esqueceu aqui em casa o seu diário e que pode desejar prosseguir com o mesmo na nova dimensão etérea onde talvez se encontre. Se assim for, tive o cuidado de xerocar todas as páginas do diário, para guardá-las comigo, e deixar o original em local bem visível da casa, para que ele possa encontrá-lo com facilidade e desaparecer no meio da fumaça, como costumam fazer os espíritos errantes.
             Caso algum dos leitores tenha poderes mediúnicos, gostaria que se informasse com ele sobre o conteúdo da página referente ao dia cinco de março; pois, após a página que trata do dia quatro, vem logo a do dia seis. Com isto, fiquei sem saber o que lhe ocorreu naquele dia.
             Finalizando, se algum leitor, psiquiatra já formado ou mesmo acadêmico, se interessar em obter os originais, para instruir alguma tese de mestrado ou de doutorado sobre a grave e rara enfermidade mental deste cidadão desconhecido, o diário original, por ele mesmo manuscrito, poderá ser comigo negociado (já que sou um professor pragmático e consciente de que tudo nesta vida tem seu preço, sendo o meu bastante reduzido) e posso sempre deixar uma cópia Xerox no lugar do original, já que estou plenamente convencido de que um simples espírito não saberá distinguir uma da outra, tão aperfeiçoados estão os métodos de reprodução gráfica hoje em dia.
                   Por último, nominei a obra de Diário de um ‘Maluco Beleza’, em razão do seu verdadeiro autor, e personagem principal deste diário, me lembrar muito o tipo descrito na musica ‘Maluco Beleza’, de Raul Seixas – tipo aquele com problemas mentais e de comportamento, cujas atitudes contribuíam para alegrar qualquer ambiente, algumas vezes de maneira até admirável.
          Apresentarei o texto em capítulos, diariamente aqui postados devido ao pouco espaço disponível neste blog, cada capítulo correspondendo a um dia do referido diário. Se os estimados leitores julgarem ver no presente texto alguma possível critica deliberada à nossa gente, aos nossos costumes e às nossas instituições, saibam que não terá sido, tão somente, uma simples coincidência...

Capítulo 1
Segunda feira, 03 de março


        Hoje acordei preocupado. Tenho notado, já há algum tempo, que os insetos não aparecem mais em meu jardim. Será que isto ocorre só em meu jardim ou nos demais jardins da vizinhança eles também não estão presentes? - foi esta a pergunta que me fiz, logo após abrir a janela e dar uma longa respirada naquele ar poluído da comunidade em que estou morando.  Será que se trata de um assunto pessoal, entre mim e eles, por conta de alguma formiga que me viram esmigalhar com o pé, ao ir até o portão recolher as cartas e imaginam que fiz aquilo de propósito? Minha preocupação é pertinente, pois, sem eles minhas flores não florescerão e as fruteiras não darão frutos, da forma como sempre fizeram desde que adquiri a casa e resolvi construir um pequeno jardim.
        Fico imaginando que se isto estiver ocorrendo, não só em meu jardim, mas em todos os outros da vizinhança, do bairro, da cidade, do Estado, do país, do mundo inteiro; então, nossos dias estarão contados, pois não teremos mais a beleza das flores e os frutos das árvores. Talvez não tenhamos mais sementes para semear, nem alimentos para colher. Eu sei que existe toda uma cadeia biológica e que todos os insetos são importantes, bem como todos os animais, para o equilíbrio dos Ecossistemas. Entretanto, isto as nossas autoridades também sabem e se não dão importância ao fato, deve ser porque está tudo sob controle. Minha excessiva preocupação com estes pequenos detalhes, com certeza, é conseqüência da moléstia que me acomete e cujo nome, de tão complicado que é, jamais consegui decifrar nas letras pequenas e tortas dos meus psiquiatras, em seus laudos médicos encaminhados para os planos de saúde.
        Estou convencido de que muitas das questões que me atormentam são frutos, não só do avanço da moléstia, mas, também, da grande quantidade de medicamentos que me obrigam a ingerir diariamente.
        Ao dar um passeio pelas ruas da comunidade, como me recomendou o psiquiatra (isto para que eu mantivesse contato com a realidade e não me deixasse dominar por uma tendência ao isolamento mental, típico da minha doença), notei que havia muito lixo espalhado pelas calçadas, inclusive dejetos de animais nos quais acabei pisando ao saltar por sobre uns pneus velhos abandonados e cheios de água da chuva.
        Vendo alguns jovens pichar a parede de uma casa, fiquei admirando o trabalho que faziam. Um deles, tendo subido sobre as costas do outro, tentava atingir as partes mais altas da residência para continuar fazendo seus desenhos. Os desenhos me pareceram apenas rabiscos e garranchos, mas, certamente, deveriam conter alguma forma de arte, pois, caso contrário, os jovens não perderiam seu precioso tempo com algo tão arriscado. Pouco depois, tendo terminado o que fazia e me vendo os observar, um deles, se dirigindo a mim, exclamou: - Dá o fora maluco, senão você vai acabar na vala!
        Realmente, pensei, em um dia chuvoso e com as ruas enlameadas como estas do bairro em que moro (aonde o asfalto e o esgoto ainda não chegaram e as valas negras correm paralelas às ruas de terra batida), é muito fácil qualquer um escorregar e acabar na vala, principalmente se idoso como eu.
        Após o almoço e um descanso que se estendeu até por volta das seis horas da tarde, tomei os remédios (que consomem quase totalmente meu salário de aposentado) e me sentei, solitário, para assistir um pouco de televisão. Em um dos canais, um pastor ameaçava com o fogo do inferno e a ira de Deus, àqueles que estavam em débito com a sua igreja. Em outro canal, o pastor afirmava que a quantia do fiel depositada em suas mãos seria multiplicada por dez, pelo Criador de todas as coisas. Aquilo tudo me pareceu um estelionato religioso; mas, como os canais de televisão são concessões do Estado (e as autoridades, com certeza, também assistem televisão), estou convencido de que o governo sabe de tudo aquilo que é veiculado pelas emissoras. Assim, como permite que aquelas matérias sejam veiculadas, sou levado a supor que eu é que esteja tendo uma imagem distorcida da realidade em virtude da grave moléstia que me acomete.
            Mudando de canal por várias vezes, acabei parando em um que transmitia uma novela. Depois de alguns minutos contemplando a tela, talvez, volto a dizer, em razão dos fortes remédios que ingerira, me pareceu que todos os personagens defendiam apenas os vícios, vícios estes que todos eles praticavam.
        Imaginei logo que meu problema mental pudesse estar se agravando, em que pese os medicamentos que tomava, distorcendo a realidade dos fatos. Com certeza, os personagens não haviam dito nada daquilo que eu ouvira e que, na verdade, minha mente enferma havia construído tudo aquilo a partir da minha insanidade.  Talvez fosse o caso de marcar consulta urgente com o psiquiatra que me atendia pelo plano de saúde.
          Ainda tentei alguns outros canais, em busca de notícias sobre Ciência, Filosofia, Conhecimentos Gerais, História e Política, em seu sentido mais amplo; mas, como nada encontrei, tomei um chá bem quente, me deitei e continuei lendo ‘A Genealogia da Moral’, de Friedrich Nietzsche, até adormecer.     

(Continua no dia seguinte - nota do autor)

_*/ Economista, M.S. e Doutor pela Universidade de Madrid, Espanha. 


terça-feira, 28 de junho de 2016

65. Um político honesto**

Jober Rocha*


                 Não desejo que aqueles que me leem pensem que brinco com seus sentimentos e com suas emoções, ao denominar este texto de ‘Um político honesto’. Sei que é difícil imaginar algo parecido; porém, o fato que passarei a narrar foi por mim mesmo testemunhado, já que convivi por longo tempo com o seu protagonista principal, como amigo particular e vizinho de porta e, para mim, também foi uma grande surpresa o desfecho deste caso tão insólito.
          Desde pequeno fomos vizinhos em um pequeno prédio residencial do subúrbio. Crescemos juntos como colegas de escola, companheiros de partidas de futebol e, mais tarde, já na adolescência, como frequentadores assíduos dos bailes e das festas nas casas de jovens do bairro.
                  Ele, desde garoto, possuía o dom da palavra e do convencimento alheio. Toda vez que alguém aniversariava, ele era o escolhido para fazer a saudação; panegírico este que emocionava não só o aniversariante, como também a sua família e todos os demais convidados. Sempre que ocorria alguma discussão entre duas ou mais pessoas, em um ambiente no qual ele se encontrasse presente, a simples intervenção dele na conversa fazia com que a opinião de todos os presentes convergisse para a dele; tudo isto em razão dos seus argumentos e do poder de persuasão que tinha. 
                 Nunca - que eu tivesse visto - falou algum palavrão, faltou com a verdade, agiu com injustiça, fez alguma covardia, foi indelicado com alguém, apropriou-se de algo que não lhe pertencia, maltratou algum ser humano ou, mesmo, qualquer animal.
                  Era estimado por todos, na escola, no clube, na vizinhança, no bairro.
               Talvez em razão disto tudo, quando atingiu a maioridade, seus amigos mais chegados sugeriram que ele ingressasse na política partidária, como forma de poder contribuir para a melhoria do bairro onde vivera a maior parte da vida e onde possuía uma multidão de amigos.
                Inicialmente contrário à ideia – já que dentre todas essas suas qualidades, ainda existiam as da modéstia e da premonição – relutou durante alguns anos, mas, finalmente, sucumbindo à pressão dos amigos acabou filiando-se ao Partido dos Suburbanos Inconformados e Unidos – PSIU e candidatou-se a uma cadeira de vereador na Assembléia Legislativa do município, nas eleições daquele ano.
               Durante os comícios pelas praças do bairro, a multidão em peso acorria para ouvi-lo falar sobre as suas idéias e as propostas de melhoria para a comunidade, que faziam parte de sua plataforma política.
              Foi eleito vereador com milhares de votos. Creio que o bairro inteiro - além de outros bairros vizinhos - deu seu voto para ele.
             Empossado, começaram os seus problemas. Tendo recusado um cargo de direção na administração municipal, para que o suplente ocupasse a sua vaga de vereador e ele, na função de diretor de órgão municipal, obtivesse recursos financeiros para o partido pelo qual se elegera - através de concorrências fraudadas e superfaturadas - foi logo mal visto pelo seu próprio partido, que, a partir de então, passou a considerá-lo como um traidor.
                Tendo, logo a seguir, recusado uma verba mensal concedida pela prefeitura – oferecida para todos os vereadores – destinada a comprar seus votos favoráveis, naquelas matérias do interesse do prefeito, passou a fazer parte das listas negras, tanto da casa onde se reunia para legislar quanto da prefeitura.
              A partir de então, todos os projetos que apresentava eram sistematicamente rejeitados pelos seus pares. Era sempre visto sozinho em seu gabinete; nem seus próprios assessores e assistentes apareciam mais por lá.
               Os eleitores do bairro, depois de algum tempo, vendo que nenhuma das promessas que ele havia feito fora cumprida (pois o bairro continuava igualzinho como sempre fora: ruas sujas, esgotos a céu aberto, terrenos baldios com o mato alto, falta de coleta de lixo, falta d’água, ruas esburacadas, hospitais carentes de médicos, pouco transporte coletivo, etc. etc. etc.), passaram a falar mal dele.
              Diziam que era igual a todos os demais candidatos; isto é, prometia apenas para obter votos, já sabendo, de antemão, que nada faria daquilo que havia prometido.
               A noiva que possuía na ocasião acabou por abandoná-lo, ao saber das coisas escabrosas que ele contava. Abandonou-o, porque não via nele nenhum futuro na política e nem na vida pessoal. A recusa dele em receber aquela pequena fortuna que lhe havia sido oferecida, foi a gota d’água que entornou as taças de champanhe com que brindariam o casamento já marcado. Como ser a feliz esposa de um político – pensava ela – que não cuidava do conforto e bem estar da família e dos futuros filhos que, certamente, pretendiam ter?
             Os eleitores, antes contados aos milhares e agora contados às dezenas, o evitavam sempre que podiam. Não frequentavam mais o bar do Manoel, nas quintas feiras - dia em que ele por lá costumava aparecer, desde muito antes de se tornar um político – para não encontrá-lo e, eventualmente, chegar até as raias de agredi-lo fisicamente, durante alguma discussão mais acalorada.
               Seus poucos amigos achavam que em defesa dos eleitores e de suas demandas, todos os comportamentos ilícitos (mesmo aqueles mais viciosos), eram válidos na vida política. Eram adeptos do ‘- Rouba, mas faz!’; frase dita com certo orgulho por eleitores paulistas, em determinada ocasião, referindo-se a um político local. Todos o criticavam por não haver aceitado o suborno, que, mantendo-o ‘bem’ na política municipal, permitiria a eles - seus eleitores - verem atendidas as suas reivindicações em prol do bairro em que residiam. Todos eles, em seu lugar, teriam aceitado aquele ‘acerto’ proposto pelo prefeito e, por isso mesmo, não entendiam o seu comportamento ‘moralista’ e nem o perdoavam.
               Na assembléia legislativa onde ia todos os dias, ele sentia-se como um ‘peixe fora d’água’. Era como se falasse outra língua (gaélico ou provençal, por exemplo), que nenhum dos seus pares entendia.
                    Esperou o mandato terminar e deixou o partido e a política, para sempre. De que adiantava – pensava ele- pelejar por um povo acostumado a levantar templos aos vícios e cavar masmorras às virtudes? Um povo que aceitava o mal, buscando angariar o bem para si mesmo. Eleitores que eram coniventes com a fraude, desde que aquilo resultasse em alguma melhoria para o seu bem estar pessoal. Que passavam por cima da moral e dos bons costumes se vislumbrassem, com isto, algumas benesses para si mesmos, para suas famílias ou para os seus grupos sociais.
                            Assim, meu amigo concluiu que era melhor viver isolado em uma ilha deserta, longe daqueles eleitores oportunistas e egoístas.
                               Isso, meus caros leitores, foi o que ele declarou, particularmente, a mim como seu amigo e antigo companheiro de juventude e, publicamente, perante a Comissão Parlamentar de Inquérito – CPI, que apurava o desvio de recursos e a malversação de fundos públicos; já que, ele era um dos principais acusados de chefiar quadrilha que fraudava concorrências, extorquia empresários e participava de inúmeros negócios escusos no município e no Estado. Fora descoberto ao ser investigado pelo Ministério Público, em razão da aquisição de milionária e cinematográfica ilha (com dezenas de suítes, varandas, salas, garagens de barcos, porto para atracação de iates e até aeroporto para pouso e decolagem de aviões e helicópteros), situada no litoral do Estado e adquirida por cinqüenta milhões de dólares. Vivia na ilha com a amante, depois que terminou o noivado com a moça do bairro, que namorava desde os tempos de colégio.
                             Até hoje, ainda não sei em quem acredito - se nele, meu amigo e vizinho de infância, ou se nos promotores que o acusam; pois ele sempre me pareceu tão honesto...


_*/ Economista, M.S. e Doutor pela Universidade de Madrid, Espanha.

_**/ Publicado no Jornal A Palavra nº 165, novembro de 2015. APA/BNDES. Rio de Janeiro, RJ


64. Vai Trabalhar Vagabundo!**

Jober Rocha*


                    Fazia 15 anos que o jovem morava naquela favela, no alto do Morro do Esqueleto, em um subúrbio do Rio de Janeiro. Possuía dois irmãos de pais diferentes e uma irmã. Havia nascido ali e, desde pequeno, nunca fora igual aos seus outros irmãos e a alguns amigos locais: não gostava de futebol nem de carnaval e jamais havia trabalhado como ‘avião’ ou ‘olheiro’ da ‘boca de fumo local’, bem próxima de sua casa. A única coisa de que gostava era de ler e de estudar. A mãe costumava dizer a ele e aos demais familiares que vivendo daquele jeito, trancado em casa e lendo, nunca daria para nada e jamais seria alguém na vida.
                               Certo dia, um grupo de turistas alemães em visita ao Rio de Janeiro, subiu o morro para conhecer de perto uma típica favela carioca.
                                   Um deles, já idoso e cansado, sentou-se em uma pedra próxima de onde o jovem se encontrava, do lado de fora do seu barraco, também sentado e olhando triste para o mar distante.
                                   O turista, um senhor de cabelos brancos e pele muito branca, era simplesmente o reitor de uma Universidade na Alemanha e professor catedrático de Filosofia, conforme o jovem ficou sabendo conversando com o professor em alemão. Conversaram durante horas. Falaram sobre as teorias filosóficas de Spinoza, Kant, Schopenhauer e Nietzche; sobre a Crítica da Razão Pura, sobre a Crítica da Razão Prática, sobre a Genealogia da Moral e sobre o Princípio da Razão Suficiente.
                              Passou o jovem, a partir de então e após o retorno do reitor à Alemanha, a corresponder-se com ele. Em breve o professor convidou o jovem para estudar naquele país, com tudo pago pelo governo alemão.
                                Embora contra a vontade da mãe, ele viajou para Berlim decidido a nunca mais retornar ao Brasil.
                        Na Alemanha terminou seus estudos matriculando-se, a continuação, na Universidade onde, após concluir o curso de graduação em Filosofia, cursou o mestrado e o doutorado. Como era excelente aluno, com o apoio do reitor foi indicado para o cargo de professor assistente e, pouco depois, para Diretor-Geral do Departamento de Filosofia daquela Universidade. 
                                Passou, a partir de então, a residir em um pequeno apartamento de quarto e sala alugado, no centro da cidade, indo de metrô todos os dias para a Universidade; já que, com o seu salário de professor, ainda não tinha economizado o suficiente para comprar um carro.
                            Certo dia, batendo no peito a saudade, resolveu vir ao Brasil em um voo fretado, para rever a família que não via há quase 20 anos.
                               Aqui chegando, foi encontrar a mãe na piscina da mansão na Barra da Tijuca, para onde recentemente a família toda havia se mudado, sentada em uma espreguiçadeira, saboreando camarões empanados e tomando champanhe.
                               Ao vê-lo entrar, a mãe foi logo dizendo: - Seus irmãos não estão. Depois que você partiu, eles foram apadrinhados por uma ONG estrangeira chamada ‘The Poverty is Beautiful’. Os dois jogam atualmente em um time de futebol na Itália. Sua irmã, descoberta por cinegrafistas estrangeiros sambando na Escola de Samba Unidos e Apertados, hoje é artista de filmes eróticos e reside nos Estados Unidos. 
                        Os três enviam todos os meses, dinheiro para investimentos que administro comprando imóveis, ouro e aplicando na Bolsa de Valores. Já temos vários apartamentos no bairro, além de algumas empresas, ações e participações.
- E você, como vai indo na Alemanha – perguntou ela, displicentemente?
                              Ele, timidamente, respondeu que era o Diretor-Geral do Departamento de Filosofia da Universidade, com grandes chances de em pouco menos de dez anos vir a se tornar Reitor.
                             Ela, então, saboreando mais um gole de champanhe, disse ao filho: 
- Bem feito, quem mandou ir embora da sua comunidade e do seu país. Eu, no fundo, sempre soube que você não daria para nada, que jamais seria alguém na vida! 
- Não venha agora nos pedir auxílio; pois, de mim e de seus irmãos, você apenas ouvirá: - Vai trabalhar vagabundo!


_*/ Economista, M.S. e Doutor pela Universidade de Madrid, Espanha.

_**/ Conto premiado no VIII CLIP-Concurso Literário de Presidente Prudente, SP. Prefeitura Municipal de Presidente Prudente, SP.



domingo, 26 de junho de 2016

63. As Dez Perguntas do Filósofo


Jober Rocha*


          Reza antiga lenda que um filósofo, em certa ocasião, julgando-se inspirado e cheio de questionamentos Metafísicos, sentou-se a sombra de uma paineira e começou a escrever um texto endereçado ao Criador de todas as coisas. O texto, composto por dez perguntas, cujas respostas o filósofo gostaria de as verem todas respondidas pelo próprio Criador, me chegou às mãos por uma destas coincidências fortuitas que ocorrem a cada cem anos, e possuía o seguinte teor:

             Estimado Criador do Universo (na hipótese de que você realmente exista e que, também, seja o responsável pela criação da vida humana), serei eternamente agradecido por me haver dado o sopro da vida e por permitir que, através de inúmeras encarnações (se é que estas também ocorrem), meu espírito possa evoluir em busca da luz do conhecimento e da perfeição espiritual. Entretanto, por mais que as religiões e as correntes filosóficas tentem explicar aos seres humanos, quem na realidade somos nós, de onde viemos e para onde vamos; além das razões pelas quais a civilização humana se apresenta tão desigual e mesquinha, da forma como a conhecemos nesta nossa passagem pelo planeta Terra, algumas dúvidas ainda insistem em permanecer na minha mente e em meu coração de filho grato; porém, de espírito muito curioso, amante da sabedoria e da verdade e um pouco rebelde.
          Minha primeira pergunta diz respeito à razão pela qual você, pai justo e imparcial que é, consentiu em privilegiar determinados povos e determinadas religiões com o seu amor e as suas benesses, em detrimento de outros povos e de outras religiões; bem como, qual o motivo que o levou a privilegiar o homem em relação à mulher. Digo isto porque muitos povos, nesta Terra, sempre afirmaram que fizeram um pacto com você e reafirmam, em alto e bom som, que são os povos por você escolhidos. Por sua vez, a maior parte das religiões, aqui mesmo neste planeta, afirmam que os seres humanos só chegarão a você através delas. Tais religiões possuem, até mesmo, um representante seu, que, da mesma forma como você sempre o foi, também são infalíveis em suas decisões. Além disto, a maioria das religiões por aqui existentes possui templos luxuosos que necessitam, cada vez mais, de recursos financeiros para se expandirem e, algumas delas, falando em seu nome através de livros que consideram sagrados, apresentam a mulher como um ser inferior ao homem e a discriminam desde tempos imemoriais. Dizem até que o homem foi criado primeiro, evidenciando uma inegável descrença em sua onipotência; posto que, com o seu incomensurável poder, certamente, deverá ter criado ambos no mesmo momento. Serão verdades estas afirmações daqueles que se apresentam como seus representantes aqui na Terra? Você, realmente, além de ter representantes, possui preferências por povos, religiões, raças e sexos? Porque você só permite que haja santos e só realiza milagres no seio de uma determinada religião? Você necessita mesmo de templos luxuosos para se hospedar em suas passagens pela Terra, ou você se contentaria em habitar lugares mais modestos, como os mares, os rios, as montanhas e os corações dos seres humanos?
            Por outro lado, qualquer religião que não objetivasse o domínio de corações e das mentes (pelo poder que tal fato representa), deveria ver nas demais religiões, grandes parceiras de um mesmo fim; qual seja o de agradecer nossas existências humanas ao Criador do Universo e da vida, e não ficar considerando as demais como inimigas, em um combate sem tréguas, como ocorre desde tempos imemoriais com as principais religiões aqui neste planeta.
          Perdoe-me por apresentar estes questionamentos, mas acredito que aqui na Terra estejam propagando boatos inverídicos acerca de Suas ações com respeito a nós, seres humanos, para que venhamos a nos indispor uns contra os outros e todos contra o nosso criador.
       Minha segunda pergunta, caso não sejam verdadeiras estas preferências anteriormente mencionadas, se refere, ainda, a razão pela qual Você tem permitido, desde o início dos tempos até o tempo presente, a existência de seres dominadores e de seres dominados. Neste caso, não estaria realmente evidenciada a Sua preferência por alguns de Seus filhos, em detrimento dos outros? Os dominadores (reis, caciques, imperadores, califas, presidentes, elites, etc.), a quem todos estamos subordinados, sempre afirmaram que chegaram até onde chegaram, e que dominavam os povos e as populações a eles submetidos, pela graça de Deus; isto é, pelo Seu consentimento e aprovação, afirmando, ainda, que Você os autorizou a continuar eternamente dominando os seres humanos, quer por hereditariedade, quer por alternância no poder entre eles mesmos (grupos, famílias, elites, etc.). Caso não sejam verdadeiras estas afirmações, sugiro que, de alguma forma, dê ciência às Suas criaturas da falsidade de tais assertivas e promova uma total reviravolta nas crenças e crendices que por aqui vicejam.
             A terceira pergunta me ocorre, quando vislumbro a desigualdade reinante no planeta como um todo: alguns países são mais desenvolvidos que outros culturalmente, economicamente, socialmente, etc. Algumas pessoas são mais bem aquinhoadas do que outras, seja em termos de beleza física, de saúde, de riqueza, de inteligência, etc. Creio que se isto ocorre é porque Você assim o quis ou permitiu e, neste caso, não estaria também privilegiando alguns filhos em detrimento de outros?
            Reconheço da minha parte que a evolução espiritual, assim como todo tipo de evolução, ocorre através de um processo dialético, no qual a tese e a antítese resultam na síntese, síntese esta que não é mais nem a tese nem a antítese; porém, alguma outra coisa que representa uma simbiose entre as duas. Assim, para que haja evolução espiritual, o ser humano deve conviver com as virtudes e com os vícios em seu caráter e, para a necessária evolução material dos povos e dos indivíduos, há necessidade da existência do contraditório e das diferenças, tanto entre os indivíduos quanto nas relações sociais. Entretanto, o primeiro pensamento que ocorre aos menos aquinhoados é o de que foram alvos de uma grande injustiça; pois, já iniciaram com uma mal largada na corrida pela existência. Tal pensamento não deixa de ser pertinente, principalmente, ao considerarmos que vivemos em um meio inóspito em que competimos entre nós mesmos e com as demais espécies existentes no planeta. A competição atual pelos alimentos, pelo espaço, pelos recursos naturais, pelos empregos e pela posse de bens, a que fomos levados ao longo dos tempos, independe daqueles seres humanos, cuja matéria e espírito estão chegando a este planeta neste exato momento, através do nascimento; pois, é fruto de decisões tomadas, tanto anteriormente quanto na atualidade, por elites econômicas, políticas, religiosas e militares, que dominam os países e o planeta desde primitivas eras. Suponho que Você esteja ao par disto tudo e que tenha permitido que assim seja; embora eu considere que um pai não deva privilegiar desigualmente seus filhos, dando mais para uns e menos para outros.
        Com a hipótese de múltiplas encarnações, no entanto, posso imaginar que aquilo que hoje me afigura como uma tremenda injustiça, amanhã, poderá se revelar como fruto da maior sabedoria. Explico-me melhor: se nesta encarnação pertenci à plebe rude e ignara e fui pobre, feio, sem saúde e desprovido de inteligência, em uma próxima encarnação poderei ser totalmente o oposto, além de renascer em uma família pertencente à nobreza das classes dominantes. Todavia, vejo nesta hipótese, ainda, a manutenção da injustiça; pois, a plebe humilde, que preza as virtudes e combate os vícios, é, quase sempre, mais virtuosa que a elite que a domina e explora viciosamente. Assim, não creio que tendo feito parte da plebe em uma encarnação, na próxima poderei fazer parte da elite dominante; pois isto seria uma involução espiritual e, como algumas doutrinas espiritualistas bem deixam claro, tal involução não ocorre com os espíritos. A existência, pura e simples, de uma única vida (isto é, uma única encarnação), como propalado por algumas religiões, salientaria ainda mais esta injustiça, pois não haveria a possibilidade do rodízio, tal como ocorre em uma dança das cadeiras; isto é, quem esteve em pé nesta existência, continuará eternamente em pé, não tendo a possibilidade de vir a sentar-se em uma próxima. Creio que me fiz entender...
           A quarta pergunta que tenho a fazer, se relaciona com aquilo que os filósofos chamam de Teodiceia; isto é, com a razão pela qual Você, todo poderoso e de bondade infinita, permite o sofrimento de Seus filhos. Reconheço que o ser humano sempre aprende pelo caminho mais difícil e que não viemos a este mundo para desfrutar de uma existência de total felicidade (como já diziam os filósofos Estoicos, Céticos e Cínicos, ao contrário dos filósofos Epicuristas que assim pensavam); pois, segundo minha convicção, está só seria destinada aos espíritos superiores e, assim mesmo, quando desencarnados. Reconheço também que o sofrimento humano é devido, conforme sabiamente afirmou Sidarta Gautama muito antes do nascimento de Jesus Cristo, aos anseios, aos desejos e aos apegos para a satisfação dos sentidos; ou seja, à realização das vontades do Ego, que prende o indivíduo ao ciclo das existências. Ao se eliminar o Ego, o sofrimento desapareceria. Todavia, segundo a concepção de vida que ora prevalece na sociedade terrena, o Ego é necessário para a evolução social do planeta e para que os Sistemas Políticos e Econômicos existentes sobrevivam e se expandam; isto é, os seres humanos precisam consumir cada vez mais, satisfazendo seus Egos, para que as indústrias e as empresas produzam, gerem empregos, paguem os impostos que custeiam as obras públicas, etc., etc., etc.
              Vejo nisto uma contradição, que, certamente, Você já terá percebido muito antes do que eu. Como, todavia, permite que as coisas assim continuem a se desenrolar, não consigo atinar como pode desejar que cheguemos a evoluir espiritualmente, nesta existência, se:

1. Para a evolução espiritual é necessário que as virtudes prevaleçam sobre os vícios e que os seres humanos se desapeguem dos desejos materiais, que os mantêm presos as existências encarnadas;
2. Para que os seres humanos possam sobreviver e se reproduzir, nos moldes em que a sociedade atual está estabelecida, certamente com o seu consentimento, é necessário que tenham um forte apelo consumista: isto é, que os indivíduos desejem cada vez mais bens materiais, para que as rodas da engrenagem política, econômica, psicossocial e militar continuem se movimentando, gerando empregos, pagando impostos, fazendo guerras, matando pessoas, construindo e destruindo; em suma, que através da prevalência dos vícios o Sistema continue a se expandir, permitindo que os espíritos continuem a ir e a vir, desta existência para outras e de outras para esta;
3. Como qualquer ser humano pode ver, as duas hipóteses anteriores são totalmente conflitantes; mas, estou certo de que existe uma razão para que assim seja e que eu é que não tenha conseguido percebê-la. Existindo esta razão, rogo para que, com respeito a ela, cientifique todos aqueles que pensam como eu, pois é muito ruim saber que devemos seguir pelo caminho indicado por Você e constatar que as autoridades que nos comandam exigem que sigamos pelo caminho por elas escolhido, diferente do Seu. O conflito gerado internamente, motivado por esta contradição, tem influído enormemente no aumento do stress, da depressão e dos distúrbios mentais das Suas criaturas.
              A quinta pergunta se refere aos cataclismos e aos grandes desastres, naturais ou não, que, periodicamente, afligem as populações do planeta e que alguns costumes antigos e algumas religiões afirmam haverem sido provocados por Você, pelo fato de nós, seres humanos, nos termos distanciado de Seus desejos e ensinamentos (parece que na antiguidade, este foi o caso das cidades de Sodoma e Gomorra e do continente da Atlântida, segundo dizem). Creio que em qualquer população, de qualquer parte do mundo, existam sempre indivíduos cujos espíritos se encontram em diferentes graus de evolução (uns muito elevados, outros medianamente e outros, ainda, em estágios atrasados de evolução). Um cataclismo (terremoto, tsunami, erupção vulcânica, etc.), por vezes, mata milhares de pobres indivíduos de uma só vez, destruindo, quase sempre, suas moradias, cidades e vilas. Uma queda de avião ou o naufrágio de um navio, por vezes, ceifa centenas de vidas em um único momento. Evidentemente que nestes casos, muitos espíritos evoluídos que já poderiam deixar esta existência, desencarnarão junto com espíritos ainda não evoluídos, que, talvez, ainda necessitassem aqui permanecer um pouco mais. Embora saiba que tudo tem um propósito e que Você é fonte de amor e de infinita bondade, não consigo atinar sobre a necessidade de um efeito pirotécnico de tamanha magnitude trágica, para recolher de volta à dimensão espiritual aquelas almas cujo prazo de validade já vencera.  Poderiam todos aqueles infelizes desencarnar no aconchego do lar, vítimas de um simples infarto, de uma súbita queda de escada ou de alguma moléstia grave; a não ser que Você busque na tragédia destes eventos, impor o medo sobre as pobres almas sobreviventes, alertando para a necessidade de respeitarem e temerem as coisas do além. Se, realmente, Você é o verdadeiro idealizador dos cataclismos e dos grandes desastres, procure selecionar melhor a ocasião, o local e os participantes. Como sugestão, poderia ser incluído um maior número de dominadores como vítimas destes eventos, de modo a tornar um pouco mais suave a existência dos dominados.
              A sexta pergunta está relacionada com a morte de crianças e de bebês. A explicação religiosa e espiritualista para tal fato me afigura como tristemente pobre. Dizer que faltava muito pouco para que aqueles espíritos atingissem a necessária evolução e que eles retornaram a este planeta para completar o breve tempo que lhes faltava, é uma explicação que tenta desmerecer Sua onisciência e Sua onipotência. É evidente que um pouco mais de vida em alguma das existências anteriores poderia proporcionar a evolução que faltava àqueles espíritos e evitar toda a dor dos pais e familiares enlutados destas crianças e bebês. Dizer que a morte prematura deles tinha por objetivo a evolução espiritual dos pais, me afigura também como uma tortura psicológica, não condizente com a Sua tradição de amor incondicional. Creio, mesmo, que todos os seres humanos deveriam ter o direito de viver um determinado número de anos, igual para todos, de maneira a que os seus espíritos tivessem a mesma oportunidade de evoluir nesta existência, no que se refere ao tempo de permanência no planeta. Em não sendo assim, muitos espíritos poderão questionar: - “Puxa vida, logo agora, quando eu estava evoluindo rapidamente, foram me chamar de volta”.
               Creio que esta minha sugestão poderia ser levada em consideração e o assunto repensado com mais calma e, talvez até, modificado; já que, antigas decisões tomadas em sete dias (conforme rezam as escrituras) se me afiguram como tempestivas para tão importantes temas.
            Minha sétima pergunta diz respeito ao fato de, segundo algumas teorias religiosas, ao encarnar perdermos toda a consciência de nossas vidas anteriores. Como Você nunca se pronunciou sobre este assunto de maneira categórica, diretamente para as suas criaturas, mas, apenas, mandou recados através de supostos representantes Seus, fica difícil para muitos de seus filhos entenderem quais os reais objetivos da Criação. É como receber um frasco de medicamento sem bula, quando não somos médicos; ou seja, não saberíamos quando e como usar aquele remédio e para qual enfermidade serviria. Como sei que os remédios devem ser tomados com receita médica e que devo evitar a automedicação, acredito que o mesmo deveria se passar com relação à evolução espiritual. Os seres humanos deveriam ser informados, diretamente por Você, sobre quem haviam sido em outras vidas, o que Você espera deles nesta existência e como deveriam proceder para atender aos Seus desígnios para a vida deles. Caso contrário, ouvindo Seus desejos por intermédio de outras vozes, pode ocorrer o fato de que sigam por um caminho totalmente oposto àquele por Você desejado, por haverem entendido mal a orientação de seus mestres, ou por seus mestres haverem entendido mal a Sua orientação. Por outro lado, se alguns resolverem seguir as próprias intuições, e estas os levarem, também, para caminhos diferentes daqueles por Você planejados, não poderá jamais lhes imputar nenhuma culpa, pois, afinal, Você não lhes disse qual era o caminho que desejava que eles seguissem.
                 Minha oitava pergunta está relacionada ao fato de, segundo dizem e acreditam muitos, Você haver beneficiado com sua atenção e favores especiais alguns seres, em detrimento de outros. Novamente, me explico melhor: trata-se daquilo que diz respeito aos denominados ‘milagres’.
             Inúmeros filósofos, muito mais sábios do que eu, meditaram sobre esta matéria anteriormente, e as conclusões a que alguns deles chegaram, como Você bem sabe, são apresentadas a seguir:
                O filósofo e escritor Jean Marie Arouet, conhecido como Voltaire, em seu ‘Dicionário Filosófico’, afirma que: - “Segundo as idéias aceitas, os milagres seriam violações das leis matemáticas, divinas, imutáveis, eternas. Mediante essa exposição, o milagre seria uma contradição; já que uma lei não pode ser violada”. Voltaire afirma, ademais: - “Deus nada pode fazer sem razão, sendo impossível conceber que a natureza divina trabalhasse para algum homem, em particular, em detrimento dos outros; se constituindo a mais absurda das loucuras, imaginarmos que o Ser Infinito invertesse, em favor de alguns, o movimento dessas imensas molas que fazem mover o Universo inteiro. Assim, ousar supor que Deus realiza milagres é realmente insultá-lo (se é que os homens podem insultar a Deus), e desonrar de certo modo a divindade”. Voltaire cita, ainda, que, ao perguntarem a um filósofo o que diria se visse o sol deter sua marcha e os mortos ressuscitarem, o filósofo teria respondido: - “Tornar-me-ia Maniqueísta e diria que existe um principio que desfaz o que o outro fez”.
                   O filósofo Baruch Spinoza afirmava: - “Contra a natureza, ou acima da natureza, o milagre não passa de absurdo e Deus era mais bem conhecido graças à ordem e à necessidade da natureza do que por pretensos milagres”.
                Alguns autores modernos especulam que, na impossibilidade da alteração de leis universais, imutavelmente por Você mesmo criadas, Deus atuaria, apenas, nos eventos probabilísticos. Assim, se um indivíduo tem grande probabilidade de contrair uma doença mortal, ou sofrer algum revés, Você poderia, em razão das súplicas e do merecimento deste, reduzir esta probabilidade, livrando-o completamente do mal.
                    A questão pelo visto continua e ainda continuará por muito tempo em aberto, na ausência de um pronunciamento oficial Seu a respeito do assunto. O fato é que muitas religiões usam esta possibilidade para angariar prestigio e fortuna, em Seu nome.
                   As igrejas e a própria doutrina espírita enfatizam, para os seus adeptos, a ideia do milagre e da ‘cura sobrenatural’ ou ‘mediúnica’, como forma de manter seus fiéis ou adeptos sempre vinculados àquelas instituições e aos seus sacerdotes, médiuns ou dirigentes.
                   A igreja católica chegou a criar centros onde tais milagres, supostamente, aconteceriam com certa freqüência, como Lourdes (na França), Fátima (em Portugal) e Aparecida do Norte (no Brasil). As igrejas evangélicas fazem com que os supostos milagres, ocorram dentro dos próprios templos (com pastores fazendo supostas curas milagrosas, nos cultos ao vivo e naqueles transmitidos pela televisão, exorcizando os demônios dos fiéis); da mesma forma, o espiritismo também propicia supostas curas mediúnicas nos próprios centros espíritas. Em um destes centros, em meu país, um médium que supostamente receberia o espírito de um médico alemão, está respondendo a dezenas de processos, cíveis e criminais, por lesões corporais graves, ocorridas em cirurgias mediúnicas, por ele realizadas em frequentadores do centro espírita onde atua, com a utilização de facas e tesouras não esterilizadas.
             Em minha modesta opinião creio que, com Sua onisciência, saberá das necessidades evolutivas e das aflições e sofrimentos de todas as suas criaturas, e estou convencido de que os pedidos que, eventualmente, algumas Lhe dirijam, não deverão ser suficientes para alterar todo o planejamento para elas efetuado, prévio à encarnação e elaborado ainda na dimensão etérea, visando à evolução espiritual daquelas criaturas.
               A nona pergunta que tenho a fazer, refere-se à questão do Livre Arbítrio e do Determinismo. As religiões usualmente adotadas no Ocidente afirmam que todos os seres humanos possuem Livre Arbítrio, enquanto as religiões adotadas no Oriente reafirmam o Determinismo da existência humana. Da mesma forma, as correntes filosóficas e os filósofos não têm uma posição unânime sobre o assunto. Assim, existem as seguintes principais correntes e posicionamentos filosóficos, relativamente ao assunto, conforme Você certamente já sabe:

Principais Correntes Filosóficas
1. Determinismo Mecanicista e Teleológico: Rejeita a ideia de que os homens possuem livre arbítrio,
2. Libertarísmo: Aceita que os indivíduos possuem livre arbítrio pleno,
3. Indeterminísmo: Aceita que os indivíduos possuem livre arbítrio e que as ações que praticam são efeitos sem causas,
4. Compatibilísmo: Aceita que o livre arbítrio existe mesmo em um universo sem incerteza metafísica; isto é, seria um livre arbítrio que respeitaria as ações ou pressões internas e externas,
5. Incompatibilísmo: Entende que não há maneira de reconciliar a crença em um universo determinístico com um livre arbítrio verdadeiro.

               Com respeito ao posicionamento dos homens de Ciência terrestres, sobre o tema do Livre Arbítrio versus Determinismo, o pensamento científico, de uma maneira geral, como Você também já sabe, vê o Universo de maneira determinística, e alguns pensadores científicos creem que para predizer o futuro é preciso, simplesmente, dispor de informações sobre o passado e o presente. A crença atual, entretanto, consiste em uma mescla de teorias determinísticas e probabilísticas.   
                     Como Você pode ver o nosso conhecimento científico, filosófico e religioso ainda é muito precário com relação a este assunto, que é de fundamental importância para a nossa evolução espiritual. As opiniões se dividem e, na ausência de uma manifestação direta Sua, a respeito do tema, os seres humanos ficarão eternamente oscilando entre um e outro conceito, sem saber, ao certo, qual deles é o verdadeiro.
                     Por último, minha décima pergunta, diz respeito à razão pela qual Você tem permitido, ao longo da História, que suas criaturas sejam todas lideradas e comandadas não pelos indivíduos mais virtuosos e bem intencionados, mas, sim, pelos mais espertos e oportunistas. Se Você, pai amoroso, tem como objetivo para as Suas criaturas, nesta existência, a evolução através do sofrimento, compreendo que possa estar absolutamente certo. Entretanto, se for outro o objetivo desejado para nós, creio que algumas atividades, de maior relevância perante o Universo, têm ocupado Seu tempo e desviado o foco de Sua onisciência com respeito às Suas criaturas. Longe de mim qualquer crítica ou sentimento de revolta pela forma como nós, Suas criaturas, somos encaminhados do plano etéreo para desfrutarmos uma nova existência neste planeta. Na suposição de que vigorem novas existências em outros mundos ou em outras dimensões, espero que eventuais erros ou omissões, que porventura tenham escapado a Sua onisciência e que possam ter ocorrido na vida humana transcorrida neste planeta, tenham sido corrigidos nestes demais mundos e nestas outras dimensões, existentes pelo vasto Universo e pelas infinitas dimensões por Você criados. Enquanto aguardo com tranqüilidade o vencimento do meu prazo de validade (ocasião em que será, sem dúvida, providenciada a minha partida para a dimensão etérea), fico no aguardo de alguma orientação Sua sobre como devo proceder, até lá, para obter a máxima evolução espiritual possível, nesta minha insignificante vida atual.
         Do seu filho e admirador agradecido,


As Respostas do Criador

(Esta mensagem que se segue foi psicografada por um médium; já que, o Criador não se manifestou diretamente para o Filósofo)

  
              Meu querido e rebelde filho; recebi suas perguntas e aproveito um momento de repouso (após uma estafante semana transcorrida a mediar conflitos de ordem material e espiritual, que ocorrem em todos os momentos, entre aqueles seres, animados e inanimados, frutos da minha criação, neste vasto Universo), para responder as suas dúvidas e indagações.
        Querido filho, de início lhe informo que nunca tive preferências por nenhuma das minhas criaturas. Deferências para com algumas, sim, pode ser que tenham ocorrido; mas, foram devidas apenas àquelas a quem primeiro criei. Explico-me melhor: quando dei início ao processo de criação, nem eu possuía a experiência necessária de pai, nem as criaturas que criava possuíam a de filhos. Todos nós estávamos começando do zero. Em razão disto, é evidente que eu me apegasse mais àquelas criaturas que criei em primeiro lugar. Isto não significa, entretanto, que eu goste menos daquelas que vieram depois.
          Relativamente a sua primeira questão, informo que, realmente, ao longo da história humana, muitos boatos inverídicos e crendices foram e são propalados, com o intuito de me incompatibilizar com as minhas criaturas. Uma destas crendices é a de que basta me chamar, a qualquer hora do dia ou da noite, que eu imediatamente virei à presença daquele que me chamou. Ora, todos os filhos possuem os genes dos pais; meus genes estarão sempre com vocês (esta é a verdadeira onipresença que me atribuem), não significando isto que eu necessite estar fisicamente, ou mesmo espiritualmente, ao lado de minhas criaturas quando invocado; até porque sou também requisitado, ao mesmo tempo, por outras criaturas em outros mundos e em outras dimensões. Não possuo preferências por povos, raças, religiões ou sexos, pois não vejo meus filhos sob estas óticas. Tais distinções, a exceção daquela referente aos sexos, foram por vocês mesmos estabelecidas. Eu, como você inteligentemente supôs em sua carta, criei os seres que originaram o homem e a mulher no mesmo instante. Com esta afirmação, espero haver esclarecido, definitivamente, o dilema que tem afligido a todos desde a origem dos tempos e que se resume em: “quem nasceu primeiro, o ovo ou a galinha?”.
             Com relação ao fato de as minhas criaturas serem dominadas ou dominantes, esclareço que esta, também, é uma distinção estabelecida pelas próprias criaturas. As razões pelas quais vocês se estruturaram desta forma, com certeza, foram as mais variadas: aptidão natural e/ou elevado nível intelectual de alguns para mandar, decidir e comandar; vocação natural e/ou reduzido nível intelectual de outros, para serem comandados e obedecer; maior esperteza, ganância e orgulho de alguns que, iludindo aos demais, conseguiram obter vantagens sobre estes; necessidade de uma liderança para conduzir a todos os demais em segurança, pelos caminhos da sobrevivência em um meio inóspito, etc. O que pretendo deixar bem claro é que eu, embora onisciente e onipotente, também não tenho todas as respostas. Outra vez, me explico melhor: minha onisciência me permite saber o que minhas criaturas fizeram, mas não aquilo que ainda irão fazer. Neste particular, vigora o Livre Arbítrio de cada uma. O Determinismo, que também existe, diz respeito às grandes linhas de comportamento, ao planejamento geral evolutivo de cada criatura. Vários são os caminhos que conduzem ao objetivo previamente determinado e o Livre Arbítrio permite à criatura escolher qualquer um deles. Os seres espirituais não têm prazo para evoluir. Alguns caminham mais rapidamente, outros mais devagar; uns necessitarão de muitas encarnações, outros de poucas. Saiba, entretanto, que todos terão as mesmas e infinitas oportunidades, necessárias para concluir a evolução requerida. Para que? Não me pergunte isso agora, pois, com certeza, não entenderia a minha resposta.
               Com respeito ao esquecimento sobre as vidas passadas, o que tenho a dizer é que cada existência é única; isto é, embora a evolução espiritual seja acumulativa, a evolução física jamais poderia ser, pois o espírito em busca da evolução deve, infinitamente, habitar em vários corpos e viver em vários mundos e dimensões diferentes. Após inúmeras encarnações em vários corpos e em locais diferentes, a lembrança destas vidas causaria enorme confusão na mente do ocasional corpo hospedeiro do espírito. Imagine quem já foi belo vivendo com uma nova aparência feia, quem já foi rico e poderoso vivendo como pobre e humilde e quem foi saudável vivendo doente. O sentimento que teriam seria de revolta e de inconformismo com a nova situação. Para que uma existência anterior não venha a prejudicar a seguinte, o véu do esquecimento é colocado sobre todas as criaturas, tão logo encarnam. Por outro lado, o conhecimento da realidade das múltiplas existências poderia ter um efeito perverso em algumas criaturas, qual seja o de abandonarem, por iniciativa própria, aquela atual vida na qual não se consideravam satisfeitos, esperando voltar futuramente em uma melhor situação. Existem aspectos do fenômeno vida e morte, que não podem ter sua realidade conhecida pelas criaturas, sob pena de influenciar, para o bem ou para o mal, seus desempenhos quando encarnados.
               Pense na coisa como se fosse um jogo de adivinhação no qual você, antecipadamente, conhecesse as respostas. Qual a graça em jogar tal jogo, sabendo que era apenas um jogo e já conhecendo as respostas?
              No que se relaciona com cataclismos e grandes acidentes, informo que nada tenho a ver com eles. São eventos que ocorrem espontaneamente, em razão de acomodações geológicas e de falhas humanas ou materiais. Acusar-me de estar por detrás destes episódios é má fé ou o desejo de esconder responsabilidades. O que deve ficar bem claro é que eu não posso ser responsabilizado por tudo aquilo que ocorre de, supostamente, errado na vida das criaturas. Todo aprendizado implica em erros e acertos ou, como você muito bem explicou, as criaturas evoluem dialeticamente. Assim, vocês acertam e erram por vocês mesmos. Não me envolvam nesta questão.
            Relativamente à morte de crianças e bebês, são também válidas as considerações anteriores, além de outras mais. Independentemente daqueles que morrem em decorrência de erros de diagnóstico médico, da falta de cuidados higiênicos dos pais, da eventualidade de acidentes imprevistos e inevitáveis, outro fator tem contribuído para tais casos. Trata-se do fato da proliferação descontrolada das minhas criaturas, talvez fruto do esgarçamento do tecido social, que conduz a perda de valores morais. O fato é que as criaturas nunca se multiplicaram tanto como na atualidade. Ora, as espécies animais e vegetais, que criei, devem viver em harmonia no planeta, de forma auto-sustentável. Quando uma espécie vegetal se multiplica demasiada e descontroladamente com relação às demais (como quando se cultiva grandes áreas de terra com uma só espécie vegetal), aparecem pragas agrícolas para reduzi-la. 
                  Com os seres humanos, que se multiplicaram demasiada e descontroladamente com relação às outras espécies animais, ocorre o mesmo. As doenças humanas, motivadas por vírus e bactérias, são como as pragas agrícolas e objetivam manter um controle biológico sobre a proliferação das criaturas. Estes vírus e bactérias atacam mais as crianças e bebês, por serem mais vulneráveis às suas ações, ações estas que objetivam reduzir a natalidade e o crescimento das populações humanas. Mais uma vez afirmo: - nada tenho a ver com isto, embora saiba que alguns destes vírus estejam sendo criados por vocês mesmos, em laboratórios, com a finalidade de reduzir, de maneira mais rápida, a população do planeta. Volto a dizer que nada tenho a ver com isto; mas, reduzam a taxa de natalidade, pois o planeta em que estão não comporta uma espécie em tamanha magnitude, e preservem as outras espécies antes que se extingam. Sei que alguns irresponsáveis são contra o controle da natalidade por motivos políticos e ideológicos; mas, a proliferação descontrolada acabará por inviabilizar a vida humana no planeta. Ao contrário do que alguns afirmam, vocês não foram colocados aí para crescer e se multiplicar descontroladamente, mas, apenas, para evoluir espiritualmente.
                Com respeito a beneficiar algumas criaturas de modo especial, em detrimento de outras (aquilo que você denominou de milagre), informo-lhe que jamais o fiz. O processo de criação do Universo requereu da minha parte a formulação de tantas e imutáveis Leis Físicas, Matemáticas, Químicas e Biológicas, objetivando a que o mesmo permanecesse em equilíbrio estável, que a suspensão de alguma destas Leis, visando a beneficiar quem quer que fosse, poderia proporcionar um efeito desestabilizador no sistema (ou uma entropia), que acabaria por fazer ruir todo este Universo que construí com muito esforço, dedicação e carinho, e que espero dure para sempre.
             Quanto a colocar como elites dominantes as criaturas mais espertas, levianas, egoístas, desumanas, aproveitadoras e malignas criaturas; creio que este é um problema que diz respeito exclusivamente a vocês. Milhões de seres humanos apenas se interessam por coisas frívolas e fúteis, não demonstrando o menor interesse por assuntos de ordem política, filosófica e científica, isto é, por aprender e evoluir. Ora, aproveitando-se disso, criaturas mais espertas apresentam-se como pastores, aptos a conduzir aqueles pacíficos rebanhos para a tosquia ou para o matadouro. Se eu interferisse neste assunto, vocês perderiam uma boa oportunidade de aprender, por si mesmo, a conduzir os seus próprios destinos com sabedoria. Por esta razão, não me envolvo e jamais me envolverei neste assunto. Que fique bem claro para você, que os seres humanos não são fruto do acaso, pois o acaso só existe nos exemplos citados pelos professores nas aulas de Teoria das Probabilidades, quando dizem aos seus alunos: - “Jogando-se um dado ao acaso, qual é a probabilidade de sair o número seis?”
              Ao criar os seres humanos (que não possuem a minha imagem e semelhança; posto que, em outros mundos e em outras dimensões criei seres diferentes de vocês e que também carregam consigo o meu DNA) e conduzi-los para uma existência no planeta Terra, tive por objetivo proporcionar-lhes uma escola de aprendizado, voltada, tão somente, para a evolução espiritual. Todavia, nenhum professor pode fazer muito, se os seus alunos não quiserem aprender. O aprendizado depende mais da vontade do aluno do que do esforço do professor. Quem deseja mesmo aprender, acaba por transformar-se em um autodidata. Assim, as reclamações que minhas criaturas apresentam, como sendo devidas à minha incúria, são devidas, na verdade, ao comodismo, à preguiça e à falta de interesse destas próprias criaturas, com relação ao aprendizado necessário para as suas evoluções. Embora eu não haja criado nenhuma religião, algumas delas passam perto daquilo que eu reputo como o conhecimento da Verdade; isto é, a resposta àquelas três perguntas que todos vocês fazem, sempre que se encontram deprimidos ou filosofando. Alguns filósofos, também, intuíram alguma coisa sobre quem são vocês, de onde vieram e para onde vão. 
           O que posso adiantar a respeito (e que talvez contribua para lhe tranquilizar) é que, primeiramente, o espírito é imortal e tem por objetivo a evolução. Em segundo lugar, ele não tem prazo para evoluir, traçando o seu próprio caminho evolutivo através dos tempos. Em terceiro lugar, por mais que alguns seres humanos distorçam a finalidade da criação e o objetivo das criaturas, o fato é que riqueza, poder, prestigio, saúde, beleza física, etc., não representam a finalidade pela qual vocês ai se encontram, também não duram para sempre e não podem ser levados para o etéreo junto com o espírito. Este levará, apenas, aquilo que aprendeu quando encarnado. Lembre-se que evoluir é uma característica individual, que ninguém pode processar pelo outro, muito menos eu que a criei.
            Com relação ao conflito, por você levantado, entre a necessidade de eliminar o EGO para a evolução espiritual e a necessidade de conservar o EGO para a evolução dos Sistemas Econômicos, Políticos, Psicossociais e Militares, gostaria de ressaltar que ambas as coisas poderiam ocorrer, desde que fossem mais planejadas por elites bem intencionadas e desprovidas de ganância, de egoísmo, de orgulho, de soberba, etc. Explico-me melhor: se vocês, minhas criaturas, fossem chefiadas por autoridades virtuosas e bem intencionadas, que tivessem como única preocupação conduzir bem os seres humanos no rumo da evolução espiritual, certamente, haveria um meio termo em que as populações poderiam conviver em um Sistema Econômico sustentável, com baixo consumo ambiental, sem desperdício e com preservação da natureza. Neste sistema o Ego poderia vir a ser, não digo eliminado; mas, sensivelmente reduzido, permitindo uma tranquila evolução do espírito. Conseguir isto só depende de vocês, pois eu, como já disse anteriormente, jamais interferirei no aprendizado de minhas criaturas.
                  Finalmente, gostaria de lhe dizer da imensa saudade que nutro por você, em especial, e lembrar-lhe de que gostaria muito de poder falar-lhe pessoalmente qualquer dia desses. Vá se preparando... 

                                                                  Papai

_*/ Economista, M.S. e Doutor pela Universidade de Madrid, Espanha.