109. A Dona Virtude e o Doutor Vício
Jober rocha*
Dona Virtude morava sozinha naquela casa de vila, onde havia sido a primeira locatária tão logo terminaram as obras e a vila ficou pronta. Seus vizinhos eram numerosos. Do lado direito, em casas contíguas, residiam a Justiça, a Amizade, a Fé e a Coragem. Do lado esquerdo, também em casas contíguas, a Liberdade, a Igualdade, a Fraternidade, a Esperança e a Caridade.
Em frente, do outro lado da rua, desde o início até o final da vila, moravam a Temperança, a Mansidão, a Franqueza, a Liberalidade, o Intelecto, a Magnanimidade, a Sabedoria, a Prudência e a Fortaleza.
A casa que ficava em frente à de dona Virtude, no entanto, estava vazia desde o início, embora contivesse uma placa bem visível de ALUGA-SE.
Aquela vila era de uma tranqüilidade a toda prova. Os moradores reuniam-se, sempre ao final da tarde, na casa de dona Virtude, para elogiarem-se mutuamente. Cada um destacava as qualidades dos demais.
Dona Virtude, como a moradora mais antiga e idosa, era sempre colocada em destaque por todos. Um dizia que ela era “a faculdade de estabelecer a medida certa das paixões e das ações, a fim de que delas não proviesse prejuízo para o homem”. Outro argumentava que ela era “a disposição para produzir a felicidade”.
Um dos vizinhos afirmou que “a Dona Virtude fazia o bem ao próximo”. Uma das vizinhas, alegremente, exclamou: -“Não existe Felicidade sem Coragem, nem Virtude sem Luta. Virtude deriva de Força e Força é a base de toda Virtude. A Virtude pode ser até de natureza fraca; porém, é sempre de vontade forte”.
E assim prosseguiam aquelas reuniões, até que todos houvessem se elogiado à exaustão. No dia seguinte se repetia tudo de novo. Certo dia, dona Virtude viu chegar um caminhão de mudanças que, adentrando a rua da vila, parou bem em frente à sua casa.
O motorista e mais dois ajudantes começaram por descarregar utensílios de cozinha, armários, cama, sofás, etc., que levavam para dentro daquela casa da frente, até então vazia.
Olhando o trabalho que faziam, dona Virtude perguntou ao motorista: - Meu senhor, quem é o novo morador da vila?
O motorista, jogando fora o toco de cigarro, escarrou no meio da calçada e disse:- “Quem vem morar aqui nesta casa é o doutor Vício!”.
Na manhã seguinte todos viram, sentado na varanda da casa, um tipo alto e magro, careca e com fino bigodinho preto.
Ele era o contrário da dona Virtude, que era gorda, baixa e com volumosa cabeleira. O Vício, todos puderam constatar, era, pois, o extremo oposto da Virtude.
Passados aqueles primeiros dias, os moradores perceberam a presença de vários personagens residindo na mesma casa junto com o doutor Vício, conforme ele gostava de ser chamado pelos demais vizinhos.
Indagando, daqui e dali, ficaram sabendo que naquela casa estavam residindo, além do Vício, também a Covardia, a Intemperança, a Temeridade, a Incontinência, a Inimizade, a Imprudência, a Ira e a Injustiça.
Em um piscar de olhos, a pacífica vila virou de pernas para o ar.
Na casa do doutor Vício o dia nunca se punha (como no antigo Império Inglês). Desde a manhã, bem cedo, tinha início uma grande batucada, regada a caipirinha e a cerveja. Palavrões, xingamentos, bate-boca, discussões e bordoadas eram comuns a qualquer hora do dia, principalmente, durante os churrascos que com freqüência realizavam.
Em razão daqueles acontecimentos, os antigos moradores marcaram uma reunião, urgente, em casa de dona Virtude, cobrando providências.
Com a presença de todos eles, a Coragem tomou a palavra e disse: - “Companheiros, nós sabemos que o Vicio é um hábito irracional de conduta. Neste caso, o Vício passou a constituir os extremos e a Virtude o meio-termo. Isto, porém, com relação à Virtude Ética. Com relação à Virtude Dianoética (ou intelectiva), o Vicio significa simplesmente a falta dela; falta que, segundo Aristóteles, já era vergonhosa só pela falta de participação nas coisas excelentes de que participam todos os outros, ou quase todos, ou pelo menos os que são semelhantes a nós; ou seja, os que têm nossa idade ou que são de nossa cidade, família ou classe social’...”.
Enquanto a Coragem falava, um forte aroma de churrasco penetrou na sala de dona Virtude, onde estavam todos reunidos. Os presentes se entreolharam nervosos. Pouco depois, um aroma de cachaça com limão se sobrepôs ao do churrasco. Ao longe, ouvia-se o som de um cavaquinho.
Dona Virtude, naquele momento interpretando o pensamento de todos, interrompeu a Coragem e proferiu a célebre frase que a deixou famosa, junto às gerações que se seguiram naquela vila: - “Caríssimos vizinhos, sempre participei de todas as atividades desta vila. Embora tenha vizinhos de ambos os lados, sempre que saía na varanda da minha casa e deparava com a casa da frente fechada, sentia-me triste e só. Hoje, aquela casa está cheia de novos moradores. Sei que possuem hábitos e costumes diferentes dos nossos; porém, sei também que devemos manter e demonstrar nossa hospitalidade àqueles que chegam. Digo isto em meu próprio nome e no de todos vocês, demais vizinhos moradores da vila; e disponho-me a ir até lá, agora mesmo, com quem quiser me acompanhar, para cumprimentá-los e participar da inocente festinha que promovem. Afinal de contas, em todos os eventos que ocorrem aqui A VIRTUDE DEVE ESTAR SEMPRE NO MEIO!”.
Ao entrarem todos na casa do doutor Vício, dona Virtude passou logo a mão em um copo de caipirinha e, abraçando o Vicio pela cintura, cantarolou o samba de Pedro Caetano, sucesso do carnaval de 1948, no meio dos outros vizinhos que chegavam alegres: - “É com esse que eu vou sambar até cair no chão. É com esse que eu vou desabafar na multidão...”.
_*/ Economista, M.S. e Doutor pela Universidade de Madrid, Espanha.
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