quinta-feira, 14 de julho de 2016

102. Como se tornar um escritor de sucesso

(Capítulo 4)

Jober Rocha

Capítulo 4


             Observando, lá de dentro da igreja, diversos indivíduos trajando camisas vermelhas circulando pela rua, resolvi manter a batina que usava e me afastar o mais rápido possível daquele local. Esgueirando-me, furtivamente, tomei um estreito caminho que me conduziu às margens de um riacho, onde parei para me refrescar.
             Pouco depois vi chegar ao local um tropeiro, conduzindo cinco burros carregados. O individuo cumprimentou-me tomando a benção e beijando minha mão, pois eu estava vestido com a batina do padre. A seguir, levou os animais para beber. Feito isto, perguntou-me para onde eu ia. Disse-lhe que não tinha destino certo; pois o meu caminho era o das almas perdidas e sofredoras e, sendo assim, qualquer caminho me servia. Ele convidou-me a seguir com ele, fazendo companhia um ao outro.
            Aquele simples tropeiro revelou-se um profundo conhecedor da natureza humana e, com ele, aprendi muito na longa jornada que empreendemos em busca dos nossos destinos.
           Após contar-lhe, durante o trajeto, as desditas pelas quais havia passado, ele, com sua voz tranquila e um cigarro de palha no canto da boca, me disse: - Essas coisas sempre ocorrem com você porque sua principal preocupação, até então, tem sido procurar ajudar aos outros, sem saber como fazê-lo. Ao invés disso deveria procurar, primeiro, ajudar a si mesmo e aprender mais, para, depois, pensar em auxiliar os semelhantes.
        Durante vários dias seguimos juntos, conversando. Por fim, chegamos a uma grande cidade onde ele ia entregar, para um deputado estadual, a carga que trazia naquelas mulas e que eram obtidas em um determinado garimpo, no interior do Estado, explorado ilegalmente pelo deputado. Só então fiquei sabendo tratar-se de sacos contendo um mineral nobre, conhecido como nióbio, que o deputado enviava para o exterior através de canais secretos que só ele conhecia. Aquele material, puríssimo e de altíssimo valor no mercado internacional, só existia em nosso país, segundo afirmara o deputado ao tropeiro, e destinava-se à indústria aeroespacial mundial. O deputado já fazia aquele contrabando há quase dez anos e edificara todo o seu império sobre sacos carregados de nióbio puro. 
              O político, ao sermos apresentados pelo tropeiro, simpatizou logo comigo e, sabendo através do seu empregado que eu pregava para as massas desassistidas, ofereceu-me um quarto nos fundos de sua mansão, dizendo que eu poderia ser muito útil na campanha eleitoral que se iniciava naquele ano. Ele precisava de alguém que reafirmasse, para as massas pobres e ignaras, a natureza divina do seu mandato e que prestasse assistência religiosa e social aos eleitores, que viviam nas suas áreas de influência política. 
           Minha função seria a de reafirmar o apoio divino à sua carreira na câmara, distribuir algum dinheiro para os mais necessitados e dizer a todos que o Criador estava de olho naquela comunidade e que pretendia transformar aquela região em um verdadeiro paraíso terrestre. Eu teria de convencê-los que, após a reeleição do deputado, tudo viria com fartura para seus eleitores: comida, bebida, diversão, moradia, transporte gratuito, saúde, segurança, e por aí vai. 
           Em troca da minha ajuda, ele me deixaria morar de graça em um quarto nos fundos da sua mansão, me forneceria refeições e me colocaria como seu assessor parlamentar. Metade do salário que iria receber, a partir de então, eu deveria entregar diretamente para ele, pois, segundo disse, ajudava financeiramente diversos orfanatos locais e creches com aquele dinheiro. Sem um tostão no bolso, sem ter para onde ir e louvando-me nas sábias palavras do tropeiro (Deveria primeiro ajudar a mim mesmo e aprender mais...), aceitei a oferta que ele me fazia, sem nenhuma relutância. Dormi como uma pedra naquela noite. Na manhã seguinte, conduzido por motorista particular do deputado, fui até a comunidade em que o político exercia a sua influência política, para desempenhar o meu novo trabalho, de cunho religioso e social.
             Aquela comunidade era idêntica a qualquer favela carioca; porém, possuía uma peculiaridade singular: era completamente plana. Deixado sozinho na entrada da comunidade, segui caminhando com um ar beatificado, fazendo com a mão o sinal da cruz como me recordava de haver visto, certa vez, o Papa fazer ao visitar uma favela no Rio de Janeiro. 
       Depois de haver andado durante uns vinte minutos balançando a cabeça, sorrindo com indulgência e distribuindo benção aos moradores, fui cercado por vários indivíduos armados de fuzis. Achando-me firmemente imbuído daquelas novas atribuições eclesiásticas que aceitara, pensei comigo mesmo: - Vejam só. É o capeta e seu exército de demônios que tenta impedir a propagação da palavra de Deus! 
-Vade Retro Satanás! – exclamei baixinho, para que não ouvissem.
           Os homens quiseram saber o que eu fazia ali e, após mencionar que trabalhava para o deputado, fui liberado com alguns abraços e tapinhas nas costas. Com isso, pude, a partir de então, andar livremente por toda aquela comunidade.
         Crianças corriam a minha volta, certamente, esperando alguns trocados que eu ainda não dispunha. Mulheres brigavam entre si, gritando ofensas e palavrões. Homens tomavam cachaça, em barracos que vendiam bebidas, e amolavam suas facas e punhais. Valas negras percorriam paralelamente todas as vielas daquela comunidade. 
        O lixo acumulava-se por toda parte. Cachorros latiam à minha passagem e o cheiro de excrementos humanos e de animais era bem forte, dominando todo o ambiente. Pensei, naquela ocasião: - Como é fácil prometer o paraíso para pessoas tão carentes e ignorantes. Farão qualquer coisa para sair daqui e desta condição miserável em que se encontram!
         Meu primeiro ato, naquela comunidade, como representante do Criador e empregado do deputado, foi reunir alguns daqueles moradores e dizer-lhes algumas palavras de conforto. Comecei por dizer-lhes que havia sido enviado pelos céus com a missão de levantar as dificuldades pelas quais eles passavam. Com um papel e um lápis que pedi emprestados, comecei a tomar nota das reivindicações dos moradores: arroz, feijão fubá, cigarros, cachaça, etc. etc. etc.
          Fato estranho, que percebi naquela oportunidade, foi que nenhum deles solicitava a urbanização da área, a canalização das valas negras, água encanada e coleta de lixo. As reivindicações que faziam eram apenas relativas à alimentação, denotando o estado de carência total em que viviam. Perguntei se não recebiam alguma ajuda governamental, tipo “bolsa alguma coisa”.   Disseram que os nomes deles constavam de várias relações de recebedores, mas que os ‘donos da comunidade’ é que ficavam com todo o dinheiro que o Estado distribuía. Vários animais que viviam na comunidade e que possuíam nomes humanos (cão Antônio, gato Washington, cabrito Wanderley, etc.) estavam cadastrados também para receber estas tais ‘bolsas’.
          Bafejado momentaneamente por uma inspiração divina, falei-lhes, naquela ocasião, da maravilha em que consistia o Reino dos Céus, lugar onde disporiam com abundância de tudo aquilo que lhes faltava. Falei-lhes da qualidade dos pratos e iguarias que teriam a sua disposição no almoço e no jantar; das bebidas deliciosas que ali eram servidas; das roupas de tecidos finos que usariam; dos sambas enredos do mais alto nível, que ali eram compostos pelos anjos, arcanjos e querubins compositores. 
            Enquanto pregava, prestava atenção em seus olhos vidrados e em como estavam concentrados. Nenhuma conversa e nenhum grito de criança se ouvia no ar. Todos haviam parado de falar. Os próprios cachorros haviam parado de latir e olhavam para mim, balançando os rabos, como se estivessem entendendo o que eu dizia e vendo os restos daquelas finas iguarias sendo depositados em seus pratos de comida.
              Disse-lhes que, para desfrutarem de tudo aquilo, bastaria votar no deputado nas próximas eleições, que ele tomaria as providencias necessárias junto aos céus para que eles recebessem todas aquelas benesses. Finda a minha preleção desfez-se aquele ambiente mágico criado e os moradores vieram me abraçar, garantindo que votariam no bondoso deputado que os ajudava desinteressadamente. Até alguns cachorros vieram lamber, agradecidos, minhas pernas e meus pés.

(Continua)

Nenhum comentário:

Postar um comentário