sexta-feira, 1 de julho de 2016


75. Continuação de Diário de um ‘Maluco Beleza’ (Capítulo 13)

                                                                                                   Jober Rocha

Capítulo 13

Domingo, 16 de março

 


                  Amanheceu o dia com um sol radiante, a temperatura amena e o céu totalmente azul e sem nenhuma nuvem. Resolvi fazer um passeio diferente hoje; isto é, resolvi ir até o aeroporto para ver as aeronaves pousando e decolando. Assim, me preparei com a minha melhor roupa e tomei o rumo do ponto de ônibus, chegando a ele após quase meia hora de marcha forçada pela estrada empoeirada.
                  Depois de uma viajem de quase duas horas, cheguei ao meu destino final. O aeroporto estava bastante cheio neste domingo. Filas enormes de jovens e adultos embarcavam para Miami, nos Estados Unidos. Dali eles seguiriam, com certeza, para a Disneylandia, objetivando gastar os dólares que haviam acumulado ao longo do ano. Outros jovens e adultos, que aqui desembarcavam, já chegavam com camisas e casacos trazendo estampados, em inglês, palavras e frases indicativas das lojas e dos lugares que frequentaram.
                 Vendo aquele ir e vir de jovens e adultos brasileiros, todos alegres e sorridentes, me ocorreu que o povo brasileiro é reconhecido, mundialmente, por algumas de suas características principais, quais sejam: alegre, paciente, dócil, pacífico, crédulo, religioso, inocente, despolitizado, imitador, desorganizado, conciliador, pouco afeto ao trabalho e medroso. Nossa História, antiga e contemporânea, está cheia de exemplos quanto a isto.
                  Embora algumas destas características sejam, muitas vezes, desejáveis individualmente, coletivamente deixam transparecer um povo fraco e submisso.
                 As interpretações históricas, que tentam vincular tais características do povo brasileiro à sua colonização, não me parecem suficientes. Da mesma forma que os Estados Unidos da América do Norte, o Brasil também foi colonizado por um povo corajoso e ambicioso (os feitos portugueses na América, na África e na Ásia são conhecidos), que utilizou, como os nossos irmãos do norte, mão de obra de escravos africanos na colonização do país. Como os USA, seu desenvolvimento também foi edificado com base na imigração de contingentes populacionais de todas as partes do mundo. Com um sistema de colonização mais ou menos semelhante, os Estados Unidos, no entanto, não possuem um povo com as mesmas características nossas. De um modo geral, são sérios, politizados, corajosos, espertos, criativos, organizados e trabalhadores. A história antiga e contemporânea deles está cheia de exemplos quanto a isto.
                 Na época da descoberta do Continente Americano, Portugal, Espanha, França. Holanda e Inglaterra eram os países da Europa que empreendiam navegações, pelos mares e oceanos, com objetivos comerciais e de conquista de novos territórios. O estágio de desenvolvimento econômico e tecnológico destes países era mais ou menos equivalente; isto é, as discrepâncias existentes não eram de grande magnitude.
                   Assim, um aspecto histórico que, realmente, pode ter diferenciado as características entre as populações iniciais destes dois países, foi a de que nossos colonizadores (ao contrario daqueles da América do Norte que foram para ficar, crescer e enriquecer junto com o país), aqui vieram para explorar o território conquistado em benefício da matriz e retornar para a mesma, tão logo seu objetivo fosse alcançado. Podemos destacar a vinda da família real (quando reinava D. João VI) para o Brasil, em 1806, com toda a corte, fugindo das tropas napoleônicas que invadiram Portugal. O Brasil, de simples colônia, passou a ser a sede da monarquia portuguesa. Tão logo a ameaça cessou, todos eles retornaram para Portugal, em 1821, deixando para trás, a contragosto, D. Pedro I (filho do monarca) como regente.
                       Com a vinda da família real portuguesa para o Brasil, em paralelo à nobreza de sangue de origem portuguesa, vitalícia e transmitida para os sucessores, conviveu uma nobreza brasileira oriunda de favores prestados à família real em nosso país, vitalícia, mas não transmitida aos descendentes daqueles felizardos agraciados com os novos títulos de condes, viscondes, marqueses e barões.
                   Tudo aquilo oriundo da ‘Terra Brasilis’ (nome do nosso país que aparecia em alguns mapas antigos) era, naquela ocasião, depreciado; a começar pelos naturais da terra e pelos poucos produtos aqui fabricados. Em contrapartida, tudo o que chegava da Europa era disputado e valorizado.
                       A língua de ‘bom tom’ falada pelos intelectuais, pela nobreza e pela rica burguesia era o francês; bem como, a Literatura que liam era de origem francesa, em sua maior parte. Desde os vinhos que estas categorias consumiam até as roupas que usavam, os utensílios de casa e as armas que portavam, eram, em sua quase totalidade, originários da Europa.
                         Talvez, pelo fato das três categorias anteriores (intelectuais, nobres e ricos burgueses) serem as formadoras de opinião, as populações passaram, também, a valorizar e desejar os produtos e as novidades que vinham de fora do país.
         Outras interpretações que vinculam as características do nosso povo, mencionadas no início, ao clima tropical, podem também ter algum valor; já que, diversos países vizinhos, nas mesmas condições que o nosso, possuem características psicossociais semelhantes.
             Os colonizadores que aqui aportaram, portanto, sempre mantiveram os olhos e os pensamentos na matriz, para onde esperavam voltar algum dia; ao contrario dos colonizadores do território norte americano, que sempre desejaram construir seus futuros e o das suas famílias naquele novo continente.
                   A denominada “Doutrina Monroe”, apresentada ao congresso pelo presidente dos Estados Unidos da América do Norte, James Monroe, no ano de 1823, resumida na frase “América para os Americanos”, consistia em três pontos:
. A não criação, pelos europeus, de novas colônias nas Américas;
. A não intervenção, pelos europeus, nos assuntos internos dos países americanos; e
. A não intervenção dos Estados Unidos em conflitos relacionados aos países europeus.

               Por sua vez, o ‘Destino Manifesto’ (doutrina que justificou o expansionismo norte americano interna e externamente ao seu território) legitimou, desde o início, a ambição e o interesse político e econômico daquele povo (a compra da Louisiana, da Flórida, do Alasca, a conquista do Texas, etc.). Assim a sociedade norte-americana esteve, sempre, mobilizada em torno dos objetivos de conquistar novas terras e de prosperar. O presidente James Buchanan declarou, em seu discurso de posse em 1875: “A expansão dos Estados Unidos sobre o continente americano, desde o Ártico até a América do Sul, é o destino de nossa raça (...) e nada a pode deter”.
           Nossas primeiras elites se contentaram com as dimensões continentais do Brasil, que procuraram defender da secessão e da cobiça de vizinhos hostis, de origem hispânica.
              Deve ser notado que, enquanto a ambição do povo norte- americano sempre foi de se expandir por todo o continente americano, o anseio do povo brasileiro sempre foi o de, apenas, se defender de países estrangeiros, objetivando manter seu território. Os poucos territórios que conquistamos de países vizinhos, tinham por objetivo, apenas, o ampliar as nossas defesas, mas não um objetivo imperialista. Não é por outra razão que, enquanto a Doutrina de Defesa Norte Americana diz que seu objetivo é o de “defender os interesses norte-americanos em qualquer parte do mundo”, o objetivo da Doutrina de Defesa Brasileira é o da “não intervenção e da solução pacífica dos conflitos”.
          Um grande país com um povo de características fracas, próximo de outro grande país, cujo povo possui características fortes, está fadado a se tornar vassalo, tanto política e economicamente quanto culturalmente. É este o nosso caso concreto, histórico-cultural, com relação aos Estados Unidos da América do Norte e a Europa Ocidental; embora governos recentes tenham tentado mudar o foco destas vassalagens para outras, tanto de natureza asiática quanto européia oriental.
              A vassalagem cultural se apresenta como muito mais nociva que as vassalagens política e econômica; já que, estas últimas se tornam bem mais difíceis de serem rompidas quando existe a primeira.
              Alguns exemplos de vassalagem cultural, observáveis na atualidade, por parte dos formadores de opinião do nosso povo, podem ser citados:
. Uso de palavras estrangeiras (principalmente inglesas) no vocabulário quotidiano das pessoas;
. Nomes estrangeiros (principalmente ingleses e franceses) dados a edifícios residenciais e a lojas comerciais;
. Uso de camisas, casacos, tênis, gravatas, bolsas, relógios, etc. de marcas estrangeiras, como forma de demonstrar status social, embora existindo produtos similares aqui fabricados;
. Viagens freqüentes à Disneylândia (para diversão), à Nova York (para compras) e às principais capitais europeias (para comidas e bebidas), muitas vezes sem conhecer nenhum Estado da Federação do seu país, a não ser aquele em que vive;
. Assunção de valores e de costumes estrangeiros, que chegam a se sobrepor aos nossos valores e costumes (Halloween, música country, etc.);
. Considerar como se fossem nossos próprios inimigos, aqueles países, e seus dirigentes que são inimigos dos Estados Unidos e da Europa, independentemente de nosso país manter ou não relações com eles, transmitindo, assim, uma imagem de ausência de soberania em suas decisões de política externa;
. Excesso de exibição de filmes estrangeiros, relativamente à exibição de filmes nacionais, nos cinemas, na televisão aberta e na televisão por assinatura.

              Nosso país, por seu contingente populacional, por sua extensão territorial, por sua riqueza mineral, por seu clima e por sua condição geográfica, já poderia ser uma potência do Primeiro Mundo há muito tempo. 
                  Só não o é em razão da subserviência, da vassalagem cultural, da falta de patriotismo e da corrupção endêmica que, historicamente, grassam nos três poderes da República, alimentadas por elites descompromissadas com nosso futuro, como nação, e sob as vistas complacentes do povo brasileiro.
             Nossa subserviência e vassalagem ocorrem tanto em decorrência das características já citadas, como também de nosso inexpressivo poder militar, que, nas questões externas, nos força a adotar uma atitude quase sempre conciliadora e servil.
                 Nosso país faz parte do BRICS (ao lado de Rússia, Índia, China e África do Sul) e, embora economicamente sejamos um dos membros mais fortes (nosso PIB é superado, apenas, pelo da China e da Índia), nossas forças armadas consistem na mais fraca de todas elas (a única que não tem poder nuclear), não sendo compatível com a importância econômica de nosso país. Nossos céus, mares e território estão perigosamente vulneráveis. A Região Amazônica, por seu potencial mineral e de biodiversidade, é sabidamente alvo da cobiça internacional. Nossos recursos petrolíferos, notadamente sob o mar, também são cobiçados; todavia, nossas forças terrestres, aéreas e navais estão entre as mais deficientes e fracas de todo o continente, não sendo capazes de defender nosso território, nosso espaço aéreo e nosso mar territorial de uma eventual invasão.
                Nosso país carece, atualmente, de Planos de Desenvolvimento de Longo Prazo, como já os teve em passado recente (PAEG, Metas e Bases, Plano Decenal, etc.). As políticas setoriais adotadas são sempre casuísticas. Os programas do submarino à propulsão nuclear e do veículo lançador de satélites andam a passos lentos. A aquisição dos novos aviões de caça para a força aérea, cujo processo se iniciou anos atrás, demorou a ser concluída, em razão dos inúmeros lobbies de pressão que existem junto aos Poderes Legislativo e Executivo, movidos por fornecedores de aeronaves concorrentes, que não hesitam em comprar corações e mentes.
           Nossa subserviência é de tal ordem, que firmamos todos os acordos referentes ao meio ambiente, a não proliferação de armas nucleares e a criação de reservas indígenas em áreas ricas em minerais estratégicos, na frente da maioria dos países, muitos dos quais não os firmaram até hoje e nem irão firmá-los no futuro. Fomos o primeiro país a propor, voluntariamente, a redução da emissão de gás carbônico, sacrificando nosso desenvolvimento econômico. Embora este feito tenha um forte apelo junto à opinião pública internacional, países que poluem a atmosfera muito mais que o nosso não reduziram as suas emissões; pelo contrário, aumentaram. 
                 Nosso congresso votou, em passado recente, lei proibindo explosões nucleares nossas (não as alheias) em nosso território, por pressão estrangeira, desativando, também, nosso programa nuclear, embora sejamos um dos únicos países a possuir reservas de urânio e tecnologia de enriquecimento própria. Dois outros países que também tinham programas semelhantes não os desativaram (como fizemos em razão das pressões externas recebidas) e, atualmente, estão próximo de concluí-los.
           Precisamos, com urgência, de lideres e governantes patrióticos, não comprometidos com oligarquias retrógradas, internas e externas, que pensam apenas em seus objetivos imediatos de riqueza. Precisamos de elites compromissadas com o futuro de nosso país e de sua gente, que queiram se associar ao povo na marcha pela conquista do desenvolvimento com distribuição de renda e igualdade social. Não necessitamos de feitores, nem desejamos continuar como escravos, para sempre, de senhores internos e externos.
              Nosso país só terá encontro marcado com seu destino de potência quando as elites que o dominam, disto se derem conta e resolverem compartilhar o país que lhes pertence com o povo que nele habita.
             Após este desabafo momentâneo, uma tristeza enorme me invade, por saber que eu, ao perceber a nossa realidade de maneira diferente daquela captada por uma pessoa normal com as suas faculdades mentais inteiramente preservadas, cometo uma tremenda injustiça com o alegre e sociável povo brasileiro, ao vê-lo da forma como o vejo em minha insanidade mental. 
                 Rogo ao criador, por vezes, para que este diário jamais caia em mãos alheias que venham, eventualmente, divulgá-lo no futuro. Se o acaso fizer com que seja manuseado por mãos que não as minhas, que o leitor de suas páginas, rapidamente, o destrua após tomar ciência do seu conteúdo, para que as conclusões doentias que contém não venham a contaminar futuros leitores de futuras gerações.
             Do aeroporto segui direto para casa. Na viajem de volta, novamente em pé no coletivo e absorto em meus profundos pensamentos filosóficos, somente percebi o assalto quando a enorme arma colidiu com o meu estomago, machucando-o. O assaltante, que era o mesmo, me reconhecendo da vez anterior, disse: - Aí, o coroa, a tua sandália de dedo que levei da outra vez deu certinho no meu pé. A camisa ficou folgada e o resto todo caiu feito uma luva. Vou levar tudo de novo, menos a sua camisa!
             Chegando a casa, meus vizinhos estavam todos sentados em cadeiras colocadas na rua. Ao me verem chegar, só de cueca e camisa, nada disseram. Após eu haver entrado em casa e fechado a porta, prorromperam em estrondosa gargalhada. Entrando na cozinha para uma rápida refeição de pão e algumas bananas, ouvi alguém dizendo alto, lá fora: - Esse camarada não fala com quase ninguém, mora sozinho e chega só de cueca; ou é bandido ou é gay!

(continua no dia seguinte – nota do autor)

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