quarta-feira, 6 de julho de 2016

88. Continuação de Diário de um ‘Maluco Beleza’ (Capítulo 28 e Capítulo final)

Jober Rocha


Capítulo 28
Segunda feira, 31 de março


                        Acordei bem cedo e bastante animado. Quem sabe não será hoje que receberei do meu médico a boa notícia de que encontrou, finalmente, a cura para esta moléstia que me atormenta e que me deixa fora da realidade, fazendo com que eu tenha uma visão do mundo e das pessoas totalmente falsa, diferente daquela verdadeira? 
                                Assim, coloquei a minha segunda melhor roupa (pois a primeira havia sido levada no último assalto que sofri no ônibus) e me dirigi sorridente ao consultório do psiquiatra.
                         Lá chegando, fui surpreendido por um cartaz na porta do médico, que dizia: “Não trabalho hoje. Quer saber o motivo? Pergunte ao seu inconsciente!”
                         Desanimado retornei a casa, pensando no caminho sobre as relações, muitas vezes conflituosas, entre médicos e pacientes, vendedores e consumidores, editores e leitores, sacerdotes e fiéis, etc. Tão distraído estava que ao ouvir a voz: - “Passa tudo, tio”! - nem me dei conta que havia sido reconhecido pelo velho assaltante, que escolhera aquela empresa de ônibus para dar o seu plantão diário e que já me considerava seu amigo, tantas foram às vezes em que nos encontramos em um coletivo desta linha. 
                                Tendo eu já dado a ele tudo o que tinha, pedi que desta vez deixasse a calça e a camisa, pois eram as únicas peças de vestuário que possuía. Ele, me dando um fraterno abraço, como se velhos amigos fossemos, respondeu: - “Segue na paz do Senhor, parceiro, já estou cheio de calças e camisas e as suas não me farão nenhuma falta!”
                                Já em casa, comendo algumas bananas, me pus a pensar sobre o tema sobre o qual raciocinava no coletivo e que havia sido interrompido pelo assaltante.
                              Um distintivo de todo ser humano que habita as cidades modernas, notadamente nos países do Terceiro Mundo, é o de estar insatisfeito com as condições de vida da cidade onde trabalha, se diverte e sobrevive; notadamente se pertencer às classes de renda B, C e D.
                            Constantemente, o cidadão se sente ludibriado, quer nas compras que efetua (preços altos, prazos de validade vencidos, produtos defeituosos, entregas não efetuadas, etc.); quer nas informações que recebe através da mídia (mentiras, inverdades, baixo nível da programação, etc.); quer na religião que professa, tornada uma mercadoria por sacerdotes (interessados apenas nos dízimos e nos recursos financeiros dados pelos fiéis) que pregam uma religião desvinculada da realidade presente. 
                              Mais ludibriado, ainda, se sente ao constatar que após as eleições municipais, estaduais e federais, aqueles candidatos em quem votou (em razão de suas promessas de campanha), não cumprem o que prometeram e se envolvem em processos de corrupção, em malversação de verbas públicas, em nepotismo, etc.
                          Ludibriado ao extremo se considera quando ao pagar, com quase cinco meses de seu trabalho ao ano, os impostos municipais, estaduais e federais, constata que muito pouco recebe em troca, seja em termos de saúde, transporte, segurança, saneamento, etc.
                         Desconsolado, vê que para sobreviver necessita se endividar junto às instituições financeiras que, com a autorização do governo federal, cobram os juros mais elevados do planeta. Para honrar um financiamento ou empréstimo necessita tomar outro, tornando-se um escravo da dívida, em uma servidão consentida, perante aquelas instituições financeiras.
                        Sem poder contar com serviços públicos de qualidade, volta-se para os serviços privados, muitas vezes também sem qualidade.
                           Neste sofrimento diuturno, o individuo se sente sozinho e desesperançado; posto que, não percebe como conseguir ser ouvido, de modo a ter seus direitos respeitados, com um sistema judicial totalmente inoperante, antiquado e cheio de brechas legais, de embargos e de recursos de todo tipo, em razão de uma legislação criada pelas elites em seu próprio benefício; legislação esta que, na maioria dos casos, arquiva ou torna prescritos os crimes destas elites e pune, quase sempre, de maneira branda os crimes das demais classes sociais (progressões de penas, indultos, prestação de serviços comunitários, prisões domiciliares, etc). Isto, sem falar em uma alardeada indústria de ações trabalhistas, vendas de alvarás, de sentenças, etc.
                         Entretanto, esta vontade do individuo de querer mudar o mundo, para poder mudar suas próprias condições, constitui uma maneira pouco objetiva de alcançar o resultado almejado; já que, existe maneira mais simples e totalmente ao alcance de qualquer um, qual seja: mudar a si mesmo.
                         Esta mudança de si mesmo depende, em primeiro lugar, da conscientização do indivíduo de que a maior parte daquilo que ocorre de mal em sua vida, quase sempre, ocorre devido a sua concordância, consciente ou inconscientemente. Em segundo lugar, de fazer valer seus direitos por si mesmo. Explico-me melhor: não estou incitando o individuo a fazer justiça com suas próprias mãos. Estou dizendo que, fazendo melhor suas escolhas, poderá se livrar de problemas atuais e futuros. Os indivíduos devem ser menos crédulos, mais desconfiados, mais exigentes, menos inocentes e mais atualizados.
                    É conhecida a importância dos meios de comunicação na divulgação de propagandas e de contra informação, objetivando a aceitação, pelas populações, de idéias, produtos e valores (morais, comportamentais, etc.).        
                            Avram Noam Chomsky, filósofo, lingüista e ativista político norte americano, professor catedrático que leciona há mais de quarenta anos no Instituto Tecnológico de Massachusetts-MIT, tem dado enorme contribuição à Lingüística, à Ciência e a Psicologia de um modo geral, à Psicologia Evolucionária, à Ciência da Computação, à Política, à Economia e às Ciências Sociais, através de seus livros e de suas teorias. A ele é atribuída a frase: “A propaganda representa para a democracia aquilo que o cassetete significava para o estado totalitário”.
                                Em suas conferências denominadas ‘Visões Alternativas’  ele apresenta uma lista de dez princípios de que se utilizam freqüentemente às classes dominantes (nacionais e internacionais), objetivando levar os cidadãos a, inconscientemente, apoiarem os interesses destas classes, interesses estes que, em sua maior parte, são totalmente diversos daqueles dos indivíduos (e até mesmo conflitantes), objetivando a manipulação econômica e social de países, nações e comunidades. Os princípios listados por Chomsky podem ser assim sintetizados:

                             Estratégia da Distração; Estratégia de Criar Problemas e Depois Oferecer a Solução; A Estratégia da Ação Gradual; A Estratégia de Adiar; Falar ao Público Como se Este se Tratasse de Crianças; Utilizar o Aspecto Emocional Muito Mais que a Reflexão; Manter o Povo na Ignorância e na Mediocridade; Estimular o Público a Ser Complacente com a Mediocridade; Reforçar o Sentimento de Culpa Pessoal e Conhecer os Indivíduos Melhor do que Eles Mesmos se Conhecem. Não entrarei em detalhes sobre cada uma destas estratégias, pois elas podem ser conhecidas pelos próprios nomes.    
                                  Pelo exposto, podemos ver que a mídia consiste em um importante fator utilizado para a condução do rebanho humano. Devemos, portanto, acreditar com reservas naquilo que recebemos através da mídia diariamente e entender que, ao invés de pretender nos informar e instruir para que decidamos, acertadamente, por nós mesmos, a mídia busca fazer com que pensemos da forma como as elites desejam que pensemos.
                                Com respeito a uma nova atitude do indivíduo enquanto consumidor, eu destaco como importante as declarações de Sam Walton, fundador do WAL MART (a maior rede varejista do mundo), fazendo o discurso de abertura de um programa de treinamento para seus funcionários: - "Eu sou o homem que vai a um restaurante, se senta à mesa e com paciência espera, enquanto o garçom faz tudo, menos saber qual é o meu pedido. Eu sou o homem que vai a uma loja e espera calado, enquanto os vendedores terminam suas conversas particulares. Eu sou o homem que entra num posto de gasolina e nunca toca a buzina, mas espera com paciência que o empregado termine a leitura do seu jornal. Eu sou o homem que, quando entra num estabelecimento comercial, parece estar pedindo um favor, ansiando por um sorriso ou esperando apenas ser notado. Eu sou o homem que entra num banco e aguarda, tranquilamente, que as recepcionistas e os caixas terminem de conversar com seus amigos e espera. Eu sou o homem que possui uma desesperada e imediata necessidade de um produto, mas não reclama, pacientemente, enquanto os funcionários trocam idéias entre si ou, simplesmente, abaixam a cabeça e fingem não o ver. Você deve estar pensando que sou uma pessoa quieta, paciente, do tipo que nunca cria problemas. Se engana. Sabe quem eu sou? EU SOU O CLIENTE QUE NUNCA MAIS VOLTA! Eu me divirto vendo milhões sendo gastos todos os anos em anúncios de toda ordem, para me levar de novo àquelas firmas que deixei de frequentar. Quando fui lá, pela primeira vez, tudo o que deviam ter feito era apenas a pequena gentileza, tão barata, de me atender e enviar um pouco mais de cortesia. Clientes podem demitir todos de uma empresa, do alto executivo para baixo, simplesmente, gastando seu dinheiro em algum outro lugar” 
                             Assim, constato que o Sistema de Dominação existente funciona bem quando, e enquanto, a maioria das pessoas aceita a dominação, acredita nas ‘verdades’ proclamadas pelo Sistema, e as reproduz. 
                           Os indivíduos enquanto cidadãos, consumidores, fiéis, eleitores, contribuintes, correntistas, telespectadores, leitores, etc., possuem uma monumental força, insuspeitada por eles mesmos. Se conscientes e unidos, podem ‘quebrar’ empresas (não consumindo seus produtos ou serviços), podem fechar igrejas transformadas em empresas pelos seus dirigentes que só pensam no dinheiro dos fiéis (não frequentando seus templos), podem sanear o legislativo do país (não votando em políticos reconhecidamente corruptos ou que não tenham ficha limpa) e podem pressionar o governo a se moralizar (mediante passeatas, greves, boicotes, etc.). 
                              Só não o fazem por serem desunidos, mal informados, acomodados, influenciáveis e ingênuos. A única maneira de mudar o mundo é começando por mudar a nós mesmos. Reconheço que somos apenas uma gota no vasto oceano dos seres dominados, mas o mar se move na direção para onde as gotas se dirigem, e não o contrário. O mesmo se passa com os bandos de pássaros, com os cardumes, com os rebanhos e com as populações; isto é, são os seus componentes que os movimentam. Se nós, seres humanos, nos tornarmos conscientes de como as coisas se passaram até agora, poderemos modificá-las no futuro. Como bem disse o médium Chico Xavier: “embora não possamos voltar atrás e fazer um novo começo, podemos sempre começar de novo e fazer um novo fim”.
                                Célia Resende, em seu livro ‘Terapia de Vidas Passadas’ menciona que “Para essa transformação devemos considerar, entre outras coisas, a união entre o psiquismo e a política. Vivemos numa sociedade cheia de injustiças e baseada em um modelo de produção antiquado, destruidor do meio ambiente e provocador de desigualdades. Porém, não devemos nos confundir e pensar que essa mudança não pode ser conseguida sem se pertencer a uma igreja, partido político ou seita da Nova Era. A verdadeira transformação é interior, não depende de rituais nem de sectarismo”.
                                   Espero que esta nova maneira de entender o mundo em que vivemos; nova na medida em que difere da versão oficial, se adotada pela maioria dos indivíduos, contribua para libertá-los de falsas propagandas, falsos valores, crenças, crendices e superstições; que, de maneira maquiavélica, têm sido inoculados e mantidos vivos em nossas mentes, com o único objetivo de nos esconder a verdade e permitir que sejamos facilmente dominados, sem que dessa dominação nos apercebamos e sem que oponhamos resistência a ela. 
                                   Deveríamos nos tornar mais conscientes dos nossos interesses e menos ingênuos com relação aquilo que nos tentam incutir através da grande mídia, oficial e privada. Devíamos procurar fontes alternativas para nos informar: cursos, seminários, palestras, livros e a própria WEB; além de defender os nossos pontos de vista e valores, não nos deixando influenciar e, principalmente, fazendo apenas aquilo que a nossa consciência, ou o bom senso, indicasse.
                                         Após eu haver escrito tudo isto, a velha dúvida volta a minha mente: - E se estas conclusões forem todas falsas, fruto apenas do avanço da doença que distorce minha percepção das coisas? Talvez eu devesse parar de escrever este diário. Vamos que caia em mãos de alguém que acredite em tudo o que ele contém, em todas as suas conclusões? E se este desafortunado sair por ai, espalhando estas minhas maneiras distorcidas de ver a nossa sociedade e a nossa gente? E se todos aqueles que o escutarem acreditarem naquilo que diz e seguirem seus conselhos? Acho que estaremos frente a uma nova geração de brasileiros que poderia, eventualmente, virar tudo de ‘cabeça para baixo’, com conseqüências imprevisíveis para a nossa servidão consentida.
                                      Entretanto, às vezes, ouço uma voz interior, que me diz baixinho no ouvido: - Vai fundo cara, vamos mudar este país!

Capítulo Final
Nota do autor (1)


                      Levo ao conhecimento dos meus prezados leitores que recentemente descobri, através de informações obtidas com o meu vizinho da frente (do qual me tornei amigo em razão dele também ser torcedor do América Futebol Clube), que o antigo morador e ex-proprietário da modesta casa em que resido atualmente, não foi, como eu supus no Prólogo desta obra, vitimado por um repentino surto psicótico, vindo a falecer no hospício para onde havia sido conduzido.
                                 Na realidade, ele viajou junto com seu psiquiatra, que apresentou o caso dele a uma banca da Faculdade de Medicina da Universidade de um determinado Estado Norte-Americano, para obter o título de Doutor (PHD). 
                               Seu caso era tão raro que a American Society of Psychiatry, Viticulture and Enology, o mantém em um hotel cinco estrelas com todas as despesas pagas e um salário mensal de dez mil dólares, pelo prazo em que durar a análise completa que ele fará, em um diário como este que aqui esqueceu, da vida norte americana, de seus costumes e de sua gente; enquanto os cientistas analisam a sua estranha e rara síndrome, diga-se de passagem, totalmente desconhecida, ainda, naquele avançado país do Primeiro Mundo. 
                              Creio que foi em razão da rápida viagem que fez aos USA que deixou tudo para trás, não pensando mais em retornar a este nosso país.  Tendo ficado inadimplente com a prefeitura local, no que respeita ao pagamento do Imposto Predial e Territorial, sua casa foi a leilão, sendo por mim adquirida. Por sorte, deixou o diário que escreveu esquecido dentro do armário e, por mais sorte ainda, eu o encontrei antes que fosse atirado ao lixo junto com o próprio armário. 
                             Consegui negociar o seu diário com estudantes de psicologia que cursavam o mestrado e, com os recursos que arrecadei na venda, adquiri uma TV de plasma onde assisto, aos domingos, o futebol com meu vizinho da frente, tomando umas caipirinhas e saboreando uns pasteis de casca de camarão, feitos por dona Cotinha, sua esposa de um terceiro casamento.
                               Já fiz amizade com todos os moradores da comunidade e andei perguntando se conheciam o antigo proprietário da casa onde moro. A opinião é unânime: um tipo esquisito, que não gostava de futebol, pagode, cachaça, churrasco na laje com banho de caixa d’água, culto no templo, macumba no terreiro, novela na TV, briga na rua, ver ‘presunto’ desovado, jogar pedra na polícia, servir de olheiro; em suma, um chato que não se entrosava e não falava com ninguém!
                               Eu, já tendo estabelecido relações sociais com a comunidade e sendo um dos moradores mais cultos e inteligentes (afinal sou professor de português), pretendo me candidatar ao cargo de presidente da Associação de Moradores, em uma primeira etapa, para, posteriormente, disputar uma cadeira na Assembléia Legislativa. 
                                 Causa-me muita tristeza, no fundo da alma, ver o que a doença pode fazer com o corpo e com a mente de uma pessoa. Eu que fui, talvez, uma das poucas pessoas a ler integralmente o seu diário (já que a maioria daqueles que a ele teve acesso deve ter parado logo nas primeiras páginas), posso atestar o alto grau de insanidade que apresentava na época em que o escreveu. 
                                 Seus argumentos são totalmente estapafúrdios e desconexos, demonstrando uma visão do nosso país e da nossa gente totalmente oposta daquela de nós outros, a maioria da população e suas autoridades, ou seja, aqueles de ‘Mens Sana in Corpore Sano’; isto é, saudáveis de corpo e mente. Espero que encontrem cura para o seu mal nos Estados Unidos, país rico e cientificamente desenvolvido e que ele fique por lá, pois, por aqui não faz falta nenhuma.

Nota do autor (2)


                       Poucos dias antes de este diário ser por mim negociado com os estudantes de que já falei, chegou ao meu conhecimento, através dos chefes da comunidade onde resido (possuidores de inúmeros contatos na Bolívia, Colômbia, México e nos Estados Unidos), que o autor do diário, tendo concluído as suas observações sobre a sociedade norte-americana, nos mesmos moldes do diário que fez para o nosso caso, está sendo cogitado para o Prêmio Nobel da Sagacidade, em razão de haver trazido à luz inúmeros aspectos daquela sociedade que ainda não haviam sido percebidos pelos próprios habitantes do país.
                                 Vários sociólogos de renome, economistas, políticos, filósofos e religiosos pagam fortunas para assistir algumas de suas conferências, traduzidas pára vários idiomas.
                              Muitos escritores famosos querem escrever obras em parceria com ele. Parece também que foram divulgados os resultados de seus exames de saúde mental e que estes foram considerados absolutamente normais pela junta médica que o assiste naquele país.
                          Embora a Medicina seja bastante avançada nos Estados Unidos, não acredito que alguém capaz de escrever um diário como este que ele aqui deixou, esteja em pleno gozo de suas faculdades mentais. 
                             Isto, com certeza, deve se tratar de mais uma jogada comercial dos americanos, para prejudicar o nosso país, alegando que aqui a Medicina é medíocre e que o Estado não respeita as minorias e os enfermos mentais. Concorda comigo?

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