sábado, 9 de julho de 2016

91. O Especialista

Jober Rocha*


                       Desde criança ele sempre detestara as más notícias. Nas proximidades do natal (durante todo o período em que sobreviveu a sua crença no papai Noel), ele rezava para que não nevasse muito no Pólo Norte e para que o trenó do bom velhinho não apresentasse nenhum defeito, que impedisse seu deslocamento para todos os lugares do mundo, inclusive até a sua própria residência.
                             Pessimista por natureza, ele achava que tudo iria dar errado, antes mesmo de começar. Religioso convicto, ele passava o dia inteiro rezando e pedindo ao Criador que evitasse o inevitável, que previsse o imprevisível, que remediasse o irremediável. 
                               Sua infância e adolescência foram povoadas por temores: ele não iria passar de ano no colégio; iria pegar caxumba, coqueluche e varicela, mesmo tendo tomado as vacinas; não arranjaria namorada; ficaria desempregado para sempre, vivendo em casa dos pais, etc. etc. e etc. 
                                 Quando, durante o horário do recreio no colégio, algum colega se aproximava dele, trazendo alguma notícia ou para fazer algum comentário, fugia correndo imaginando ser uma novidade trágica sobre a morte de alguém ou sobre sua iminente expulsão daquele educandário.
                                Aos dezoito anos, tendo se livrado do serviço militar através de um tio coronel, a quem pedira encarecidamente para ser excluído por temer morrer em uma eventual guerra (que, com toda certeza, se iniciaria logo após os primeiros meses de sua vida de recruta), matriculou-se em um curso de pilotagem, por insistência do irmão que também fazia o mesmo curso. Não conseguiu passar das aulas teóricas; pois temia que ao alçar o primeiro voo com o instrutor, aquele seria seu último dia de vida, em razão da inesperada queda do aparelho por defeito mecânico. Resolveu, pouco tempo depois e quase que obrigado pelos pais, (pois achava que não passaria nas provas), prestar exames vestibulares para a Faculdade de Direito da sua cidade natal.
                             Tendo sido aprovado, iniciou o curso e viu, assim, passarem-se os anos, sempre esperando ficar reprovado e ter que repetir diversas matérias do curso. Finalmente, tendo se formado em Direito, decidiu prestar concurso para uma carreira no governo federal, imaginando que não teria mesmo nenhum cliente como autônomo, caso resolvesse abrir escritório de advocacia na cidade onde morava. 
                           O concurso que fez, sem nenhuma noção prévia do tipo de trabalho que executaria, foi para analista de informações de uma agência federal de inteligência, localizada na capital federal, e que exigia um período de estágio e de aperfeiçoamento naquela cidade. Para lá se dirigiu, achando que logo nos primeiros dias seria considerado incapaz e remetido de volta ao local de origem. 
                           Por incrível que pareça, saiu-se bem durante o estágio inicial e também no período de aperfeiçoamento; tendo, ao final do curso, escolhido para ser lotado em um departamento que acompanhava as atividades de grupos terroristas internacionais em nosso país. Sua escolha foi motivada pela convicção de que o país, isolado física e politicamente do resto do mundo, não se constituía em local atrativo para atos de terrorismo internacional. Assim, esperava que nunca fosse necessária uma ação de campo, na qual sua vida pudesse vir a correr algum tipo de perigo. 
                            Conforme previra, os anos transcorreram tranquilos para ele, como simples analista, até o dia em que, por razões administrativas, fora nomeado chefe do departamento onde trabalhava. A partir de então, começou uma verdadeira ‘via crucis’ para os seus subordinados.
                          Como chefe, ele não admitia que lhe trouxessem nenhuma má notícia, chegando, mesmo, a repreender qualquer agente ou analista, seu subordinado, que lhe apresentasse algum informe (ou trouxesse alguma informação pronta), que confirmasse à presença de terroristas no país; mencionasse ações eventualmente programadas por eles; descrevesse a existência e a localização de bases operacionais deles no território; tratasse da interceptação de conversas telefônicas e demais comunicações, etc. Fazia questão de deixar bem claro aos seus auxiliares, que queria apenas boas notícias; isto é, notícias que indicassem estar o país, inteiramente livre de tais problemas e que reinava a mais absoluta calma sob as fronteiras de vasto território nacional. Chegou, até mesmo, a rebaixar alguns agentes de campo que lhe trouxeram informes sobre a existência de uma base terrorista em localidade situada numa tríplice fronteira daquele país.
                               Os relatórios diários que encaminhava para a alta administração da agência, eram sempre favoráveis e descortinavam um cenário seguro e confiante para os anos vindouros.
                             Certo dia encontrava-se em seu gabinete a remexer numa gaveta, quando, ao olhar o jornal do dia deixado sobre uma cadeira, leu a seguinte manchete: “Governo trará seis mil médicos cubanos para atuarem no interior do país”.
                           Quase caiu desmaiado. Sua pressão arterial subiu e os batimentos cardíacos se aceleraram. Imediatamente, ele imaginou aqueles seis mil supostos médicos infiltrando-se por todo o território nacional, a promover uma revolução política, social, religiosa e cultural dos camponeses, com conseqüências imprevisíveis para a paz social, para o seu departamento e para ele próprio. Quantos daqueles que viriam seriam, realmente, médicos e quantos seriam, apenas, agentes revolucionários sorrateiramente infiltrados? Aquele fato novo, certamente, traria aumento de trabalho para o seu departamento, com a possibilidade de uma enxurrada de más notícias. Pensou em solicitar, imediatamente, licença médica, transferência para a biblioteca ou exoneração, pura e simples, do cargo que ocupava. 
                            Ao levantar-se cambaleante e seguir caminhando até a cantina, onde tomaria um café bem forte e amargo, para se reanimar daquele mal estar que sentia, ouviu, em uma televisão ligada, a notícia de que a agência de inteligência (congênere a sua) do governo de um grande país aliado, há muitos anos vinha grampeando as comunicações telefônicas e a Internet de vários órgãos do governo federal, inclusive às da sua própria agência e, também, da Presidência da República. Quase teve um desmaio, precisando sentar rapidamente para não se estatelar no chão. Como era possível que nunca soubera de nada disso? – pensou. Estaria sendo traído pelos seus próprios subordinados, que lhe sonegavam informações? – imaginou.
                             A partir daquele momento, decidiu que não podia confiar em mais ninguém naquela agência, fosse seu subordinado ou seu superior.
                            Achou que a única maneira de descobrir quem sabotava o serviço, para, a seguir, poder aplicar toda a severidade da lei (tão rígida que era temida por criminosos do mundo todo) àquele traidor, seria, ele mesmo, fingir que passava para o lado inimigo, como um agente duplo, triplo ou, até mesmo, múltiplo, e, assim, poder desvendar os mistérios subterrâneos daquela agência onde trabalhava.
                                Sua primeira providência foi a de contatar diversos agentes de inteligência estrangeiros operando no país, cujas identidades apenas ele e alguns poucos na agência conheciam. Alegando baixo salário, o vicio do jogo e a vida boêmia (que fizeram com que se endividasse), ele propôs aos agentes estrangeiros o fornecimento de informações secretas do país e da sua própria agência, em troca de uma remuneração mensal em dinheiro. Todos concordaram e, assim, ele passou a enviar, com certa regularidade, informes e informações classificadas, coletados por sua agência; recebendo em pagamento alguns Dólares, Rublos, Euros e Yuans.
                                        Após o envio inicial de algumas informações superficiais (especificamente do interesse particular de cada uma das agências estrangeiras contatadas), a primeira informação genérica e mais substancial que entregou, possuía cunho tanto militar, quanto político, psicossocial e econômico. A mensagem que ele mandou continha as seguintes noticias:
Campo Militar
1. Nossas forças armadas não dispõem de recursos para a alimentação de seus soldados, razão pela qual os quartéis funcionam, apenas, em meio expediente;
2. Nossos navios, aviões, tanques de guerra e demais veículos militares, em virtude da falta de peças de reposição, são frequentemente canibalizados, para que apenas alguns poucos possam continuar ainda operando;
3. Nossas munições, em estoque, são suficientes para apenas um dia de intensos combates.
4. Contínuos e motoristas do senado e da câmara dos deputados ganham salários superiores aos dos nossos oficiais generais.
Campo Político
1. As vagas para deputados estaduais e federais, já nas próximas eleições, passarão a obedecer a um sistema de quotas raciais;
2. Cada político custa, aos cofres da nação, U$ 7,4 milhões por ano;
3. Políticos condenados por crimes, pela alta corte de justiça, não perdem os mandatos e ainda continuam fazendo parte de comissões nas duas casas legislativas da capital federal.
4. Denuncias de empresários presos por corrupção, que fizeram delação premiada, indicam que mais da metade dos deputados e senadores recebem, regularmente, propinas das empresas que prestam serviços ao governo.
Campo Econômico
1. Os juros mensais, cobrados pelos bancos privados, são os mais elevados do planeta, chegando ao percentual de 15% ao mês;
2. As concorrências públicas são, em sua maioria, fraudadas e superfaturadas, custando para o setor público, no mínimo, o dobro do que custariam na realidade;
3. A maior parte das empresas produtoras, visando auferir maiores lucros, sem que o consumidor se aperceba reduzem o peso e a quantidade das embalagens, mantendo o mesmo preço, sob as vistas, contemplativas e incentivadoras, das autoridades fiscalizadoras.
4. O Déficit anual no orçamento do governo federal é da ordem de R$ 120 bilhões.
Campo Psicossocial 
1. O desemprego atinge um contingente de onze milhões de pessoas e o governo, em que pese o enorme déficit anual, mantém inúmeras mordomias para os três poderes da república; além do programa bolsa família para cerca de 46 milhões de pessoas (isto é, um em cada quatro cidadãos é beneficiado pelo programa bolsa família) e outros programas tais como o auxílio gás, a bolsa alimentação, o auxílio luz, o auxílio amamentação, o seguro desemprego, o bolsa escola, o bolsa permanência em serviço, o auxílio reclusão, o bolsa prostituta e o auxílio natalidade;
2. Os cidadãos trabalham cerca de cinco meses por ano, apenas para pagar os impostos federais, estaduais e municipais devidos, sem receberem quase nada de benefícios governamentais, seja em termos de saúde, educação, transportes, segurança, etc.
3. Tão somente cinco por cento dos crimes de morte cometidos no país, são apurados. Destes, apenas dois por cento dos réus são sentenciados. Nos crimes de colarinho branco (quando são apurados) os responsáveis, na maioria das vezes, escapam de qualquer condenação em virtude dos inúmeros artifícios jurídicos e do aparelhamento existente nos poderes da república.

                                 A primeira impressão causada por esta mensagem, quando chegou à sede das diversas agências de inteligência espalhadas pelo mundo, foi de um completo estupor por parte de seus dirigentes. Os chefes das respectivas entidades logo marcaram reuniões com os seus principais dirigentes e colaboradores, para analisar e discutir o conteúdo da referida mensagem que havia chegado daquele país distante.
                                    Embora, na qualidade de escritor, eu tenha sido informado, por vias indiretas e sigilosas, de tudo aquilo discutido nas várias agências de inteligência que receberam a dita mensagem (NSA e CIA nos USA, Mossad em Israel, KGB e FSB na Rússia, MSS na China, BND na Alemanha, DGSE na França e M16 no Reino Unido), apenas relatarei o que se passou na sede da CIA, por ter sido a reunião mais branda, mais pacífica e com as resoluções mais comedidas; já que, foram os únicos que entenderam aquele assunto da forma como o entenderam, em razão, talvez, da grande e tradicional experiência que tinham no ramo da espionagem e da contra-espionagem.
                                 O diretor-geral da agência norte-americana, após expor a todos os subordinados o teor da mensagem, começou por elogiar aquela agência de inteligência daquele distante país, considerando-a, talvez, uma das melhores do mundo, tendo em vista aquela operação de contra-informação que haviam armado. As informações fornecidas, segundo ele, visavam, tão somente, fazer crer aos inimigos reais e potenciais daquele distante país, a fragilidade do mesmo nos quatro campos mencionados do poder nacional. Evidentemente, aquilo era tudo mentira; pois, nenhum país do mundo era tão fraco militarmente, possuía políticos tão incapazes e venais, uma economia tão sem controle e do tipo salve-se quem puder, governo tão corrupto e sistema judiciário tão frouxo. 
                                 Segundo o diretor-geral da agência norte-americana, as autoridades daquele país eram muito mais espertas do que a dos iranianos e dos coreanos do norte. Ao contrario daqueles dois países, cujas autoridades alardeavam seus progressos nos campos militar e nuclear, os dirigentes daquele país, fazendo o mundo inteiro acreditar que eram tão fracas e corrompidas, deveriam estar quase a ponto de obter a bomba nuclear, o submarino atômico, o foguete balístico intercontinental e as aeronaves de quinta geração; tudo isto - repetia o diretor - disfarçadamente, nas barbas dos países mais desenvolvidos e da Organização das Nações Unidas, que de nada disto suspeitavam. 
                             Aquela operação de contra-informação que haviam preparado ficaria, para sempre, nos anais da espionagem mundial, ao lado mesmo das admiradas operações do velho almirante Wilhelm Canaris (chefe da ABWER de Hitler, durante a Segunda guerra Mundial), e das demais operações de nomes Paperclip, MKultra, Pluto, Ira de Deus, Payback, Eiche, Entebbe, Lança de Netuno e Valquiria. 
                           Como acerto final, segundo disse o diretor, ficou combinado que eles intensificariam a espionagem naquele país, enviando mais agentes e coletando e analisando maior volume de informações da Internet. Combinaram, inclusive, que enviariam alguns terroristas internacionais, cujo objetivo seria o de sabotar as instalações nucleares, navais e aeronáuticas, praticando atentados de todo tipo, com o fito de atrasar os reconhecidos progressos do distante país, naqueles diversos campos. 
                        Finda a reunião, o diretor-geral solicitou a permanência no recinto, dos principais dirigentes da agência. Com as portas trancadas começaram, então, a discutir uma proposta adequada de salário, certamente irrecusável, para a contratação do chefe daquele departamento da agência de inteligência daquele país, especialista competentíssimo que, de forma tão hábil e surpreendente, arquitetara aquela magnífica operação de contra-informações.  Completamente entusiasmado, naquela ocasião, o diretor-geral comentou com seus subordinados:
- “Com um especialista deste quilate em nossos quadros funcionais, destruiremos nossos inimigos, dominaremos o mundo e, finalmente, implantaremos a tão sonhada Nova Ordem Mundial”! 
- “Daremos uma rasteira nos ‘Extraterrestres Greys’, que querem nos dominar! Seremos os únicos e exclusivos donos do nosso Sistema Solar, assolado, atualmente, por alienígenas que já possuem bases em Marte e na Lua! Em seguida, exerceremos o nosso domínio sobre todo o Universo e iremos conseguir mais, sempre mais e muito mais ainda...” – finalizou para os subordinados, visivelmente emocionado, com os olhos injetados e lágrimas a escorrerem pela face.

_*/ Economista, M.S. e Doutor pela Universidade de Madrid, Espanha.

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