100. Como se tornar um escritor de sucesso
(Capítulo 2)
Jober Rocha*
Capítulo 2
Tendo, finalmente, conseguido escapulir sem ser notado daquele hospital psiquiátrico e retornado ao meu Estado, de ônibus, um belo dia, resolvi ir ao centro pagar uma conta de energia elétrica.
Aquele seria um dia comum na minha vida, como qualquer outro, não fosse o meu deplorável e irresistível costume de querer ser sempre prestativo e ajudar ao próximo, metendo-me, por vezes sem ser chamado, na vida de pessoas que desconheço totalmente.
Ao observar uma magra velhinha arrastando pesada mala e tentando atravessar movimentada rua do bairro, ofereci-me logo para ajudá-la. Embora ela insistisse muito em não querer largar a mala, tomei o pesado volume da sua mão e, colhendo-a pelo braço, iniciei a travessia daquela agitada artéria. A mala era realmente pesada e uma pobre senhora, como ela, teria muita dificuldade em carregar tamanho peso. Assim, mesmo contra a vontade da idosa, ofereci-me para conduzir a pesada mala até o seu destino final.
A senhora deu-me, então, um endereço que ficava em parte pobre da cidade, local ermo e mal frequentado. Em razão do adiantado da hora, resolvi pegar um táxi. Durante a viagem ela pouco falou, dizendo, apenas, que fazia alguns pequenos serviços para seu filho, que era gerente de uma empresa cujo nome na hora eu não entendi direito.
Chegando ao destino ao cair da noite, percorri, com ela, vielas estreitas e becos mal cheirosos até o endereço fornecido. Era um velho sobrado caindo aos pedaços, onde, no último andar, avistava-se uma tênue luz bruxuleante. Com a mala nas costas, arfando, subi dois lances de escada precedido da velha senhora.
Tendo atingido o final da escadaria, um corredor escuro conduzia para uma única porta fechada. A senhora deu três batidas curtas e três longas e a porta foi aberta. Entrando no recinto mal iluminado, com a pesada mala nos ombros, levei alguns segundos para me familiarizar com o ambiente na penumbra. Quando meus olhos se aclimataram pude perceber alguns colchões velhos jogados pelo chão, garrafas espalhadas, balanças, sacos plásticos e, principalmente, quatro indivíduos mal trajados e mal encarados, portando fuzis e diversas armas de menor calibre, olhando diretamente para mim com cara de tigres selvagens.
Um deles, voltando-se para a velha senhora, perguntou: - Mamãe, quem é este otário com cara de idiota?
A idosa respondeu com a cabeça baixa: - Eu fiz de tudo para ele não vir; mas, o infeliz insistiu de todas as maneiras que queria carregar a minha velha mala!
O individuo aproximou-se de mim e, apontando uma arma para a minha cabeça, mandou que retirasse a camisa e a calça, ficando eu apenas de cueca e sapatos.
A senhora, então, começou a abrir a mala e pude constatar que estava cheia de pacotes de maconha e de cocaína. Após retirar todo o conteúdo, ela disse ao filho que em sua casa ainda tinha o correspondente a duas malas cheias, quantidade esta que traria nos próximos dias.
Olhando-me diretamente nos olhos, com um olhar frio e assassino, o chefe (ou gerente, conforme disse a velhinha) falou: - Você quer trabalhar para nós, trazendo as malas? Minha mãe já está bem velha e tem dificuldades para carregar todo esse peso; mas, com você fazendo o serviço junto poderemos movimentar muito mais mercadoria!
Naquela situação em que me encontrava, apenas de cueca e sentado no chão frio, só tinha duas alternativas: dizer não e morrer ali, na hora, ou dizer sim e ganhar mais alguns minutos de vida; portanto, eu disse sim. Vejam vocês, caros leitores, em uma cidade com milhões de habitantes eu fui o escolhido pelo destino para entrar em uma fria como aquela. Concordam comigo que, pela Teoria das Probabilidades, a minha chance de ser premiado nesta loteria do crime era ínfima, mas, mesmo assim, ganhei o primeiro prêmio? Isto só podia ser uma daquelas armadilhas, preparadas pela Entidade Superior que vigiava meus passos, visando atrasar meu progresso material e meu desenvolvimento espiritual.
Vendo a conta de energia elétrica que eu carregava no bolso da calça, o chefe disse: - Então, você é o Fulano, que mora na Rua das Esmeraldas 120! Fulano, você receberá mil reais por cada mala que trouxer com minha mãe, que virá sempre junto de você para não levantar suspeitas! Se nos enganar, trair, delatar ou fugir, morre! Sua cabeça será cortada e seus membros espalhados pelas ruas do bairro, para que os cães se alimentem e os ratos passem por cima!
Ainda sentado no chão, sem roupas, olhei para meu novo patrão e, pensando em tudo aquilo que ele dissera, respondi: - Obrigado, excelência, eu estava mesmo precisando de uma ajuda financeira! Esteja certo de que acompanharei sua mãe e até farei companhia à velha em meus momentos de folga; pois esta cidade está cheia de marginais e a gente nunca sabe quando poderão atacar uma velhinha!
Após selarmos nosso pacto, ele me agradeceu por proteger sua mãe contra a sanha de eventuais bandidos e, a partir de então, duas ou três vezes por semana, eu e a velhinha seguíamos juntos para o malfadado sobrado onde entregava a mala e recebia os mil reais.
Algumas vezes, durante o trajeto, pensei em empurrar a velha na frente de um ônibus ou, até mesmo, largar a mala e sair correndo; mas, a advertência do chefe ainda ecoava em meus ouvidos: - “Você terá a cabeça cortada e os membros espalhados pelas ruas do bairro, para que os cães...”
Finalmente, quando já tinha juntado um bom quinhão, resolvi por um fim naquele tormento: abandonaria tudo e iria para São Paulo. Talvez, a minha ausência naquele hospital psiquiátrico ainda não houvesse sido notada e eu pudesse, calmamente, voltar para meu antigo quarto e entrar sorrateiramente em baixo das cobertas. Talvez chegasse bem na hora do jantar e pudesse desfrutar, até, de uma sopa quentinha.
Assim, em meu último trajeto com a senhora idosa, quando ela desejou ir ao banheiro de uma lanchonete, aproveitei a oportunidade e, tomando um táxi com a grande mala, me dirigi para a estação rodoviária, onde embarquei no primeiro ônibus em direção a São Paulo. Por via das dúvidas, caso não houvesse vaga naquele hospital, pensava em comprar a minha aposentadoria, definitivamente, com o conteúdo daquela pesada mala...
Após haver desembarcado detive-me por alguns instantes para solicitar, a um carregador de malas, informações sobre como chegar ao meu velho hospital. Depois de ouvir suas detalhadas explicações sobre a linha do metrô em que deveria embarcar e as conexões que deveria fazer, voltei-me para apanhar a mala que colocara ao meu lado e seguir em frente. Ela, simplesmente, não estava mais lá. Havia desaparecido. Procurei por todas as partes, olhei para todas as malas que via, verifiquei em todos os cantos. Nada. Haviam roubado a mala. Desesperado, segui andando sem rumo pelas ruas daquela velha capital.
Depois de muito andar, parei debaixo de um viaduto onde alguns mendigos cozinhavam algo para comer. Sentando-me perto deles para descansar, fui convidado a participar daquela modesta refeição. Como nada havia comido, aceitei de bom grado a comida que me ofereciam. Entabulando conversação soube que eram do interior e que, tendo vindo para a capital em busca de emprego, após ficarem meses desempregados resolveram viver nas ruas, mendigando. Lembravam-se com saudades dos tempos em que viviam na cidade natal. Segundo diziam, no lugar de onde vieram as mulheres eram lindas, as águas eram puras e as matas verdejantes. Conforme ouvia o que falavam, em minha mente ia se formando uma imagem daquilo que poderia ser o próprio paraíso terrestre. Ouvi deles o nome da pequena cidade, me despedi agradecido e segui em frente.
Caminhando sem destino, fui levado pela Providência Divina, às margens de uma rodovia que para o interior conduzia. Ali, aproximando-me de um caminhão parado, fui solicitado pelo motorista a auxiliá-lo na troca de um pneu furado. Terminado o serviço, perguntou-me para onde ia. Dei-lhe o nome da pequena cidade, terra natal dos mendigos que conhecera, e, por enorme coincidência, o caminhoneiro justamente para lá se dirigia. Fiquei pensando no que poderia estar por detrás de tamanha coincidência? Seria novamente a maligna Entidade tentando me armar mais uma arapuca? Desconfiado, sentei junto dele na cabine e seguimos calados, em direção ao meu pequeno Eldorado. Após seis horas de viagem penetramos em uma pequena e poeirenta cidadezinha, com uma rua transversal e duas ruas paralelas. Parando em frente a um determinado galpão, ele saltou e disse: - Pronto, chegamos!
O galpão estava abarrotado de mercadorias, principalmente com pilhas de caixas de aparelhos eletro-eletrônicos. Chamando-me a um canto ele confidenciou que transportava cargas roubadas para aquele longínquo depósito, de onde, aos poucos, ia retirando as caixas e vendendo para comerciantes desonestos de várias cidades e da capital. Propôs-me que ficasse sendo seu parceiro nas viagens, ajudando-o a carregar e a descarregar as mercadorias.
Como eu viera até ali em busca de tranqüilidade, paz e sossego, recusei agradecido e fui hospedar-me no pequeno e único hotel-pensão da localidade.
(Continua)
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