99. Como se tornar um escritor de sucesso
(Prólogo e Capítulo 1)
Jober Rocha*
Prólogo
Como escritor, creio que não existem regras para se alcançar o sucesso nesta profissão. Muitos escritores de sucesso começaram escrevendo sem conhecerem as regras da gramática e sem, jamais, haverem frequentado qualquer faculdade. Muitos doutores que frequentaram universidades, jamais escreveram um texto sequer que fosse aproveitável, quer pela gramática quer pelo conteúdo.
Um amigo meu, no entanto, cuja existência pobre e sofrida sempre foi pautada pelas vicissitudes, conseguiu, enfim, sobrepondo-se a tudo isto, fazer sucesso na literatura. É bem verdade que mesmo despontando como um dos novos valores promissores, em nossa Literatura, financeiramente continuou como sempre esteve; isto é, mau.
São dele estas considerações, a seguir, em que discorre sobre a sua infância, juventude e maturidade, chegando, finalmente, a explicar como entrou no campo da Literatura e como chegou a obter um razoável sucesso, embora este galardão tenha sido obtido fora de nossas fronteiras e em idiomas distintos do nosso. Explico-me melhor, seus livros foram sucesso de vendas nas Ilhas Tuvalu, na Polinésia e na língua tuvaluana; bem como, na Ilha de Los Negros, na Papua-Nova Guiné, em um dialeto local.
A descrição de como conseguiu chegar ao lugar de destaque que hoje ocupa no meio literário, foi, por ele mesmo, a mim confiada em diversos encontros que mantivemos em um bar próximo da minha residência, onde costumávamos nos encontrar, desde os tempos de meninos, para beber o refrigerante Grapette e comer pastéis de queijo. Assim, seguem os comentários do meu amigo, que ele me passou em capítulos escritos em folhas de papel higiênico, que tive a paciência de transcrever para o computador; embora eu não creia que estas circunstâncias possam servir de balizamento para aqueles que desejam se tornar escritores. Como o relato é razoavelmente longo, resolvi dividi-lo, também, em capítulos (diferentes daqueles que ele me passou), para facilitar aos eventuais leitores. Segue, portanto, o capítulo primeiro.
Capítulo 1
Aos estimados leitores que não me conhecem direi apenas que, embora passando por sérias dificuldades de ordem financeira, possuo, no entanto, um passado limpo e, até certo ponto, virtuoso. Nascido em pequena cidade do interior do Estado e filho de pais totalmente ausentes, nem por isso adquiri qualquer vício ou trauma de infância, que me tornasse um indivíduo complexado e anti-social. Criado solto pelas ruas, não me deixei contaminar pela moral vigente naquele submundo em que fui criado, convivendo com a elite da ralé e com a ralé da elite, ambas fazendo parte da escória municipal.
Autodidata, aprendi a ler sozinho utilizando, como cartilha, velhos manuais de eletrodomésticos, que encontrava jogados nas lixeiras, e embalagens das balas e dos chicles, que eventualmente consumia rumo a uma rinha de briga de galo ou ao campinho de futebol, atrás da Igreja Matriz.
Filósofo por natureza, sempre me preocupei com a origem das injustiças e das desigualdades humanas; razão pela qual, após ter atingido certa idade, eu comecei a desconfiar de que algo de errado estaria ocorrendo na minha breve existência, fazendo com que todos os empreendimentos de que eu participasse se tornassem desastrosos.
Embora fosse apadrinhado do chefe da gangue local, que me incumbia de algumas pequenas missões bem remuneradas, nunca consegui deslanchar na carreira do crime. Parece que algo de sobrenatural conspirava contra o meu sucesso profissional.
No campo afetivo, também, jamais tive sorte; pois a maior parte das moças com as quais saia, engravidava logo da primeira vez. Sem recursos financeiros que me permitissem assumir a paternidade de tantas crianças, a única solução que encontrei foi mudar-me para a capital, onde, totalmente desconhecido, poderia, finalmente, buscar o meu destino e, quem sabe, esconder-me (no meio da enorme população que ali vivia e transitava) daquela Entidade Maligna que teimava em intrometer-se no meu caminho, visando prejudicar meus negócios e empreendimentos.
Assim, em uma bela manhã ensolarada, tomei o ônibus que me conduziria à capital do Estado, onde pretendia radicar-me e fazer sucesso. Não mencionarei meu nome verdadeiro para evitar que inúmeros leitores, após lerem o conteúdo destas páginas, busquem contato com meus parentes para parabenizá-los por me haverem posto para fora de casa.
Desembarcando, pois, na estação rodoviária, segui direto para um pequeno hotel nas proximidades, onde, após me instalar, parti para descobrir e estudar os segredos daquela cidade grande. No dia seguinte, resolvi arranjar um emprego, não importava qual fosse, pois necessitava sobreviver.
Como sempre havia sido dotado de fácil relacionamento e ser também bastante cativante no falar, no gesticular e no vestir, me ofereci ao gerente para angariar hospedes para o hotel, junto ao público que desembarcava dos ônibus interestaduais. Naquele mesmo dia conduzi mais de dez nordestinos para o pequeno hotel. Em poucos meses eu vivia com bastante tranqüilidade, já dispondo de recursos suficientes para deixar aquele pequeno hotel e me mudar para um apartamento de quarto e sala em bairro próximo.
Como sempre havia sido dotado de fácil relacionamento e ser também bastante cativante no falar, no gesticular e no vestir, me ofereci ao gerente para angariar hospedes para o hotel, junto ao público que desembarcava dos ônibus interestaduais. Naquele mesmo dia conduzi mais de dez nordestinos para o pequeno hotel. Em poucos meses eu vivia com bastante tranqüilidade, já dispondo de recursos suficientes para deixar aquele pequeno hotel e me mudar para um apartamento de quarto e sala em bairro próximo.
Naquele local, vivi alguns anos felizes, chegando, inclusive, a ocupar a função de síndico do edifício. Nesta função, meu patrimônio aumentou sensivelmente; já que, sem que eu nada pedisse, os fornecedores de bens e serviços para o prédio me cumulavam de presentes e de gratificações financeiras, desde, é claro, que eu não procurasse me intrometer nos preços que cobravam pelos serviços ou produtos que forneciam e que, apenas, assinasse as notas fiscais e as faturas que recebia, atestando que os produtos haviam sido entregues e os serviços executados.
Fazendo parênteses, gostaria de salientar a constante preocupação que sempre tive com o meu próximo. Muito religioso, jamais deixei de depositar uma moedinha de dez centavos nos altares das igrejas que frequentava e de jogar uma bala de hortelã no chapéu de todo mendigo que pelas ruas encontrava.
Em todas as horas do dia, estava sempre pronto para ajudar a qualquer um que me procurasse, dando uma palavra de carinho e de estimulo, antes de ir-me embora. Em todas as ocasiões que algum necessitado veio me pedir algo, sempre tive a compaixão de encaminhá-lo para a pessoa mais próxima de mim, pedindo a esta que o atendesse da melhor maneira possível, enquanto eu me retirava rumo aos meus complexos afazeres.
Assim, não conseguia entender como as coisas sempre me saiam mal, toda vez que ousava um voo mais alto ou uma empreitada mais arrojada. Se meus estimados leitores não acreditam, constatem, através das páginas seguintes – que tive a iniciativa de escrever, tão logo os fatos ocorriam, em um rolo de papel higiênico que sempre carrego comigo, demonstrando, com isto, minha inequívoca vocação para escritor - como tem sido o meu dia a dia nestes últimos anos.
Fazia apenas dez minutos que eu entrara na fila de embarque para um voo de curta duração na Ponte-Aérea Rio X São Paulo, quando, ao abaixar-me para mexer em minha mala, os óculos que eu portava e que estavam meio frouxos caíram ao solo, quebrando suas lentes.
Como sou míope desde criança, as lentes eram verdadeiros fundos de garrafa e, sem elas, eu não enxergava quase nada. Apanhando a armação sem as lentes e colocando-a no bolso da camisa, fiquei alguns minutos sem saber o que fazer. Por fim, comecei a buscar naquela fila algum possível conhecido que pudesse auxiliar-me durante o embarque no Rio e o desembarque em São Paulo.
Ao olhar fixamente para algumas pessoas que estavam na fila atrás de mim, vendo, embora de maneira desfocada, se reconhecia algum conhecido, ouvi, partindo não sei de onde, uma voz feminina que dizia: - Veja Vera Lúcia, aquele sujeito com cara de tarado não tira os olhos de cima de você!
Fingi que não ouvi aquele comentário, olhei em frente e esperei a fila andar. Pouco tempo depois, cheguei ao balcão da companhia aérea. Informei à atendente que as minhas lentes haviam quebrado e que eu não enxergava quase nada. Ela providenciou uma cadeira de rodas, na qual fui conduzido, prioritariamente, até a porta da aeronave.
Cerca de dez minutos depois da decolagem, algumas cólicas, prenunciando enorme ‘Tsunami’ intestinal, indicaram que eu necessitava urgentemente ir ao banheiro Após algum esforço e muito constrangimento por parte dos outros dois passageiros, que tiveram de levantar para me dar passagem após eu haver pisado em seus pés, segui tateando até o fim do corredor, onde, vendo uma porta entreaberta, corri para dentro já desapertando o cinto e arriando as calças.
Logo em seguida ouvi gritos irados e percebi o co-piloto levantando de sua poltrona para conduzir-me para fora da cabine de voo. Por sorte, na parte da frente da aeronave, bem ao lado da cabine dos pilotos, havia um banheiro onde ele, empurrando-me para dentro, fechou a porta.
Logo em seguida ouvi gritos irados e percebi o co-piloto levantando de sua poltrona para conduzir-me para fora da cabine de voo. Por sorte, na parte da frente da aeronave, bem ao lado da cabine dos pilotos, havia um banheiro onde ele, empurrando-me para dentro, fechou a porta.
Foi só o tempo de arriar novamente a calça e a cueca. Mal tive tempo de me sentar direito no vaso. A quantidade foi tanta que por pouco não extravasava para fora. Na urgência daquele momento acabei sujando parte da calça e da camisa.
Ao procurar dar a descarga, constatei que a mesma não funcionava. Ao procurar papel higiênico, constatei que não havia. O recurso foi utilizar a cueca para a higiene pessoal, durante a qual acabei por sujar ambas as mãos, pois o espaço era muito apertado.
Já me encontrava ali dentro havia alguns minutos, quando bateram forte na porta. Pouco depois bateram novamente, com mais força, e, em seguida, outra vez, com mais força ainda. Alguém tão necessitado quanto eu estava do lado de fora, querendo entrar.
Ao me preparar para sair, abrindo a torneira para lavar as mãos e tentar lavar a calça e a camisa que haviam se sujado, constatei, em pânico, que não havia água na torneira.
Desesperado, não sabia o que fazer naquele momento. Imaginei que ao abrir a porta aquele cheiro fétido rapidamente penetraria no interior de toda a aeronave, contaminando as comidas e as bebidas; podendo, inclusive, entrar por debaixo da porta da cabine dos pilotos e representar, até mesmo, risco de queda daquele avião, em razão, talvez, da necessidade dos pilotos terem de abandonar a cabine devido ao mau cheiro, deixando-a vazia e a aeronave sem comando. Enquanto isto, ali dentro do banheiro, seguia ouvindo aquelas batidas na porta, cada vez mais fortes.
Em determinado momento, tomado por um sentimento de claustrofobia incontrolável, vesti a calça, deixando a camisa suja para o lado de fora, agarrei a cueca suja com a mão, abri de uma só vez a porta do banheiro e, rodando a cueca suja com a mão por sobre minha cabeça, adentrei no corredor, seguido de perto por aquele cheiro fétido insuportável, pulando e gritando repetidamente o seguinte refrão: - Há, eu sou maluco!
Fui logo subjugado por alguns passageiros e comissários de bordo, cujas feições, contraídas, demonstravam um ódio extremo a minha pessoa ou que prendiam a respiração, em razão de algum cheiro muito forte e me recordo, ainda perfeitamente lúcido, de haver sentido uma picada no braço, antes de desfalecer por completo.
No hospital psiquiátrico onde me encontro, situado nos arredores da cidade de São Paulo, tenho repetido, por diversas vezes e para vários médicos diferentes, esta triste história que narrei aos caros leitores e que me ocorreu naquele fatídico dia em que resolvi visitar alguns parentes na capital paulista. Pelo visto, os médicos ainda não acreditam em mim; pois, já estou aqui há quase seis meses e até hoje não me deram alta.
(Continua)
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