sábado, 2 de julho de 2016

79. Continuação de Diário de um ‘Maluco Beleza’ (Capítulos 17, 18 e 19)

Jober Rocha


Capítulo 17
Quinta Feira, 20 de março


               Tomado por súbita nostalgia ao acordar, resolvi discorrer em meu diário, com saudades, sobre toda a minha vida funcional transcorrida nestes últimos trinta e poucos anos.
                           Fui funcionário público concursado e estatutário, trabalhando inicialmente no setor educacional e, a seguir, transferido para o setor de obras públicas, onde permaneci durante todo o restante do período. Como tal, meu salário era e ainda é, como aposentado que sou, pago pelo contribuinte.
                             Iniciarei por dizer que minha mesa sempre foi a mais organizada e limpa de quantas conheci por este país afora. Meus lápis com suas pontas afiadas com gilete, minhas borrachas e réguas limpinhas e meus clipes, na quantidade certa para o consumo do dia, eram objeto da admiração de quantos passavam pela frente da escrivaninha em que me sentei por trinta anos, indo rumo ao banheiro localizado ao final do corredor. Os carimbos que utilizava nos despachos – o requerimento foi aprovado, o requerimento caiu em exigência e o requerimento foi negado - após o uso, eram limpos com esmero, parecendo, àqueles que o viam pela primeira vez, nunca terem sido antes utilizados. 
                         O copo de água sobre minha mesa continha a quantidade certa, necessária para um bom gole a cada hora, de modo que, ao final do expediente, encontrava-se totalmente vazio. Nada na minha seção era desperdiçado ou consumido com prodigalidade. Os envelopes eram reutilizados tantas vezes quantas fosse possível, em razão de sua resistência; o mesmo ocorrendo com folhas de papel, pastas de arquivo, copos de plástico, elásticos, etc.
                    Aos poucos, os colegas de repartição passaram a me chamar por vários apelidos carinhosos (ditos sempre pelas minhas costas e em voz baixa) e que não cabe, por mim, serem relatados neste diário, em razão da moral e dos bons costumes vigentes.
                       Em razão de minha formação cultural ter sido muito boa e eclética, da qual fizeram parte tanto os autores clássicos quanto os contemporâneos, eu conseguia visualizar, por vezes, coisas e aspectos que não eram percebidos pelos demais companheiros de trabalho; razão pela qual, eu suponho que o meu comportamento lhes despertava certa dose de ciúmes, o que, até então, tinha sido mantido em segredo, tanto por mim quanto por eles.
                        Em virtude de haver trabalhado muitos anos na Secretaria Geral, ao lado do gabinete de importante autoridade, pude fazer inúmeras observações que me conduziram a classificar as normas funcionais segundo as seguintes categorias: grandes e pequenas.
                    As primeiras, no meu entender, diziam respeito ao estabelecimento de critérios necessários ao bom funcionamento do setor público e dos demais setores da sociedade, de um modo geral; constituindo, na minha modesta maneira de ver, as grandes normas. 
                      As segundas se referiam às pequenas coisas que escapam ao olhar arguto das autoridades constituídas, como, por exemplo: a maneira do servidor público se sentar no vaso sanitário, sem se contaminar; o modo de carimbar um processo, sem que a tinta do carimbo manche o verso da página e, até mesmo, a folha de trás; o jeito de regular a velocidade das pás do ventilador para que a papelada da seção não saia voando pelos corredores, etc. etc. e etc. 
                       Como eu não participava da elaboração das grandes normas, restritas que eram aos altos mandos da repartição, me aperfeiçoei na elaboração das pequenas normas. Assim é que a maior parte do meu tempo de funcionário público, eu a dediquei à elaboração de manuais que buscassem regular as atividades e procedimentos laborais que, embora usuais em uma repartição, jamais foram objeto de estudos detalhados, por parte dos cientistas, sobre Tempos e Movimentos, de modo a permitir que alcançássemos à máxima eficiência na alocação dos escassos recursos disponíveis na nossa repartição pública. Meus primeiros trabalhos neste campo, que me valeram inicialmente elogios por parte dos chefes, foram: ‘Manual sobre como o servidor público urinar sem molhar a tabua do vaso e sem deixar os pingos caírem no chão’, e ‘Manual sobre a utilização racional do rolo de papel higiênico’.
                        Na elaboração destes dois manuais gastei horas de observação meticulosa no banheiro da repartição, medindo tempos e movimentos dos usuários. Por vezes, necessitei empregar sofisticadas análises matemáticas de Custo Benefício ou de Custo Eficácia. Minha função objetivo a ser otimizada através dos diversos modelos de Programação Linear que desenvolvia, algumas vezes consistia em minimizar a quantidade de papel higiênico utilizada pelo usuário e, outras vezes, residia também em maximizar o volume de dejetos e excrementos lançados dentro do vaso sanitário, volume este que deveria ser eliminado com um único aperto no botão da descarga.
                     Gabo-me, sem falsa modéstia, de haver sido o primeiro a descobrir, pessoalmente, a razão pela qual grande parte da urina lançada pelo usuário masculino ficava no chão do banheiro, próxima ao vaso. Para tal, tive de recorrer ao estudo da Ciência Ótica. Pude notar, após muita observação meticulosa, que uma pequena refração, motivada pelo fato de o funcionário urinar de pé, fazia com que a incidência dos raios luminosos atingisse de maneira ortogonal a sua retina, lhe proporcionando uma visão distorcida, ou ilusória, da distância do vaso e do tamanho daquilo que tinha na mão. 
                      Assim, ao usar o vaso sanitário, julgando que segurava algo maior do que aquilo que em realidade segurava, o usuário afastava-se a uma grande distancia do vaso, fazendo com que parte do líquido caísse ao piso. Para corrigir tal falha, mandei pintar no solo do banheiro, junto ao vaso, uma risca amarela na qual todos os usuários tinham de pisar antes de urinar. Para os deficientes visuais mandei colocar um sinal sonoro, que apitava quando alguma gota caia no chão.
                   Estabelecendo, mediante uma tabela afixada junto ao vaso sanitário, qual o tamanho correto do papel higiênico a ser utilizado, individualmente, em razão das variáveis peso e altura, pude economizar substancial quantidade de água e de sabão ao final do mês; já que, em decorrência desta simples norma de bom senso, as mãos ao serem lavadas não necessitavam mais ser esfregadas com tanta intensidade; posto que, apenas uns poucos resíduos da operação de limpeza com o papel higiênico ficavam, eventualmente, ainda grudados na mão do usuário.
                    Para não me acusarem de parcialidade com relação aos homens, estabeleci normas também para o banheiro das mulheres. Fixei em apenas dez, o número máximo de mulheres que poderiam ir juntas ao banheiro de cada vez. Da mesma forma, estabeleci o prazo máximo de permanência dentro do banheiro, para cada uma, de uma hora e meia. Com isto, a quantidade de lixo oriunda da venda de bijuterias e de produtos de beleza, bem como do consumo de alimentos e da lavagem de roupas íntimas, diminuiu sensivelmente na minha repartição.
                    Cada servidora só poderia ir ao banheiro, a partir do estabelecimento das normas que institui, no máximo, dez vezes por dia; já que, para um número maior de vezes, passei a exigir atestados médicos de incontinência urinária.
                       Com isto, creio que resolvi toda a problemática envolvendo o uso dos banheiros, durante o horário de expediente, na minha repartição pública.


Capítulo 18
Sexta Feira, 21 de março


                   Meu segundo passo, pouco tempo depois, foi dirigir minha atenção para o comercio ambulante dentro da repartição. Notei que desde o inicio até o final de um dia de trabalho, aproximadamente, quarenta vendedores ambulantes vindos da rua percorriam as mesas de meus colegas, oferecendo-lhes canetas, celulares, bijuterias, etc. 
                           Muitos daqueles vendedores trajavam-se mal e andavam, até mesmo, com roupas sujas. Os produtos que vendiam, por sua vez, oriundos de determinado país do Oriente, quase sempre apresentavam defeitos de fabricação ou quebravam, antes mesmo de serem utilizados. A partir de então, estabeleci normas para o comércio ambulante na repartição: todo camelô deveria ser cadastrado, andar uniformizado e com crachá nas dependências do órgão público. Os produtos vendidos deveriam, antes de serem pagos, ficar em caução durante trinta dias com o comprador. Caso apresentassem defeitos seriam devolvidos sem nenhum pagamento.
                    Após a primeira semana de implantação destas normas, tendo o movimento deste comércio declinado substancialmente, fui chamado à presença do chefe que, furioso e aos brados, ordenou-me revogá-las, alegando a inconstitucionalidade daquelas normas. Ao entrar em sua sala, todavia, pude notar em cima da mesa dele enorme quantidade de aparelhos celulares, relógios, anéis, canetas, brincos, colares, etc. Supus que os camelôs houvessem deixado àqueles produtos em caução, com o chefe, e que não voltaram mais para apanhá-los.  
                  Transferido que fui, em seguida, pelo mesmo chefe, para o terceiro subsolo onde funcionavam a gráfica e a garagem, levei alguns meses para me adaptar às minhas novas funções, que consistiam em conferir as notas de entrada e de saída dos equipamentos e dos materiais; bem como, verificar a relação dos respectivos itens em estoque.
                         Minha primeira dúvida surgiu quando vi que saiam mais materiais do que a quantidade daqueles que entravam. Por ser muito religioso, ocorreu-me, na ocasião, comparar tal situação com a do milagre da multiplicação dos pães e dos peixes, descrita na Bíblia. Assim, após muita pesquisa, constatei a origem da divergência: na falta de normas específicas e de locais adequados para a guarda dos materiais e equipamentos (alguns caríssimos), muitos colegas os levavam para casa, com a promessa (que faziam a si mesmos, conforme vim posteriormente a descobrir) de os trazerem de volta à repartição, tão logo fossem percebidas as suas faltas e instaurado algum inquérito administrativo para apurar o sumiço delas. Após a elaboração de manuais disciplinando a entrada e saída daqueles materiais, fui, novamente, admoestado ferozmente pelo meu chefe e transferido para o setor de concorrências públicas, no quinto subsolo.
                            Naquele setor pude conhecer, com maior intimidade, os nossos fornecedores. Faziam eles parte de uma única família, numerosa, composta por pai e oito filhos, cada qual com sua firma individual e todas localizadas no mesmo endereço.
                             Cada vez que meu chefe anunciava uma concorrência para aquisição de determinada mercadoria ou material, a referida família concorria com o preço mais baixo e com o preço mais alto. Se algum outro concorrente, eventualmente participante e estranho à família, oferecesse um preço intermediário, o irmão com o preço mais baixo ganhava. Se nenhum concorrente estranho a família aparecesse, o irmão com preço mais baixo desistia da concorrência e o ganhador era o irmão com o preço mais alto. 
                      Eles já forneciam para a repartição há muitos anos. Meu chefe, que frequentava assiduamente a casa deles, recebia inúmeras cestas com alimentos refinados e bebidas caras, em ocasiões festivas tais como o seu aniversário, o Natal, o Carnaval, o dia de Finados, o feriado da Abolição da Escravatura, o dia da  Proclamação da República, a data de Tiradentes, etc.
                           Notando a baixa qualidade das mercadorias e dos materiais que eles forneciam para a repartição, bem como o alto preço unitário daqueles itens, face aos preços de mercado, iniciei por criar um banco de dados com os preços normais daqueles bens e materiais, que coletava mensalmente junto aos fabricantes, para cotejá-los com os preços ofertados nas concorrências. Por outro lado, elaborei normas que impediam a participação de mais de uma empresa, localizadas no mesmo domicilio e pertencentes a uma mesma família.
                       Na primeira concorrência realizada após minha chegada naquela seção, na hora da abertura das propostas, afirmei, com base nas normas por mim elaboradas, que as empresas da tradicional família estavam impedidas de participar. Após a enorme confusão que se seguiu, fui voto vencido, pois, naquele dia, meu chefe e vários dos seus assessores que eu nunca havia visto antes e que nunca haviam participado de concorrências, fizeram parte da Comissão de Licitação e a única voz discordante foi a minha. 
                          Ao ser posto para fora da sala aos socos e empurrões, ainda consegui argumentar que o preço apresentado, pelo irmão vencedor, estava quinhentos por cento acima do preço de mercado; porém, meu chefe, que não entendia daqueles aspectos legais e econômicos, deixou-se, mais uma vez, enganar pela família, ordenando que eu fosse posto para fora e a sala trancada à chave. O chefe passou o resto daquele dia, incomunicável, junto com seus assessores e com os irmãos concorrentes.  
                    Como era uma sexta-feira, fui direto para casa estudar toda a legislação referente a concorrências e processos licitatórios, buscando uma brecha para anular aquela que eu sabia ter sido fraudada. Tendo, finalmente, descoberto um caminho legal bastante promissor, ao chegar cedo na segunda-feira, para comunicar o fato ao chefe, não encontrei minha mesa na sala onde eu trabalhava. Percorrendo as dependências do prédio em busca dela, fui informado por um faxineiro que a mesma havia descido, na própria sexta-feira anterior, para o oitavo subsolo.
                   Lá descendo encontrei-a solitária, deixada bem ao lado do gerador de energia para emergências. Perguntando, fiquei sabendo que ali, naquele local, se reuniam os fiscais externos da nossa repartição, que fiscalizavam contribuintes e fornecedores. Como eles necessitavam de um lugar sossegado para estabelecer as estratégias de fiscalização dos contribuintes e das empresas privadas sobre nossas responsabilidades, ocupavam aquele subsolo. Minha nova função seria a de supervisionar a atividade daqueles fiscais.
                         Marquei logo uma reunião para aquele mesmo dia, sendo que de um total de dez fiscais apenas dois compareceram. Estes dois, ao serem por mim inquiridos sobre as suas atividades de fiscalização, mostraram-se evasivos e apenas murmuraram algumas palavras ininteligíveis.  Nas semanas que se seguiram, por mais que eu insistisse, não consegui reunir todos os fiscais para uma reunião conjunta. Um deles telefonara dizendo que havia tido problemas mecânicos com o iate, em Angra dos Reis; outro ligara para dizer que estava supervisionando a construção de seu hotel, em uma praia do nordeste. Outro, ainda, não havia retornado de Miami, onde possuía residência de fim de semana.
                      Quando, após dois meses, consegui reuni-los todos juntos, a reunião foi pouco produtiva. Notei que formavam um grupo coeso, falavam entre si sempre em voz baixa e percebi que possuíam um líder, tipo baixo, barbudo e atarracado, chamado pelos companheiros de Jú Venal. É isto mesmo, separavam as silabas desta forma.
                        Resolvi seguir Jú Venal à distância, para ver como atuava no dia a dia junto às empresas fiscalizadas. Constatei que sempre que saia de uma empresa, que acabava de fiscalizar, procurava, rapidamente, uma agência bancária na qual permanecia por cerca de quinze a vinte minutos.
                       Depois de observá-lo por várias horas seguidas, pude, assim, constatar como é duro trabalhar externamente à nossa repartição. Se não fosse o expediente de entrar no banco e lá permanecer no ar condicionado por cerca de quinze minutos, o fiscal não aguentaria o terrível calor das ruas. Eu, do lado de fora, ficava com a camisa molhada de suor.
                         Voltando, enfim, à seção, iniciei por estabelecer normas sobre a atuação dos fiscais. Em seguida, buscando evitar que os fiscais sofressem os efeitos dos raios solares (uma das principais causas de melanoma em idade avançada), determinei que os próprios empresários fiscalizados, a partir daquele momento, deveriam comparecer pessoalmente à repartição, onde eu teria a oportunidade de conhecê-los na intimidade e de participar, também, da fiscalização, trazendo novas idéias e algumas boas sugestões.
                      Baixada a norma, cinqüenta por cento dos fiscais entraram com pedido de licença-prêmio e trinta por cento em licença para tratamento de saúde. Como dez por cento estavam gozando do auxílio reclusão, apenas pude continuar contando com os dez por cento restantes, isto é, apenas um funcionário. 
                   Impossibilitado, assim, de cumprir minha missão constitucional, pois as empresas fiscalizadas se contavam em milhares e os fiscais eram contados em unidades, ademais de, logo após este episódio, eu ter passado a não receber mais nenhuma ordem ou determinação de meu chefe, que não falava mais comigo, resolvi dedicar-me, apenas, à elaboração de normas e manuais que julgava úteis para o funcionamento interno da minha querida repartição pública.

Capítulo 19
Sábado, 22 de março


                 Passei, então, a parte final da minha restante vida de servidor público elaborando regras que eram lançadas, sob a forma de tiras de papel picado, na gráfica, pelas janelas dos andares mais altos ao final do expediente no último dia do ano. Meus principais manuais, frutos de denodado esforço de observação sobre a realidade de um órgão público, foram:
1.   Como guardar camarão-frito com repolho dentro da gaveta da escrivaninha, pelo prazo de uma semana, evitando que se estrague e que exale mau cheiro;
2.   Manual do Comerciante de Sucesso: O que todo funcionário público deve saber para conseguir vender bem os seus produtos eletro-eletrônicos e as suas bijuterias, no horário de trabalho;
3.   Nem todos os camundongos são iguais em uma repartição: Aprenda a distinguir os ‘ratos bons’ dos ‘ratos maus’;
4.   Como usar a mesma roupa durante trinta dias, sem precisar lavar e passar;
5.   Mil desculpas para esticar, um pouco mais, o horário de almoço;
6.   A arte de chegar tarde e de sair cedo;
7.   O que pode ser reaproveitado em uma lixeira de seção;
8.   Falar mal do colega pelas costas: Arte ou Ciência? ;
9.   A inveja criadora: Como decolar na administração pública, tendo a inveja do colega como propelente;
10.     Nem à esquerda, nem à direita: As dez razões pelas quais um carimbo deve ser posto bem no centro do requerimento.

                        Alguns outros manuais ainda pude elaborar, durante o restante da minha trajetória pública, porém, creio que estes já  mencionados foram os mais importantes.
                        Tendo atingido, finalmente, a idade da aposentadoria sem receber nenhuma promoção, quer por antiguidade quer por merecimento, eu resolvi que era chegada à hora de, definitivamente, descansar.
                  No último dia de trabalho guardei meus lápis, réguas e borrachas dentro da pasta e entreguei meu copo de plástico na cozinha. Com lágrimas nos olhos, fixei, pela última vez, aquelas instalações que me abrigaram como mãe carinhosa durante trinta e poucos anos. Tentei despedir-me com um olhar afetuoso dos companheiros de trabalho; porém, notei que me viravam o rosto, certamente, para que eu não visse as lágrimas de tristeza que vertiam copiosamente naquela ocasião.
Finalmente aposentado e cansado de ver televisão e de alimentar o gato preto que comigo convive há quase quinze anos, resolvi reiniciar a elaboração de novos manuais, agora, porém, com uma conotação de utilidade privada e não mais pública.
                     Depois de muito observar a realidade da comunidade onde moro, elaborei alguns manuais que distribuí para os moradores locais desempregados. Certamente, ninguém imagina que ao ser abordado em um sinal de trânsito por um vendedor de balas (que, correndo coloca o saquinho no espelho retrovisor), aquele modo de vender balas foi por mim desenvolvido em meu ‘Manual do Vendedor de Balas’, após oito meses de pesquisas teóricas e práticas.
                       A própria frase exclamativa “- Perdeu cara!”, dita por bandidos no ato do assalto, foi, por estes, inescrupulosamente, apropriada do meu opúsculo denominado O Manual do Flanelinha. A frase em questão, hoje tão em moda, foi criada por mim com o único objetivo de ser proferida como desculpa, pelo guardador de carros autônomo (mais conhecido como flanelinha), quando o dono do carro, ao pegar o seu veículo, reclamasse da falta das calotas.  
                        Malabarismos com laranjas, com tochas pegando fogo, com pedras, etc., foram também por mim desenvolvidos, como forma alternativa dos desempregados urbanos obterem alguns trocados, da parte de motoristas desatentos nos sinais de trânsito fechados.
                   A técnica de colocar barracas nas calçadas, no meio dos transeuntes impedindo ou dificultando a passagem deles, foi por mim inventada após exaustivas pesquisas e encontra-se citada no ‘Manual do Camelô’, de minha autoria. Esta foi uma das melhores maneiras que encontrei de proporcionar, de forma verdadeiramente magistral, a integração entre as classes sociais do nosso Estado e do nosso país.
                       A ‘Tática do Arrastão’, por mim criada e cujo objetivo inicial era o de motivar a união entre as classes menos favorecidas em torno de um objetivo comum, foi, aos poucos, sendo desvirtuada e hoje é adotada pelas classes mais favorecidas da Capital Federal, notadamente os políticos e os altos executivos, que conseguem, desta forma, benefícios inimagináveis em suas remunerações mensais.
                 Com esta simples e resumida exposição, espero haver discorrido sobre minha vida funcional quando ainda não havia sido acometido por esta fastidiosa síndrome, que faz com que eu perca o contato com a realidade e entenda os fatos, que ocorrem a mim e a sociedade em que vivo, de maneira totalmente distorcidos.

(Continua no dia seguinte – nota do autor)


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