domingo, 3 de julho de 2016

80. Continuação de Diário de um ‘Maluco Beleza’ (Capítulo 20)

Jober Rocha


Capítulo 20
Domingo, 23 de março


                        Não sei o motivo pelo qual tem me ocorrido, nestes últimos dias, um estado de total desânimo no qual relembro, com lágrimas nos olhos, episódios a mim ocorridos antes que esta insidiosa moléstia me acometesse. Aproveito este diário para colocar estas lembranças no papel, em uma espécie de catarse que facilite minha aceitação sobre coisas que não posso modificar.
                      Esta estranha estória, que passarei a narrar, ocorreu há muitos anos atrás e dela tomei conhecimento por haver ocorrido com um colega de trabalho, também bacharel em Direito como eu e inconformado com a sua baixa posição hierárquica na repartição pública em que trabalhávamos naquela ocasião.
                 Corria o ano de mil novecentos e poucos e o nosso país, ainda atrasado econômica e culturalmente, ensaiava os primeiros passos no sentido da superação dos obstáculos ao seu desenvolvimento.
                 Ele, o personagem principal, com a idade de vinte e poucos anos, trabalhando como contínuo na mesma repartição em que eu também trabalhava, concluíra, junto comigo, o curso de Direito na capital e procurava um emprego mais condizente com o seu status de bacharel, emprego este tão difícil naquela época quanto hoje.
                      Na ocasião, começavam a proliferar cursos de Direito no interior do Estado, cada cidade querendo ter sua própria faculdade.
                  Através de um amigo comum, meu e deste companheiro de trabalho (amigo este, na oportunidade, alto funcionário público), ele ficou sabendo de uma vaga para professor na Faculdade de Direito de uma pequena cidade, bem afastada da capital.
                     Na falta de qualquer outra oportunidade, para lá se dirigiu. Após uma rápida entrevista com o diretor recentemente nomeado para o cargo, ele soube que estava sendo criada a Faculdade de Direito e que necessitavam de um professor para a nova cadeira de Contabilidade, que havia entrado na grade curricular das Faculdades de Direito, naquele ano.
                   De Contabilidade ele nada sabia; pois, na faculdade em que se formara não havia, até então, aquela disciplina. Imaginou, porém, que, assim como ele, os alunos do curso também nada saberiam daquela matéria.
                     Achava que com um pouco de retórica, de sofística e da hermenêutica jurídica, que havia aprendido na capital, conseguiria enrolar aqueles caipiras do interior (assim nomeara ele os seus futuros alunos).
                      No dia programado para sua primeira aula, acordou cedo em seu quarto no único hotel daquela cidadezinha, barbeou-se e colocou sua melhor roupa, para causar boa impressão aos alunos.
                        Chegando à sala de aulas, havia cerca de 30 alunos, além do diretor, esperando por ele.
                        Alguns daqueles alunos, entretanto, já possuíam noções da matéria, por haverem feito o curso Técnico de Contabilidade, em cidade vizinha, e alguns até trabalharem em escritórios locais de Contabilidade.
                      Após apresentar-se aos alunos e tecer vários comentários sobre o clima quente da região, a perspectiva de chuvas próximas e a arquitetura colonial da igreja matriz, ele perguntou à platéia se alguém queria fazer alguma pergunta, antes de encerrar a aula.
                     Vários alunos levantaram-se e, alternadamente, perguntaram: - Professor, o que é Ativo Fixo? O que é Capital Circulante? O que é Patrimônio Líquido? O que é Capital de Giro? O que é Passivo à Descoberto?
                 Apanhado de surpresa, ele ficou durante alguns momentos com a cabeça baixa, procurando, pelo canto dos olhos, uma maneira rápida de escapulir daquele ambiente. Pensou em atirar-se pelo vão da janela entreaberta; mas, logo em seguida lembrou-se de que estavam no quarto andar do prédio.
                  Ele nunca ouvira falar naqueles termos contábeis e não tinha a menor noção do que significavam. Subitamente, porém, veio-lhe à mente que, se os alunos lhe perguntavam, era porque também não saberiam.
                       Pensando rápido e fazendo uso de toda a malandragem aprendida ao longo de seus vinte e poucos anos vividos na capital, respondeu, calmamente:
 - Meus caros alunos imaginem vocês uma empresa que se dedique à exploração de estradas de ferro e que transporte em seus vagões gasolina, álcool, diesel ou qualquer outro produto líquido. Os trilhos da estrada constituiriam o Ativo Fixo da empresa. O comboio, formado pela máquina e por todos os vagões, representaria o Capital Circulante. A carga dos vagões consistiria no Patrimônio Líquido e as rodas da locomotiva no Capital de Giro. Passivo a Descoberto é quando encontram o maquinista da composição abraçado com o seu ajudante no interior da cabine da locomotiva!
                    Parou de falar e, em seguida, encarou a platéia de frente, para ver o efeito de suas palavras. Estava plenamente convencido do bom senso e da veracidade daquela sua explicação, julgando-a, até mesmo, digna de figurar nos principais compêndios da matéria.
                  Os alunos entreolharam-se e, levantando todos ao mesmo tempo, prorromperam em estrepitosa vaia, retirando-se, em seguida, ruidosamente da sala.
                No final da tarde daquele dia encontraram o meu colega na estação ferroviária, esperando o trem das dezoito horas, cabisbaixo e demonstrando certo descontrole nervoso.
                    De pé, na plataforma da estação ferroviária, ao ver a locomotiva se aproximar, atirou-se nos trilhos quando esta passou por ele, tendo morte instantânea.
                      Poucos meses depois alguns alunos afirmaram haver visto seu espírito, de pé, na mesma plataforma ao entardecer, talvez ainda mortificado pelas vaias recebidas, esperando, com certeza, a próxima chegada do Capital Circulante das dezoito horas...

(Continua no dia seguinte – nota do autor)


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