77. Continuação de Diário de um ‘Maluco Beleza’ (Capítulo 15)
Jober Rocha
Capítulo 15
Terça Feira, 18 de março
Depois de uma agitada noite, na qual pesadelos terríveis me assolaram a mente, com certeza, motivados pela doença que consome lentamente meus neurônios, acordei cansado e saudoso do tempo em que levantava com disposição suficiente para enfrentar qualquer coisa que o dia me proporcionasse, seja de bom ou de ruim.
Resolvi caminhar para vencer o cansaço e durante a minha caminhada, nesta manhã, tendo parado em frente a um bar onde vários moradores bebiam cerveja e cachaça, vi surgir uma forte discussão entre dois deles a respeito de futebol. Pouco antes de partirem para a briga, ambos se ofenderam com palavrões e ameaças. Lembro-me que um deles chamou o outro de subdesenvolvido e que o ofendido perguntou ao ofensor: - E você, só porque tem uma bicicleta já pensa que é do Primeiro Mundo?
Chegando a casa, após comer umas bananas amassadas com farelo de pão, me pus a pensar sobre quais as características que diferenciavam os países subdesenvolvidos daqueles do Primeiro Mundo.
Há cerca de 2.500 anos, Platão, em seu livro VI, de ‘A República’, descreveu a alegoria da caverna (já conhecida de todos, mas que vale a pena recordar), na qual prisioneiros desde o nascimento, acorrentados no interior de uma caverna de modo que olhassem somente para uma parede iluminada por uma fogueira, observariam um palco onde estátuas dos seres como os homens, as plantas, os animais, etc., eram manipuladas, como que representando o cotidiano desses seres. No entanto, as sombras das estátuas eram projetadas na parede, sendo a única imagem que aqueles prisioneiros conseguiriam enxergar. Com o correr do tempo, os homens dariam nomes a essas sombras (tal como nós mesmos damos às coisas que vemos) e, também, à regularidade de aparições destas. Os prisioneiros fariam, inclusive, torneios para se gabar e se vangloriar daqueles que acertassem as corretas denominações e as regularidades de aparição. Um destes prisioneiros, entretanto, conseguindo se livrar de suas amarras e vasculhar o interior da caverna constatou que o que permitia aquela visão era a fogueira e que, na verdade, os seres reais eram as estátuas e não as sombras. Percebeu que havia passado a vida inteira julgando apenas sombras e ilusões, desconhecendo a verdade, isto é, estando afastado da verdadeira realidade.
Ao sair da caverna à luz do sol, imediatamente teve a sua visão ofuscada e só depois de se habituar a nova realidade pode enxergar as maravilhas que via fora da caverna. Não demorou a perceber que aqueles seres tinham mais qualidades do que as sombras e as estátuas que via dentro da caverna, sendo, portanto, muito mais reais. Aquilo significava que ele poderia contemplar a verdadeira realidade, isto é, os seres como eram em si mesmos. Não tinha dificuldades em perceber que o Sol era a fonte da luz que o fazia ver o real, bem como era desta fonte que provinha toda a existência viva (os ciclos de nascimento, o tempo, o calor que aquece o ambiente, etc.). Maravilhado com esse novo mundo e com o conhecimento que então passara a ter da realidade, esse ex-prisioneiro, lembrando-se de seus antigos amigos no interior da caverna e da triste vida que lá levavam, imediatamente, sentiu pena deles e desceu à caverna para lhes contar o novo mundo que havia descoberto. Entretanto, como seus antigos parceiros eram ainda prisioneiros, não conseguiam vislumbrar senão a realidade que presenciavam e começaram a debochar do seu companheiro liberto, chamando-o de louco e dizendo que acabariam por matá-lo, se não parasse com aquelas suas maluquices.
Pelo exemplo anterior da alegoria da caverna, vemos que tudo aquilo que não conhecemos não existe para nós. Assim, como alguém já disse, o mundo terá para nós o tamanho abrangido pelo nosso conhecimento, nada mais nem menos.
Aqueles que viveram e estudaram no exterior, em países mais desenvolvidos que o nosso, tendo absorvido a cultura, os costumes, o grau de desenvolvimento econômico, político, social do país ou da região onde viveu, são como o prisioneiro liberto; isto é, portadores de uma visão bem mais abrangente do que aqueles seus conterrâneos que nunca saíram do Brasil. A nova realidade que terão conhecido e que, com certeza, lhes provocou um choque cultural logo que desembarcaram, muitas vezes, não é nem suspeitada por aqueles outros brasileiros que jamais deixaram nossas fronteiras. Em inúmeras ocasiões esses viajantes, já tendo retornado ao nosso país, se viram falando para ouvidos moucos; isto é, que não escutam ou nem querem escutar aquilo que eles tinham a dizer.
Os que residiram no exterior, aos poucos, certamente foram percebendo as enormes diferenças que separavam nossa cultura e nossos costumes dos daqueles países desenvolvidos onde residiram. Não digo que estes países não possuíssem muitas mazelas que também nos assolam e incomodam; mas, o tratamento que a elas dispensavam é que, fundamentalmente, é diferente do nosso. De tanto conviver com pessoas que respeitam as leis e possuem alto grau de urbanidade, acabamos por absorver estes predicados e, de volta ao nosso país, sofremos um choque, idêntico aquele inicial de que falei; só que, agora, no sentido contrário.
Exemplificando, qualquer um que tenha vivido alguns anos em país desenvolvido, será incapaz de jogar lixo e cuspir no chão das ruas. Da mesma forma, falar alto em ambientes públicos, estacionar em locais não permitidos ou em cima das calçadas, ‘furar’ as filas ou tentar levar vantagens sobre os demais, em qualquer situação, como fazem geralmente os brasileiros. Estes procedimentos, típicos do nosso país, não são comuns nos países desenvolvidos cultural e socialmente.
Ontem, contemplando da janela do ônibus as praias do fundo da Baia, eu observava as ondas depositarem de volta nas areias negras, o lixo que a cidade havia jogado nas águas do mar. Nas ruas engarrafadas, os motoristas buzinavam para tentar fazer o trânsito fluir, na ausência de guardas municipais, já que os semáforos não funcionavam. Ontem à noite, lendo um artigo de Bertrand Russel, fui surpreendido com a falta de energia elétrica, que fez com que eu fosse dormir sem me inteirar do que dizia o filósofo.
Na TV, nos jornais e na Internet quase cinqüenta por cento do espaço é preenchido por notícias de roubos, desvios de dinheiro, corrupção no governo, crimes comuns, mortes e assassinatos. Os outros cinqüenta por cento tratam de novelas, futebol e religião.
Os produtos adquiridos nos supermercados, por aqueles que dispõem de renda para tal, com freqüência já são comercializados com a validade vencida. Nos leites ‘longa vida’ que bebemos, as fábricas adicionam formol, soda cáustica e outros agentes químicos cancerígenos, para aumentar sua validade. Inseticidas contaminam a maioria das frutas e legumes que consumimos.
A água que recebem nas torneiras, aqueles que dispõem de água encanada, é imprópria para o consumo da forma como lhes chega. Para bebê-la devem ferver e filtrar, bem diferente daquela que é bebida diretamente da torneira nos países desenvolvidos.
As filas, aqui, são comuns em todos os lugares e aceitas como normais e fazendo parte do cotidiano de todos e de cada um. Os impostos são dos mais elevados do mundo e pagos sem reclamação pelos contribuintes, para quase nada ter em troca; já que os serviços públicos são totalmente deficientes.
A saúde pública é uma utopia e está sempre carente de pessoal, de instalações e de equipamentos; a saúde privada é cara e também carente de instalações modernas e adequadas. Na maior parte dos casos o cidadão, que paga pela pública também tem que pagar pela saúde privada, para poder ter o seu problema resolvido. A segurança pública, de um modo geral, é deficiente e o contingente que efetivamente atua produzindo bons resultados é constantemente criticado por parte da imprensa e de Organizações ‘Políticas’ de Direitos Humanos, que preferiam uma polícia menos atuante no combate à criminalidade, sabe-se lá por que motivo (embora muitos imaginem a razão desta preferência). Da mesma forma que na saúde, o cidadão que paga impostos para poder contar com a segurança pública, também tem que pagar uma segurança privada para ter seus bens e sua vida protegidos.
Aqueles que jamais conheceram outras terras, outras culturas, outras maneiras de viver em comunidade, poderão, como os prisioneiros da caverna de Platão, achar que a vida é assim mesmo e que temos que nos acostumar com suas idiossincrasias. Para os escravos filhos de escravos, a escravidão sempre foi uma coisa normal e consentida, já que fora esta a condição vivenciada por seus pais e avós. Os animais nascidos em cativeiro desconhecem o que seja poder viver em liberdade na Natureza.
Assim, nós, brasileiros, temos sempre de nos acautelar para andar pelas ruas, temos de manter nossas portas e janelas gradeadas, temos que nos prevenir contra os golpes e falcatruas que procuram nos impingir em todo momento, temos que pagar muito caro pelo pouco que recebemos do Estado e julgamos tudo isto coisas normais ao fato de existirmos, estarmos domiciliados aqui e sermos cidadãos deste país.
Isto tudo que foi mencionado anteriormente, no meu modo de ver a questão, não é fruto de (ou que possa ser atribuído somente a) dirigentes, partidos políticos no poder, correntes ideológicas ou conjunturas interna e externa.
Considerando que em outros países mais desenvolvidos econômica, cultural, política e socialmente, as coisas são bastante diferentes da forma como aqui as conhecemos (e já nos acostumamos), a questão que alguns leitores mais perspicazes poderão, sem dúvida, formular, é a seguinte: - Será que esta incapacidade de administrar corretamente uma nação, de conviver em paz e harmonia com os semelhantes, de respeitar as leis, de possuir urbanidade, etc., se deve a uma fraqueza de caráter do nosso povo ou aí tem ‘dedo’ do Criador, para que a nossa gente purgue, ainda em vida, pecados desta e de outras anteriores existências ou resgate carmas de vidas passadas?
Não tenho opinião formada com respeito ao resgate de pecados ou carmas, mas, para aqueles que neles creem, imagino que, se acaso existissem, estes poderiam ser expiados em qualquer lugar do planeta, não, necessariamente, tendo que ser resgatados somente em nosso país. A inaptidão para a construção de uma sociedade que respeite as leis e na qual a população e as autoridades trabalhem juntas, na busca do progresso material e espiritual da nação, deve ser buscada, com certeza, em nossa formação histórico-cultural, mais que em nossa Metafísica. Isto é fruto, exclusivamente, do conjunto das pessoas que aqui viveram, e vivem, de seus caracteres, da educação que receberam e que possuem, das crenças que professam e da maneira como encaram o passado, o presente e o futuro; em suma, talvez, do nosso inconsciente coletivo.
Pode ser, entretanto, que nada do que eu disse até aqui seja a verdadeira razão a nos diferenciar dos países desenvolvidos do Primeiro Mundo. As razões que apresentei são aquelas que me ocorrem à mente, mas, como eu e o meu médico sabemos, a minha capacidade de entender e absorver a realidade é prejudicada pela doença mental que me acomete e, em vista disso, não posso garantir que aquilo que disse anteriormente seja realmente verdade.
(Continua no dia seguinte – nota do autor)
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