96. Vê se me ajuda aí, o cara!
Jober Rocha*
Depois de se aposentar e passar algum tempo desfrutando da ociosidade no bairro em que morava, um belo dia, cansado da violência e da vida agitada da capital, ele disse, abruptamente, para a mulher que preparava o café da manhã: - "Heleninha, meu bem, já me decidi! Vamos nos mudar daqui"!
Ela, apanhada de surpresa, ainda tentou argumentar; porém, ele foi inflexível: - 'Vou colocar o apartamento à venda e procurar uma casa tranquila, em uma cidadezinha pequena do interior. Lá, vou arranjar um empreguinho e até ganhar um dinheirinho extra"!
Como não tinham filhos, Heleninha acabou concordando. Em pouco tempo, venderam o apartamento e compraram uma bonita casa em Ressurreição do Mato Dentro, no norte do Estado.
Através de alguns contatos na capital e no próprio município, conseguiu um emprego de professor na Faculdade Matodentrense de Filosofia, única em toda aquela vasta região, cujo curso era ministrado de forma, mais ou menos, amadorística por vários professores. Alguns deles nem mesmo formados eram.
Os alunos, em sua maioria, provinham do próprio município ou de municípios vizinhos e o nosso personagem, que havia sido funcionário público durante toda a vida, embora não soubesse quase nada de Filosofia, achava que seria fácil dar aulas da matéria. Com a sua experiência de morador da capital, julgava que seria bem fácil enrolar caipiras que viviam no interior.
Em sua aula inaugural falou sobre as dificuldades de moradia na cidade grande; sobre as crianças abandonadas; sobre a violência; sobre a corrupção das autoridades; etc. Fazendo uma ligação entre aquilo que havia dito e a Filosofia, disse que tudo de mal que ocorria tinha como origem o fato de que as pessoas, de uma maneira geral, não eram amigas da Sabedoria (filo = amigo, sofia = sabedoria). Associou o aquecimento global e os movimentos sísmicos do planeta, ao desconhecimento de certos princípios filosóficos pela maioria dos seres humanos; já que, a própria natureza – afirmou ele - sem que o soubéssemos, era comandada por tais princípios.
Finda a aula foi aplaudido pelos presentes que, não tendo entendido nada, julgaram ser aquilo normal, já que sempre tinham ouvido dizer que Filosofia era uma coisa muito complicada.
Após aquela primeira aula, em que havia se saído bem, acreditou que seria fácil conduzir as suas demais exposições até o final do ano letivo. Na véspera de cada uma, ele selecionaria algum assunto do jornal do dia anterior e pronto: com um pouco de improvisação, a aula estaria concluída. Passou, a partir de então, a denominar-se não mais, simplesmente, professor, mas, sim, Professor, Doutor Conferencista.
Certo dia, ao cortar o cabelo na barbearia local, ele recebeu, entregue por um mensageiro da faculdade, correspondência a ele destinada, remetida pelo Ministério da Educação, que versava sobre o programa de aulas recentemente aprovado pelo ministro, para as Faculdades de Filosofia de todo o país. Ao abrir o envelope seu coração acelerou. Naquela ocasião, antes de ler o documento, teve um mau pressentimento, porém, seguiu em frente. Ao ler o conteúdo tomou ciência do programa de aulas que deveria adotar, daquele momento em diante, até o término do curso. Consistia este em discorrer sobre as seguintes correntes filosóficas e seus principais representantes: Filosofia Helênica, Filosofia Romana, Filosofia Medieval, Filosofia da Renascença, Humanismo, Reforma Protestante, Revolução Científica, Renascença, Empirismo Inglês, Iluminismo Francês, Idealismo Germânico, Utilitarismo, Transcendentalismo Americano, Existencialismo, Filósofos Europeus Contemporâneos, Filósofos Americanos Contemporâneos, Sociologia, Antropologia e Psicologia.
A contemplação daquela relação de nomes, dos quais antes nunca ouvira falar, deixou-o totalmente fora de si. Uma ânsia de vômito, seguida de tiques nervosos, o acompanhou até o final do dia.
Durante aquela noite toda não conseguiu dormir. Ficou rolando pela cama, imaginando como faria para inteirar-se sobre quais seriam os filósofos responsáveis por aquelas correntes filosóficas e acerca do que haveriam eles filosofado. A relação era tão grande que, mesmo com a ajuda dos amigos, jamais conseguiria estudá-los todos, para saber o que pensavam e sobre o que haviam escrito. Não sabia nem por onde começar.
Pensou em desistir de tudo, vender a casa e mudar-se de novo para a capital.
Heleninha, ao vê-lo naquele estado depressivo, sugeriu que desse um passeio até as margens do Rio Mato Dentro, que cortava o município de norte a sul.
Sentado na mureta da ponte sobre o rio, pensando firmemente em atirar-se nas suas caudalosas águas, foi, subitamente, acometido de luminosa ideia: afinal, não precisaria saber de cada autor, nada além do simples nome. Bastaria saber alguma coisa sobre um deles, Sócrates, por exemplo. Cada vez que tivesse de falar sobre algum outro filósofo, daria um jeito de acabar se referindo ao Sócrates para, em seguida, finalizar a aula dizendo tudo o que sabia sobre este filósofo grego. Desta forma, bastaria saber algo sobre Sócrates e o seu problema estava resolvido.
Feliz da vida retornou para casa a fim de preparar a aula de sexta-feira.
Naquela aula, segundo o programa que havia recebido do ministério, deveria falar sobre os Pré-Socráticos. Ficou até altas horas da noite estudando o material de que dispunha, que consistia em um pequeno livro para crianças, falando sobre a vida do filósofo grego quando pequeno e sobre a sua morte, além de uma coleção antiga do ‘Jornal dos Esportes’ que continha tudo sobre a vida do jogador de futebol chamado Sócrates, do Corinthians, que havia sido campeão mundial jogando pela Seleção Brasileira.
Na manhã de sexta-feira dirigiu-se à sala de aula, onde os alunos já o aguardavam. Ocorre que, justamente naquele dia, dois fatos imponderáveis sucederam. Primeiramente o Grão-Mestre Geral da Maçonaria, em visita à Loja Maçônica local e sabedor de que havia um novo professor de Filosofia, na faculdade do município, professor que além de maçom havia sido indicado, para o cargo, por um membro da Loja Maçônica Virtude Matodentrense (este era o nome da mesma), resolvera prestigiá-lo assistindo a sua aula. Em segundo lugar o funcionário do Ministério da Educação, responsável pela fiscalização do cumprimento dos programas curriculares das Faculdades de Filosofia, encontrava-se de passagem pelo município e resolvera verificar a qualidade do curso ministrado na Faculdade Matodentrense.
Ele deu início à sua aula argumentando que aquela seria uma conferência que faria em homenagem ao Grão-Mestre da Maçonaria e ao alto funcionário federal, ali presentes. Começou por mencionar que era, realmente, uma pena que os filósofos Pré-Socráticos não houvessem nascido depois de Sócrates. Se pudessem ter-se baseado naquilo que Sócrates disse, não teriam ficado por aí, falando sozinhos, dizendo às tolices que disseram, acrescentou.
Enquanto falava, disfarçadamente, percorria a sala com olhar atento, buscando captar qualquer gesto ou movimento que indicasse aprovação ou reprovação acerca daquilo que dizia.
Continuando, afirmou – “Sócrates era tão bom que havia feito parte da Seleção de Filósofos que participara da Copa Mundial de Filosofia, realizada pela primeira vez na Grécia Antiga”. -“Infelizmente – acrescentou - a inveja dos companheiros de seleção, com relação ao seu talento e aos gols que marcara sobre tão difícil assunto, levou-o à morte”. –“Julgado pelos cartolas gregos – afirmou - Sócrates foi condenado a tomar um veneno mortal”.
-“Sócrates, entretanto, era um verdadeiro profissional em tudo o que fazia. Para ingerir o veneno, uma espécie de remédio para ratos que existia na Grécia Antiga, exigiu um cálice de cristal dos mais caros. Como o veneno era muito amargo, solicitou ao carrasco duas colheres e meia de açúcar, além de uma colherinha de ouro para mexer o mesmo. Tomou tudo sem fazer careta, segurando a taça com a mão direita e levantando o dedo mindinho bem alto”.
A esta altura, ele imaginava o Grão-Mestre da Ordem pensando consigo mesmo: - “Que excelente professor. Conhece tudo sobre o assunto. Quem será o irmão Maçom que o indicou para o cargo? Vou averiguar para felicitá-lo”!
Sobre o alto funcionário do ministério, que ele observou tomando notas em um bloco de papel, pensou: - “Certamente escreve ao Ministério, em Brasília, solicitando providencias, urgentes, para a concessão de maiores verbas para a nossa faculdade, haja vista a excelente qualidade do seu corpo docente, notadamente este novo professor doutor conferencista”.
- “Os alunos, embora não soubessem quase nada sobre a matéria, deveriam estar maravilhados com tamanha demonstração de conhecimento filosófico, posto haver descido a tantos e a tão pequenos detalhes” - imaginou.
Empolgado, prosseguia: -“Sócrates, o campeão dos campeões, deixou um verdadeiro vazio nos verdes gramados da Filosofia, após a sua partida deste mundo! Nunca antes alguém havia driblado, tão bem, a busca pelo conhecimento como ele fez e, verdade seja dita, sem técnico algum para orientá-lo, pois fazia tudo de improviso”!
-“Felizmente - argumentou - não tinha para persegui-lo uma Confederação Burocrática de Filosofia (CBF) ou uma Federação Internacional de Filosofia Amadora (FIFA), que vivessem apontando falhas e inconsistências em suas teorias”.
Para finalizar a conferência fez breve referência aos sucessores de Sócrates, afirmando: - “Senhores, hoje o que se vê por aí não passa de pura mediocridade filosófica. Os novos filósofos são verdadeiros ‘pernas-de-pau’, quando comparados com Sócrates. Nenhum deles sabe levantar uma hipótese ou teoria e mantê-la no ar por muito tempo. Muito daquilo que eles ensinam não passa de verdadeiros chutes, que a própria trave da verdade se encarrega de rebater e desmentir. O filósofo de hoje não sabe trabalhar mais em equipe, querendo ser o único a receber todos os méritos, quando coloca sua teoria, redondinha, dentro da rede da história”.
Finalizando, arrematou: - “Meus amigos, meus alunos, senhor Grão-Mestre e senhor funcionário federal, tenho dito”!
Curvou-se, a seguir, com humildade, para agradecer os aplausos que esperava ouvir dos presentes.
Saiu dali, pouco depois, em uma ambulância do Posto Médico Municipal, direto para uma casa de repouso psiquiátrico.
A estrondosa vaia que recebeu, após terminar a conferência, foi ouvida até no centro da cidade, conforme relataram ao jornal ‘Correio Matodentrense’ alguns moradores mais antigos que residiam por perto.
Tomado por súbita crise de choro ele teve de ser contido, pois ameaçava atirar-se pela janela daquele terceiro andar.
Dizem, porque ele mesmo não se lembrava de nada, que, ao ser levado para o interior da ambulância, ainda murmurava baixinho: - “Sócrates, meu filho, esteja onde estiver, vê se me ajuda aí, o cara”!
_*/ Economista, M.S. e Doutor pela Universidade de Madrid, Espanha.
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