terça-feira, 5 de julho de 2016


86. Continuação de Diário de um ‘Maluco Beleza’ (Capítulo 26)

Jober Rocha

Capítulo 26
Sábado, 29 de março



                             Como os investidores para os quais eu trabalhava já haviam deixado transparecer, em determinada ocasião, que meu antecessor no cargo havia desaparecido repentinamente por falar demais (imagino que ele, em uma de suas viagens ao país vizinho, resolvendo fazer um pouco de turismo, perdeu-se em alguma ruela desconhecida e, depois, por falar de mais o português e de menos o espanhol, não soube encontrar o caminho de volta), resolvi não aceitar o convite do senador; pois, sempre tive muito medo de me extraviar em lugares desconhecidos.
                                      Em determinado dia, ao voltar de uma de minhas viagens ao Paraguai e chegar à comunidade, verifiquei, com pesar, que nenhum dos meus clientes investidores encontrava-se presente na comunidade. Ao indagar, soube que todos os clientes, menos um deles, haviam falecido repentinamente e que o único sobrevivente andava lá pelo interior do Estado de São Paulo, em regime incomunicável. Assim, na impossibilidade de qualquer contato com meus antigos patrões, lembrei-me de um amigo paraguaio, que havia conhecido em uma de minhas viagens e cuja avó, doente grave segundo ele, morava na mesma comunidade que eu. Conforme relatou o meu amigo quando o contatei por telefone, alguns dias depois, sua avó, em decorrência da enfermidade de que padecia, tinha necessidade de vários medicamentos, só fabricados no Paraguai. Ofereci-me, assim, para receber os remédios e entregá-los à sua desditosa avó.
                                    A partir de então, toda semana ele enviava uma mala com cerca de cinqüenta quilos, que eu tinha que apanhar à noite na estação rodoviária. Passados alguns meses, causou-me surpresa ver, não apenas uma, mas, sim, duas malas. Pensei, contristado, na hipótese de sua avó haver piorado da moléstia que a acometia e necessitar de um número maior de medicamentos. Transcorridos mais alguns meses, ao chegar à rodoviária, deparei com vários policiais fardados, ao lado das malas. Supus, mediatamente, que a avó havia falecido e esperavam que alguém fosse apanhar as malas, para, então, comunicar ao portador a trágica noticia ou que, a partir daí, o próprio poder público, constrangido por não fabricar aqui no país aqueles medicamentos tão úteis para a pobre velha, resolvera, ele mesmo, usando para tal seus próprios funcionários, fazer a entrega para a velhinha. Em qualquer das hipóteses meus trabalhos não eram mais necessários, razão pela qual voltei calmamente para casa.
                                  Ao alimentar, certo dia, uma pequena ratazana que me acompanhava desde os primeiros momentos de permanência naquela comunidade; fui procurado em meu barraco, por uma senhora idosa, que conduzia um pequeno bebê no colo. Alegando não ter dinheiro para a passagem, pediu-me, penhoradamente, que levasse a criança ao aeroporto; pois, a mesma, iria visitar os pais residentes no exterior e os avos paternos estariam aguardando no saguão do Aeroporto Internacional.                                  A criança era um bonito bebê negro que, com uma chupetinha na boca, foi comigo de ônibus até o aeroporto, sem um chorinho sequer. Lá chegando, entreguei-a aos avos que sorriram de alegria ao ver-me. Segundo disseram, moravam com o filho casado na Suíça. Eram dois velhinhos simpáticos, louros e de olhos azuis. Pagaram-me um café, deram o dinheiro da passagem de volta e agradeceram efusivamente pelo trabalho que tive.
                            Durante todo aquele ano a referida senhora idosa me procurou, quase semanalmente, levando sempre uma ou duas crianças para que eu as conduzisse ao aeroporto, de onde os avos as levariam para visitar os pais no exterior. Como sei o triste que é viver afastado da família, já que fui abandonado por minha primeira mulher e perdi o contato com meu filho, Mico Preto, sempre me dispus a levar as pobres crianças. Por vezes, eu as deixava no aeroporto e retornava para casa com lágrimas nos olhos.
                                      Certo dia, recebi a notícia de que minha ex-esposa havia falecido ao fazer uma cirurgia para mudança de sexo. Segundo disseram, durante um transplante, havia sofrido rejeição da parte transplantada retirada do corpo de um caminhoneiro, morto em acidente de trânsito, gentilmente doada pela família. Conforme soube mais tarde, a esposa do caminhoneiro assistiu a cirurgia e chorava copiosamente ao contemplar a parte do seu marido sendo retirada, para ser transplantada. A mesma fonte me assegurava que meu filho, Mico Preto, era agora um importante executivo em empreendimento lucrativo na comunidade onde morava. Parece que tinha, ademais, o alto cargo de gerente.
                                       Embora passando necessidades, resolvi não procurá-lo. Fazia tanto tempo que havíamos nos separado e eu não desejava envergonhá-lo perante seus funcionários e superiores, aparecendo sujo, maltrapilho e desempregado.
                                      Meses depois soube, por um policial para quem sempre entregara os envelopes fechados que recebia de meus ex-patrões, que Mico Preto havia falecido. Ele não soube me dizer a causa da morte; porém, imagino que tenha sido o excesso de trabalho e os elevados níveis de colesterol e de triglicerídeos, como ocorre com todo executivo que não se cuida, principalmente, ocupando cargo tão elevado quanto o dele sujeito a preocupações diárias com as flutuações da economia.   Assim, desempregado, vivendo de bicos, sem família, sem perspectiva alguma de futuro, tomei a resolução de abreviar aquele rosário de sofrimentos que constituía a minha vida.
                                    Preparava-me para saltar do vão central daquela ponte na rodovia, mencionada no início, quando, acolhido por mão bondosa a me dar todo apoio naquela ocasião, fui bafejado por um sopro divino e tomei fôlego para recomeçar de novo. Às instâncias do meu salvador e protetor, iniciei a árdua tarefa de escrever as minhas memórias; as quais, segundo afirmação do próprio, render-me-iam substancial aporte de recursos financeiros, referentes aos direitos exclusivos de publicação. Transcorridos, entretanto, vários meses após a entrega à ele, dos originais para publicação, jamais recebi da parte do meu salvador e suposto benfeitor, um único vintém em pagamento pelo árduo trabalho que realizei naquela ocasião; fato que, deixando-me em estado depressivo, contribuiu, sobremaneira, para o agravamento da minha enfermidade.


(Continua no dia seguinte – nota do autor)


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