219. O Continente pelo Conteúdo
Jober Rocha*
Uma das definições de continente, segundo os dicionários, é aquilo que contém alguma coisa; em oposição ao conteúdo, que seria tudo aquilo que pertenceria ao continente. Assim, o continente sempre deveria ser maior do que o conteúdo.
Nossos primeiros julgamentos, sobre qualquer coisa material ou sobre os indivíduos, são feitos, sempre, tendo por base o continente. Os nossos julgamentos posteriores podem levar em conta o conteúdo ou ficar, apenas, na primeira aparência do continente.
Exemplificando: ao vermos um livro em uma livraria, a primeira coisa que atentamos é para a sua capa e para os dizeres que nela encontramos. Muitos leitores se interessam pela obra ou desistem dela, apenas, contemplando a sua capa. O conteúdo só será conhecido posteriormente, com a calma da leitura.
Tanto isto é verdadeiro que existem pessoas e empresas especializadas em produzir capas de livros; como também, outras empresas que se especializaram em criar embalagens para produtos que são vistos nas prateleiras dos supermercados. A embalagem, todos concordam, é o que primeiro chama a atenção das pessoas, razão pela qual deve ser agradável aos olhos e conter mensagens que despertem o interesse daqueles que observam o produto.
Na grande maioria das vezes só percebemos que fomos enganados por uma falsa capa, após termos adquirido o produto e constatarmos que se tratava de algo totalmente diferente daquilo que havia sido apregoado inicialmente. Em outras percebemos, satisfeitos, que o conteúdo era muito melhor do que aquilo que julgávamos, apenas, tendo observando a embalagem.
Isto ocorre, quase sempre, com as pessoas que conhecemos e com quem nos relacionamos: a primeira vista podem ser ótimas e cativantes e, posteriormente, constatarmos, desolados, que erramos em nosso julgamento inicial.
Isto se dá por que os seres humanos, como tudo o mais, também possuem uma embalagem e um conteúdo. Quando o conteúdo é bom, excelente ou excepcional, a embalagem deixa de ser importante; todavia, quando o produto é de péssima qualidade, a única maneira de ser vendido é caprichando na embalagem.
Os seres humanos são constituídos de corpo (a parte que é visível aos olhos no primeiro contato) e de espírito (a parte que não é percebida pelos olhos e só é perceptível, posteriormente, pelo espírito da outra parte, através do relacionamento social); razão pela qual, da mesma forma que ocorre quando adquirimos um livro, podemos nos influenciar pela beleza da capa e constatarmos, mais a frente, que nos deixamos enganar pelas aparências.
Buscando um motivo para entender por que isto ocorre, posso, apenas, imaginar que o Criador de todas as coisas, querendo testar a nossa percepção, ou querendo brincar conosco, envia, com freqüência, a este mundo que nós conhecemos, onde vivemos e nos relacionamos espíritos brilhantes em embalagens toscas e também o contrário; isto é, espíritos vis em corpos maravilhosos.
Ocorre que nós, quase sempre, nos deixamos influenciar pelos nossos sentidos físicos e, sendo assim, pelas aparências que as coisas possuem; tanto é que buscamos, sempre, as coisas que são belas à visão, gostosas ao paladar, agradáveis ao tato, ao olfato e à audição. Os sentidos, da mesma forma que nos alertam, podem também nos enganar.
O conteúdo espiritual das pessoas que conhecemos, nós só poderemos perceber através do contato periódico que com elas mantivermos. Da mesma forma que muitos espíritos inferiores capricham nas vestes, na beleza corporal, nos pronunciamentos que fazem, tentando apresentar uma capa atraente aos demais e, com isto, conseguir se insinuar entre as pessoas e acessar os ambientes onde estas vivem; outros espíritos superiores são rejeitados, nestes mesmos ambientes, por possuírem uma aparência desagradável à primeira vista.
Costumamos, com muita freqüência, julgar o conteúdo das pessoas pelo continente; isto é, nos deixamos influenciar por aquilo que aparentam, seja pela falta de tempo de nos inteirarmos do primeiro (de digestão e absorção mais lenta), seja pela volubilidade ou inconstância de nos deixarmos levar pelo segundo, ou seja, pelas aparências.
Como as trufas (corpo frutífero de um fungo, da família tuberaceae, de feia aparência e encontrada no subsolo; porém, de cheiro e sabor agradáveis, disputadas pelos gastrônomos que chegam, por vezes, a pagar cem mil euros pelo seu quilo), muitos espíritos iluminados e de incalculável valor escondem-se sob feias capas, que afastam as pessoas comuns ao primeiro contato. Igual a certas plantas ou determinados animais, que possuem uma aparência repulsiva, intimidadora daqueles que os contemplam, alguns seres humanos dotados de espíritos superiores se escondem, até mesmo, atrás de imagens em alguns casos repugnantes.
Creio, metafisicamente, que existe uma razão para que isto ocorra. Tratar-se-ia de uma prova a que os nossos espíritos estariam sendo submetidos; isto é, se conseguissem vencer a barreira inicial do asco da aparência, eles poderiam desfrutar, a continuação, do prêmio do conhecimento e da felicidade que aquele contato possibilitaria.
Isto, para mim, ficou bem caracterizado no filme ‘A Bela e a Fera’, conforme também podem constatar aqueles leitores que já o assistiram ou que ainda o assistirão.
Tal fato nada tem a ver com um sentimento de aversão que, eventualmente, venhamos a sentir ao sermos apresentados a determinadas pessoas, interlocutores estes que podem ter belas aparências ou não. Este sentimento de antipatia que em algumas situações nos ocorre, sem motivo aparente, eu creio ser devido a experiências desagradáveis que os nossos espíritos, entre si, mantiveram em existências anteriores.
A razão do presente texto é devida a um episódio recentemente ocorrido comigo. Ao vencer a repugnância física que sentia por determinada pessoa e com ela dialogar, pude perceber a amplitude da sua sabedoria e a iluminação do seu espírito, escondidos, ambos, sob uma aparência que a primeira vista causava aversão. Ocorre, por vezes, como neste caso, que a presença do conteúdo é excessivamente dominante, acabando por sobrepujar a supremacia que normalmente tem o continente. O conteúdo teria o poder de transformar a eventual feiura da capa em beleza, ao se tornar mais importante do que esta.
O fato de nos enganarmos com freqüência, em nossos julgamentos feitos com base na aparência das pessoas, já era objeto da preocupação de filósofos da antiguidade. Na entrada do Oráculo de Delfos, na Grécia, atribuída a vários filósofos da antiguidade estava escrita a frase: Conhece-te a ti mesmo!
Sem que conheçamos a nós mesmos, espiritualmente, dificilmente poderemos chegar a conhecer espiritualmente os nossos semelhantes, deixando-nos conduzir por suas aparências ou pelas suas capas.
_*/Economista e Doutor pela Universidade de Madrid, Espanha.
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