sábado, 5 de maio de 2018

205. Os dias e as noites na vida de um carioca da periferia (VI)


Jober Rocha*





                                           Voltando a falar sobre a minha desditosa infância, eu me considero um filósofo por natureza, pois sempre me preocupei com a origem das injustiças e das desigualdades sociais; razão pela qual, após ter atingido certa idade, comecei a desconfiar de que algo errado estava ocorrendo na minha breve existência, fazendo com que todos os empreendimentos de que participasse se tornassem desastrosos. 
                                                          Embora fosse apadrinhado do chefe da gangue local, que me incumbia de algumas pequenas missões bem remuneradas, nunca consegui deslanchar na carreira do crime. Parece que algo de sobrenatural conspirava contra o meu sucesso profissional. 
                                                               No campo afetivo, também, jamais tive sorte; pois a maior parte das moças com as quais saia engravidava logo da primeira vez. 
                                                         Sem recursos financeiros que me permitissem assumir a paternidade de tantas crianças, a única solução que encontrei foi mudar-me para a capital, onde, totalmente desconhecido, poderia finalmente buscar o meu destino e, quem sabe, esconder-me, no meio da enorme população que ali vivia e transitava, daquela Entidade maligna que teimava em intrometer-se no meu caminho, visando prejudicar meus negócios e empreendimentos.
                                                  Assim, em uma bela manhã ensolarada, tomei o ônibus que me conduziria à cidade do Rio de Janeiro, onde pretendia radicar-me e fazer sucesso. Não mencionarei o nome dos meus pais, nem em qual município residia a família Nalha, para evitar que inúmeros leitores, após lerem o conteúdo desta obra, busquem contato com eles para parabenizá-los por me haverem posto para fora de casa.
                                                  Desembarcando, pois, na estação rodoviária, segui direto para um pequeno hotel nas proximidades, onde, após me instalar, parti para descobrir e estudar os segredos daquela Cidade Maravilhosa.
                                                           No dia seguinte resolvi arranjar um emprego, não importava qual fosse, pois necessitava sobreviver. Como sempre havia sido dotado de fácil relacionamento e ser bastante cativante no falar, no gesticular e no vestir, me ofereci ao gerente para angariar hospedes para o hotel, junto ao público que desembarcava dos ônibus interestaduais. 
                                                     No mesmo dia conduzi mais de dez nordestinos para o pequeno hotel. Em poucos meses eu já vivia com bastante tranqüilidade, já dispondo de recursos suficientes para deixar aquele pequeno hotel e me mudar para um apartamento de quarto e sala no Bairro do Catete.
                                           Naquele local, vivi alguns anos felizes, chegando, inclusive, a ocupar a função de síndico do edifício. Nesta função meu patrimônio aumentou sensivelmente; já que, sem que eu nada pedisse, os fornecedores de bens e serviços para o prédio me cumulavam de presentes e de gratificações financeiras, desde, é claro, que eu não procurasse me intrometer nos preços que cobravam e desde que, apenas, assinasse as notas fiscais e as faturas que eu recebia, todas superfaturadas, atestando que os produtos foram entregues e os serviços executados.
                                                 Fazendo parênteses, gostaria de salientar a constante preocupação que sempre tive com o meu próximo. Muito religioso, jamais deixei de depositar uma moedinha de dez centavos nos altares das igrejas que frequentava e de jogar uma bala de hortelã no chapéu de todo mendigo que pelas ruas encontrava. 
                                                              A todas as horas do dia estava sempre pronto para ajudar a qualquer um que me procurasse, dando uma palavra de carinho e de estimulo, antes de ir-me embora. 
                                                      Em todas as ocasiões em que algum necessitado veio me pedir algo, sempre tive a compaixão de encaminhá-lo para a pessoa mais próxima de mim, pedindo a esta que o atendesse da melhor maneira possível, enquanto eu me retirava rumo aos meus afazeres. 
                                                              Assim, não conseguia entender como as coisas sempre me saiam mal toda vez que ousava um voo mais alto ou uma empreitada mais arrojada. Se meus estimados leitores não acreditam, constatem, através das páginas seguintes (que tive a iniciativa de escrever como um verdadeiro diário, em um rolo de papel higiênico que sempre carregava comigo, na ocasião mesma em que os fatos ocorriam), como era o meu dia a dia quando mais jovem e bem disposto, antes de me aposentar e vir residir em uma favela da periferia nestes últimos anos: 
                                                                  Fazia apenas dez minutos que eu entrara na fila de embarque para um voo de curta duração na Ponte-Aérea Rio X São Paulo, quando, ao abaixar-me para mexer em minha mala, os óculos que eu portava e que estavam meio frouxos caíram ao solo, quebrando suas lentes.
                                                                    Como sou míope desde criança, as lentes eram verdadeiros fundos de garrafa e, sem elas, eu não enxergava quase nada. Apanhando a armação sem as lentes e colocando-a no bolso da camisa, fiquei alguns minutos sem saber o que fazer. Por fim, comecei a buscar naquela fila algum possível conhecido que pudesse auxiliar-me durante o embarque no Rio e o desembarque em São Paulo.
                                                                  Ao olhar fixamente para algumas pessoas que estavam na fila atrás de mim, vendo, embora de maneira desfocada, se reconhecia algum conhecido, ouvi, partindo não sei de onde, uma voz feminina que dizia: - Veja Vera Lúcia, aquele sujeito com cara de tarado não tira os olhos de cima de você!
                                                             Fingi que não ouvi aquele comentário, olhei em frente e esperei a fila andar. Pouco tempo depois, cheguei ao balcão da companhia aérea. Informei à atendente que as minhas lentes haviam quebrado e que eu não enxergava quase nada. Ela providenciou uma cadeira de rodas, na qual fui conduzido, prioritariamente, até a porta da aeronave. 
                                                                          Cerca de dez minutos depois da decolagem, algumas cólicas, prenunciando enorme ‘Tsunami’ intestinal, indicaram que eu necessitava urgentemente ir ao banheiro Após algum esforço e muito constrangimento por parte dos outros dois passageiros, que tiveram de levantar para me dar passagem após eu haver pisado em seus pés, segui tateando até o fim do corredor, onde, vendo uma porta entreaberta, corri para dentro já desapertando o cinto e arriando as calças. 
                                                                  Logo em seguida ouvi gritos irados e percebi o co-piloto levantando de sua poltrona para conduzir-me para fora da cabine de voo. Por sorte, na parte da frente da aeronave, bem ao lado da cabine dos pilotos, havia um banheiro onde ele, empurrando-me para dentro, fechou a porta.
                                                                 Foi só o tempo de arriar novamente a calça e a cueca. Mal tive tempo de me sentar direito no vaso. A quantidade foi tanta que por pouco não extravasava para fora. Na urgência daquele momento acabei sujando parte da calça e da camisa.
                                                                Ao procurar dar a descarga, constatei que a mesma não funcionava. Ao procurar papel higiênico, constatei que não havia. O recurso foi utilizar a cueca para a higiene pessoal, durante a qual acabei por sujar ambas as mãos, pois o espaço era muito apertado.
                                                                   Já me encontrava ali dentro havia alguns minutos, quando bateram forte na porta. Pouco depois bateram novamente, com mais força, e, em seguida, outra vez, com mais força ainda. 
                                                                 Alguém tão necessitado quanto eu estava do lado de fora, querendo entrar.
                                                             Ao me preparar para sair, abrindo a torneira para lavar as mãos e tentar lavar a calça e a camisa que haviam se sujado, constatei, em pânico, que também não havia água na torneira.
                                                                    Desesperado, não sabia o que fazer naquele momento. Imaginei que ao abrir a porta aquele cheiro fétido rapidamente penetraria no interior de toda a aeronave, contaminando as comidas e as bebidas; podendo, inclusive, entrar por debaixo da porta da cabine dos pilotos e representar, até mesmo, risco de queda daquele avião, em razão, talvez, da necessidade dos pilotos terem de abandonar a cabine devido ao mau cheiro, deixando-a vazia e a aeronave sem comando. 
                                                                  Enquanto isto, ali dentro do banheiro, seguia ouvindo aquelas batidas na porta, cada vez mais fortes.
                                                                Em determinado momento, tomado por um sentimento de claustrofobia incontrolável, vesti a calça, deixando a camisa suja para o lado de fora, agarrei a cueca suja com a mão, abri de uma só vez a porta do banheiro e, rodando a cueca suja com a mão por sobre minha cabeça, adentrei no corredor da aeronave, seguido de perto por aquele cheiro fétido insuportável, pulando e gritando repetidamente o seguinte refrão: - Há, eu sou maluco! Há, eu sou maluco!
                                                            Fui logo subjugado por alguns passageiros e comissários de bordo, cujas feições, contraídas, demonstravam ou um ódio extremo a minha pessoa, ou que prendiam a respiração em razão de algum cheiro muito forte e me recordo, ainda perfeitamente lúcido, de haver sentido uma picada no braço antes de desfalecer por completo.
                                                                    No hospital psiquiátrico onde estive internado, situado nos arredores da cidade de São Paulo, repeti, por diversas vezes e para vários médicos diferentes, esta triste história que me ocorreu naquele fatídico dia em que resolvi visitar alguns parentes na capital paulista. Pelo visto, os médicos não acreditaram nela, pois fiquei quase seis meses ali, até conseguir fugir pulando o muro.
                                                    Tendo, finalmente, conseguido escapulir sem ser notado daquele hospital psiquiátrico e retornado ao Rio de Janeiro de ônibus, um belo dia, resolvi ir ao centro pagar uma conta de luz.
                                                                 Aquele seria um dia comum na minha vida, como qualquer outro, não fosse o meu deplorável e irresistível costume de querer ser sempre prestativo e ajudar ao próximo, metendo-me, por vezes sem ser chamado, na vida de pessoas que desconheço totalmente.
                                                   Ao observar uma magra velhinha arrastando pesada mala e tentando atravessar movimentada rua do bairro, ofereci-me logo para ajudá-la. 
                                                               Embora ela insistisse muito em não querer largar a mala, tomei o pesado volume da sua mão e, colhendo-a pelo braço, iniciei a travessia daquela agitada artéria. 
                                                                 A mala era realmente pesada e uma pobre senhora, como ela, teria muita dificuldade em carregar tamanho peso. Assim, mesmo contra a vontade da idosa, ofereci-me para conduzir a pesada mala até o seu destino final.
                                                      A senhora deu-me, então, um endereço que ficava em parte pobre da cidade, local ermo e mal frequentado. Em razão do adiantado da hora, resolvi pegar um táxi. Durante a viagem ela pouco falou, dizendo, apenas, que fazia alguns pequenos serviços para seu filho, que era gerente de uma empresa cujo nome na hora eu não entendi direito.
                                                     Chegando ao destino ao cair da noite, percorri, com ela, vielas estreitas e becos mal cheirosos até o endereço fornecido. Era um velho sobrado caindo aos pedaços, onde, no último andar, avistava-se uma tênue luz bruxuleante. Com a mala nas costas, arfando, subi dois lances de escada precedido da velha senhora.
                                                    Tendo atingido o final da escadaria, vi que um corredor escuro conduzia para uma única porta fechada. A senhora deu três batidas curtas e três longas e a porta foi aberta. Entrando no recinto mal iluminado, com a pesada mala nos ombros, levei alguns segundos para me familiarizar com o ambiente na penumbra. 
                                                            Quando meus olhos se aclimataram pude perceber alguns colchões velhos jogados pelo chão, garrafas espalhadas, balanças, sacos plásticos e, principalmente, quatro indivíduos mal trajados e mal encarados, portando fuzis e diversas armas de menor calibre, olhando diretamente para mim com cara de tigres selvagens.
                                                   Um deles, voltando-se para a velha senhora, perguntou: - Mamãe, quem é este otário com cara de idiota?
                                                    A idosa respondeu com a cabeça baixa: - Eu fiz de tudo para ele não vir; mas, o infeliz insistiu de todas as maneiras que queria carregar a minha velha mala!
                                              O individuo aproximou-se de mim e, apontando uma arma para a minha cabeça, mandou que retirasse a camisa e a calça, ficando eu apenas de cueca e sapatos.
                                                    A senhora, então, começou a abrir a mala e pude constatar que estava cheia de pacotes de maconha e de cocaína. Após retirar todo o conteúdo, ela disse ao filho que em sua casa ainda tinha o correspondente a duas malas cheias, quantidade esta que traria nos próximos dias.
                                                  Olhando-me diretamente nos olhos, com um olhar frio e assassino, o chefe (ou gerente, conforme disse a velhinha) falou: - Você quer trabalhar para nós, trazendo as malas? Minha mãe já está bem velha e tem dificuldades para carregar todo esse peso; mas, com você fazendo o serviço junto poderemos movimentar muito mais mercadoria!
                                                  Naquela situação em que me encontrava, apenas de cueca e sentado no chão frio, só tinha duas alternativas: dizer não e morrer ali, na hora, ou dizer sim e ganhar mais alguns minutos de vida; portanto, eu disse sim. 
                                                            Vejam vocês, caros leitores, em uma cidade com milhões de habitantes eu fui o escolhido pelo destino para entrar em uma fria como aquela. Concordam comigo que, pela Teoria das Probabilidades, a minha chance de ser premiado nesta loteria do crime era ínfima, mas, mesmo assim, ganhei o primeiro prêmio?
                                                              Isto só podia ser uma daquelas armadilhas, preparadas pela maligna Entidade Superior que vigiava meus passos, visando atrasar meu progresso material e meu desenvolvimento espiritual. 
                                                      Olhando a conta de luz que eu carregava no bolso da calça, o chefe disse: - Então, você é o Nalha, que mora na Rua das Esmeraldas 120! Nalha, você receberá mil reais por cada mala que trouxer com minha mãe, que virá sempre junto de você para não levantar suspeitas! Se nos enganar, trair, delatar ou fugir, morre! Sua cabeça será cortada e seus membros espalhados pelas ruas do bairro, para que os cães se alimentem e os ratos passem por cima!
                                                      Ainda sentado no chão, sem roupas, olhei para meu novo patrão e, pensando em tudo aquilo que ele dissera, respondi: - Obrigado, excelência, eu estava mesmo precisando de uma ajuda financeira! Esteja certo que acompanharei sua mãe e até farei companhia à velha em meus momentos de folga; pois esta cidade está cheia de marginais e a gente nunca sabe quando poderão atacar uma velhinha!

(Continua em próximo texto)


_*/ Economista e Doutor pela Universidade de Madrid, Espanha.

Nenhum comentário:

Postar um comentário