201. Os dias e as noites na vida de um carioca da periferia (III)
Jober Rocha*
Hoje pretendo ir à companhia de águas e esgotos resolver um problema que ocorre não só comigo, mas, também, com meus vizinhos.
Trata-se do seguinte: as contas da companhia chegam todos os meses com valores mais elevados, denotando que ou o meu consumo ou a tarifa estão aumentando.
Entretanto, ocorre um fato bem estranho, tanto em minha casa quanto nas casas dos meus vizinhos; isto é, não temos água há vários meses. Nem uma gota para meu gato preto.
Se não é o garrafão de vinte litros, que sou obrigado a comprar, mensalmente, eu e ele já teríamos morrido de sede.
Tentei ligar para a companhia, por várias vezes, mas, quase sempre, quando atendem e após eu explicar tudo, a ligação cai e a pessoa que atende a nova ligação que faço já é outra e tenho que explicar tudo de novo.
Por vezes, a voz mecânica que atende avisa: para comprar figurinhas, digite 1; para marcar exame de urina, digite 2; resultado do Jogo do Bicho, digite 3; condição de trafego nas estradas, digite 4; vôos cancelados, digite 5; preço do tomate na Bolsa de Nova York, digite 6; segunda via de título de eleitor, digite 7.
Com as possibilidades de poder acessar o ramal de reclamações já se esgotando, continuo ouvindo: para cotação do milho na Bolsa de Chicago, digite 8; para o preço do farelo de soja em Cingapura, digite 9 e, por fim, escuto: para encerrar a ligação digite 0.
Assim, sem conseguir fazer a minha reclamação resolvi ir pessoalmente à companhia de águas e esgotos.
No trajeto de ônibus até a sede da companhia, pude comprovar que a moléstia que me acometia, cada dia mais, se agravava. Agora, além de ir perdendo o contato com a realidade, também estava com distúrbios referentes ao meu sentido de direção.
Pela janela do ônibus eu notava que as motocicletas andavam todas na contramão de direção. Ora, isto só podia significar que alguma coisa havia alterado meu sentido de direção e que eu estava tendo uma visão distorcida dos quatro pontos cardeais: para mim, agora, o norte era sul, o sul era centro-oeste e o leste nordeste. Aquilo me deu uma enorme tristeza, pois, ao invés de melhorar, via que meu estado mental piorava.
Totalmente desanimado me senti ao contemplar os carros em cima das calçadas; pois, aquilo indicava que o meu sentido de posição também estava alterado. Se minha saúde mental estivesse boa, certamente, eu os veria no lugar onde deveriam estar; isto é, nas ruas.
Eu notei, ademais, que devia estar ficando Daltônico (talvez um pequeno tumor no cérebro estivesse comprimindo vasos e nervos oculares). Os veículos passavam com os sinais vermelhos. Ora, os sinais, certamente, deveriam estar verdes; mas, o meu daltonismo os via como se estivessem vermelhos, esta foi a minha triste conclusão.
Chegando na empresa de águas e esgotos, após aguardar duas horas na fila, finalmente, fui atendido pela funcionária.
Após explicar que na rua de terra batida onde eu morava não tinha água, nem esgotos, mas a conta mensal chegava sempre com aumento e que aquela reclamação não era só minha, mas, também de todos os meus vizinhos, a funcionária consultou seu computador e, fazendo um ar espantado, declarou bem alto, para que todos na fila ouvissem:
- Mas aqui no computador, meu senhor, consta que a sua rua é asfaltada, que possui rede de esgotos, TV a cabo, ponte sobre o Riacho Urubu, semáforos e que o abastecimento d’água é normal. O senhor está falando a verdade ou está querendo me enganar para não pagar a conta d’água?
- Mas aqui no computador, meu senhor, consta que a sua rua é asfaltada, que possui rede de esgotos, TV a cabo, ponte sobre o Riacho Urubu, semáforos e que o abastecimento d’água é normal. O senhor está falando a verdade ou está querendo me enganar para não pagar a conta d’água?
Notei que todos me olhavam e, na ausência de uma prova material concreta, que demonstrasse claramente que a rua onde eu morava era de terra, que não tinha esgoto, nem água ou qualquer dos outros itens por ela mencionados, fiquei sem saber o que dizer.
Ela, finalmente, vendo que eu nada respondia, disse:
- Vou mandar fazer uma vistoria no local. Se não for encontrado asfalto na rua, ponte, semáforos e nem rede de esgotos, o senhor e seus vizinhos terão de repor tudo; pois, isso indica que os moradores retiraram os encanamentos e destruíram o asfalto e as obras de arte e benfeitorias da rua.
- Vou mandar fazer uma vistoria no local. Se não for encontrado asfalto na rua, ponte, semáforos e nem rede de esgotos, o senhor e seus vizinhos terão de repor tudo; pois, isso indica que os moradores retiraram os encanamentos e destruíram o asfalto e as obras de arte e benfeitorias da rua.
- Esse povo pobre da periferia é useiro e vezeiro em roubar e destruir aquilo que o Estado disponibiliza para seu conforto e benefício – arrematou a funcionária indignada, finalizando o meu atendimento e chamando o próximo da fila.
Desanimado, segui direto para casa pensando no que diria aos meus vizinhos. Talvez devêssemos começar logo fazendo uma poupança comunitária para poder iniciar as obras de esgoto e asfaltamento no final do ano seguinte.
Tendo perdido o dia todo na companhia da águas, finalmente em casa, comi um pedaço de pão e algumas bananas e iniciei a leitura de ‘Loucura e Civilização’, de Michel Foucault, no qual ele registra a transformação dos pontos de vista da sociedade ocidental em direção à doença mental através dos séculos. Li que a loucura, inicialmente, era associada a conotações místicas. Pensava-se que os indivíduos loucos eram abençoados pelos deuses ou que estavam, pelo menos, em contato direto com o divino.
Foucault também sustentava a opinião de que o espírito criativo e o limbo lunático não estavam tão distanciados e que muitos dos ‘lunáticos’ eram, na verdade, visionários e dissidentes sociais, fossem rebeldes dinâmicos ou, simplesmente, almas que marchavam ao som de um tambor diferente.
Tendo passado por uma situação de insanidade mental, posso assegurar que jamais mantive contato com alguma divindade. Também não me considero um dissidente social; posto que, pauto sempre minha conduta pelas virtudes e pelos bons costumes.
Como os tempos e os costumes estão sempre mudando, como já dizia Cícero ao exclamar Ó Tempora! Ó Mores! (Ó tempos! Ó costumes!) , imagino que a opinião de Foucault, da qual discordo, seja devida ao momento e aos costumes da época em que ele viveu.
Assim, lendo aquelas colocações que o filósofo havia deixado para a posteridade através das páginas que escrevera, adormeci sem me dar conta de que o fazia.
(Continua em próximo texto)
_*/ Economista e Doutor pela Universidade de Madrid, Espanha.
Nenhum comentário:
Postar um comentário