sexta-feira, 4 de maio de 2018

204. Os dias e as noites na vida de um carioca da periferia (V)



Jober Rocha*





                                                           Enquanto esse tão esperado dia de trabalhar com o vereador, mencionado anteriormente, não chega; em razão do grande conhecimento que eu possuía do mercado financeiro, por ter feito o curso técnico de Contabilidade, fui convidado por alguns investidores importantes, daquela localidade periférica, a prestar assessoria econômico-financeira sobre como bem aplicar o enorme volume de recursos ali gerado pelas atividades de produção e comercialização de determinado pó branco, muito parecido com o gesso. Imagino que a jazida deste mineral fique no topo do morro; mas nunca pude visitá-la, pois deve ser um mineral estratégico e de segurança nacional, já que as instalações de produção estão sempre guardadas por homens armados.
                                                      Iniciei, a partir de então, um período de intensas e prolongadas viagens ao Paraguai, pois os investidores faziam questão de que os seus recursos financeiros fossem aplicados todos naquele país.
                                                     Tantas vezes fui ao Paraguai, que já era até conhecido dos guardas da fronteira, os quais me saudavam efusivamente após brindá-los, como eu frequentemente fazia, com algumas garrafas de uísque doze anos.
                                                          Certa ocasião, hospedado em um hotel na cidade de Pedro Juan Caballero, na fronteira com o Mato Grosso do Sul, conheci um político que, após saber do meu trabalho junto aos investidores da favela, convidou-me a ir até Brasília, onde me apresentaria vários colegas seus interessados naquele tipo de consultoria que eu desenvolvia.
                                                        Como os investidores para os quais eu trabalhava já haviam deixado transparecer, em determinada ocasião, que meu antecessor no cargo havia desaparecido, repentinamente, por falar demais e não tratar com exclusividade o pessoal da comunidade, eu resolvi não aceitar o convite do político.
                                                             Em certa ocasião, ao voltar de uma de minhas viagens ao Paraguai e chegar à comunidade, verifiquei, com pesar, que nenhum dos meus clientes investidores encontrava-se presente no local.
                                                                 Ao indagar, soube que quase todos haviam falecido repentinamente e que um único sobrevivente andava lá pelo interior do Estado de São Paulo, em regime incomunicável.
                                                                Assim, na impossibilidade de qualquer contato com meus antigos patrões, lembrei-me de um amigo paraguaio que conheci em uma de minhas viagens e cuja avó, doente grave segundo ele, morava na mesma comunidade que eu. Conforme relatou o meu amigo, quando o contatei por telefone, sua avó, em decorrência da enfermidade de que padecia, tinha necessidade de vários medicamentos só fabricados no Paraguai.
                                                                Ofereci-me, assim, para receber os remédios e entregá-los à desditosa avó.
                                                               A partir de então, toda semana ele enviava uma mala com cerca de cinquenta quilos, que eu tinha que apanhar, à noite, na estação rodoviária.
                                                               Passados alguns meses, causou-me surpresa ver, não apenas uma, mas, sim, duas malas. 
                                                                       Pensei, contristado, na hipótese de sua avó haver piorado da moléstia que a acometia e necessitar de um número maior de medicamentos.
                                                             Transcorridos alguns meses, ao chegar à rodoviária, deparei com vários policiais fardados ao lado das malas.
                                                    Supus, imediatamente, que, ou a avó havia falecido e esperavam que alguém fosse apanhar as malas para comunicar a trágica noticia ao familiar ou que, a partir daí, o próprio poder público, constrangido por não fabricar aqui no país aqueles medicamentos tão úteis para a pobre velha, resolvera, ele mesmo, usando para tal seus próprios agentes, fazer a entrega.
                                                            Em qualquer das hipóteses meus trabalhos não eram mais necessários, razão pela qual voltei para casa.
                                                             Certo dia, ao alimentar uma pequena ratazana que me acompanhava desde os primeiros momentos de permanência naquela comunidade, fui procurado por uma senhora idosa que  trazia no colo um pequeno bebê. Alegando não ter dinheiro para a passagem pediu-me, penhoradamente, que levasse a criança ao aeroporto, pois a mesma iria visitar os pais residentes no exterior e seus os avós estariam esperando a criança no saguão do aeroporto.
                                                                    A criança era um bonito bebê negro que, sugando a sua chupetinha, foi comigo de ônibus até o aeroporto sem dar um chorinho sequer.
                                                                 Lá chegando eu o entreguei para os dois avós, que sorriram de alegria ao me ver chegar. 
                                                                Segundo disseram, moravam com os filhos na Suíça. Eram dois velhinhos simpáticos, louros e de olhos azuis. Pagaram-me um café, deram o dinheiro da passagem de volta e agradeceram-me, efusivamente, pelo trabalho que tive.
                                                                Durante todo aquele ano a referida senhora idosa me procurou, quase semanalmente, levando sempre uma ou duas crianças para que eu as conduzisse ao aeroporto, de onde os avós as levariam para visitar os pais no exterior.
                                                                    Como sei o triste que é viver afastado da família, já que fui abandonado por minha própria mulher e perdi o contato com Mico Preto, sempre me dispus a levar as pobres crianças. Por vezes eu as deixava no aeroporto e retornava para casa com lágrimas nos olhos.
                                                                Certo dia, recebo a notícia de que minha ex-esposa havia falecido ao fazer uma cirurgia para mudança de sexo. Segundo disseram, durante o transplante havia sofrido rejeição da parte do corpo de um caminhoneiro, morto em acidente de trânsito, gentilmente doada pela família e que seria transplantada na minha ex-mulher. A mulher do caminhoneiro havia assistido a cirurgia e, segundo a fonte que me informou, chorou muito ao ver, sendo retirada do marido, a parte que seria transplantada em minha ex-esposa.
                                                           A mesma fonte me assegurava que meu filho, Mico Preto, era agora um importante executivo em empreendimento lucrativo na favela da periferia onde morava. Parece que tinha o alto cargo de gerente e a empresa dele produzia aquele mesmo pó branco, cujas jazidas são muito comuns no Estado do Rio.
                                                            Embora passando necessidades, resolvi não procurá-lo. Fazia tanto tempo que havíamos nos separado e eu não desejava envergonhá-lo perante seus funcionários e superiores, aparecendo sujo, maltrapilho e desempregado.
                                                           Meses depois soube por um policial, para quem sempre entregara o envelope fechado que recebia de meus ex-patrões, que Mico Preto havia falecido.
                                                      O policial não soube dizer a causa da morte; porém, imagino que tenha sido o excesso de trabalho e o colesterol e os triglicerídeos elevados, como ocorre com todo executivo que não se cuida, mormente ocupando cargo tão elevado quanto o dele.   
                                                     Assim, desempregado, vivendo de bicos, sem família, passando necessidades, sem perspectiva alguma de futuro, tomei a resolução de abreviar aquele rosário de sofrimentos que constituía a minha vida.
                                                             Preparava-me para saltar do vão central da Ponte Rio - Niterói, quando, acolhido por mão bondosa a me dar todo apoio naquela ocasião, fui bafejado por um sopro divino e tomei fôlego para recomeçar de novo.
                                                     As instâncias de meu protetor, alto funcionário do governo e com um excelente coração, consegui me aposentar (tendo que dar a ele os proventos recebidos durante os primeiros oito meses, para despesas cartoriais e registros de documentos, segundo ele me disse) e, desde então, moro sozinho na comunidade em companhia de um gato preto.                                                                                

(Continua em próximo texto)


_*/ Economista e Doutor pela Universidade de Madrid, Espanha.



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