216. Os dias e as noites na vida de um carioca da periferia (XVII)
Jober Rocha*
Lembrei-me, hoje, não sei por que razão, dos tempos em que era casado com Cleonice Barbosa. Não serei hipócrita o bastante para dizer aos leitores que senti saudades dela. Recordei-me de um episódio bizarro, que me ocorreu naquela época e que me pegou totalmente de surpresa.
Estava em casa, calmamente sentado na sala, lendo o jornal da manhã, quando recebi aquele telefonema: -“Aqui, mano, é o careca do Presídio de Bangu I. Nós sequestramo tua filha e tu vai tê que compra cinqüenta mil paus em cartão pré-pago de celular. Não desliga não, mano, senão ela morre agora mesmo. Tu compra os cartão e dá o número deles pra nós. Em meia hora ligamos novamente. Se tu não tive feito o que eu mandei vai recebe pelo correio os seios dela em uma caixa de sedex!”
Aflito chamei por Barbosa; porém, lembrei-me que naquela hora ela estava na academia de artes marciais, onde praticava caratê, box tailandês, kung fú e krav maga. Constatei, assim, que me encontrava absolutamente sozinho, para fazer frente à trágica situação em que o destino me colocara.
Apavorado vesti, rapidamente, a calça e a camisa e fui correndo ao Banco, de onde retirei toda a poupança acumulada, por anos. Em seguida, fui voando à loja mais próxima para adquirir os cartões.
Felizmente consegui fazer tudo, só que ultrapassei um pouco o prazo dado de meia hora. Cheguei à casa, esbaforido, com um monte de cartões na mão.
Logo depois o telefone tocou: - Aqui, mano, conseguiu fazer o que mandei?
- Claro, respondi, passando em seguida os números dos cartões para o careca de Bangu I.
Este, após copiar todos os números, disse: -“Aqui mano, nós estamos soltando ela agora! Ela vai chegar em casa meio estrupada, mas isso é por causo de que tu demoro muito a chegar e, pra passa o tempo, eu brinquei um pouco com ela!”
Desliguei o telefone aliviado, pois tinha evitado que minha filha morresse nas mãos do bandido.
Voltando a ler o jornal, parei de repente e exclamei em voz alta: - Puxa, mas eu não tenho filha!
Em seguida, berrei mais alto ainda: - Perdi toda a minha poupança!
Em questão de segundos, raciocinando rápido, peguei o telefone e disquei um número qualquer, ao acaso, pensando comigo mesmo: - Se deu certo comigo, pode dar também com qualquer outro otário!
Ao ouvir a voz de um homem atendendo do outro lado, gritei bem alto: - Aqui, mano, é o careca do Presídio de Bangu I...
Da minha união com Barbosa acabou nascendo uma criança, que acabou sendo criada por um antigo treinador dela, de Box Tailandês, após a nossa separação e depois que ela partiu para as Filipinas, em busca de sucesso nas competições de Muai Thai.
Durante o período em que convivemos juntos, lembro-me de uma ocasião na qual, enquanto eu a observava com o rosto todo ensaboado fazendo a barba no banheiro, lhe disse que nunca mais discutiria sobre futebol, política, religião ou carnaval.
Por diversas vezes, na casa de amigos, no trabalho ou no clube, vira-me envolvido em discussões acaloradas, quando, em todas as vezes que conseguira fazer meu ponto de vista prevalecer, perdera a amizade de todos os amigos que tinham pontos de vista contrários ao meu.
Decidido, pois, a manter os poucos amigos que ainda me restavam, tomei aquela drástica decisão. A partir de então, só conversaria sobre Moscas Drosófilas, pois nunca vira alguém falando sobre moscas a ponto de iniciar uma discussão.
Logo após comunicar minha decisão à Barbosa (era assim que ela gostava de ser chamada), notei que apresentava um ar bem feliz, talvez por não ser mais obrigada a interceder, dando socos, chutes e cabeçadas nos oponentes, como fazia para acalmar os ânimos ou apartar as brigas que eu criava. Ela informou-me, naquela ocasião, que à noite teríamos de ir ao aniversário de um colega de creche do nosso filho pequeno.
Por volta das dezenove horas chegamos ao salão de festas do edifício, já cheio de pais e mães de amiguinhos do aniversariante.
Buscamos uma mesa onde já haviam dois casais sentados, sentamo-nos e, enquanto Barbosa saía para entregar o presente, fiquei ouvindo as conversas.
Falavam de futebol, política e outras futilidades. Eu, até então, mantinha-se calado, apenas ouvindo.
Após cantarem os parabéns, comendo uma fatia de bolo, perguntei ao cidadão que estava à minha frente: - O amigo se interessa por Moscas Drosófilas?
O indivíduo olhou-me firmemente nos olhos e devolveu-me a pergunta: - De qual você está falando, das selvagens ou das mutantes?
Eu, apanhado de surpresa, respondi: – Das mutantes é claro!
O cidadão, falando com conhecimento, contestou: - Não, não gosto das mutantes. Prefiro as selvagens, pois as mutações têm efeito prejudicial nas Drosófilas!
Tomado, então, por súbita cólera, respondi de modo agressivo: - Já vi que você não entende nada desse assunto, seu verme. As mutações são muito benéficas para as Drosófilas!
A partir deste ponto, não me lembro de mais nada. Recordo-me, apenas, de haver chegado a minha casa, por volta das duas horas da manhã do dia seguinte, vindo diretamente da delegacia do bairro onde estivera, até então, prestando depoimento em uma acusação de agressão com lesão corporal grave, já que eu havia dado uma garrafada na cabeça do pai do colega de creche do meu filho, segundo Barbosa me afiançava.
Um dia, estando sentado ao lado de seu Bernardino, pai de vários rapazes já falecidos (menos um deles, que atualmente morava no exterior), contemplávamos um jovem ser espancado por uma multidão e jogado morro abaixo, seu Bernardino contou-me a história da vida do único filho vivo, que morava fora do país.
Era um menino inteiramente covarde, desde pequeno. Nunca havia enfrentado uma situação difícil de frente, pois sempre tivera medo.
Na escola pública onde estudava, era desafiado por todos os colegas e não respondia ao desafio, quase sempre abaixando a cabeça e, por vezes, até se humilhando.
Certo dia, ao assistir com seu tio a uma partida de pôquer, nos fundos do bar do Alemão, observou que o jogador mais fraco, apostando com apenas um par de setes, ganhou de todos os jogadores mais fortes, com trinca, flash e seqüência, que correram do jogo.
O tio explicou-lhe, na ocasião, que o jogador do par de setes havia blefado e, por isso, ganhara dos outros jogadores, que tinham jogos mais altos.
Como era inteligente resolveu, a partir daquele dia, usar a técnica do blefe, que vira dar certo naquela partida, possibilitando ao mais fraco ganhar do mais forte.
Tendo seus pais se mudado para outra favela, em outro morro, ao estabelecer amizades com novos rapazes e moças da sua idade, começou a apresentar-se como matador profissional, dizendo que, do local de onde viera, por dinheiro, já havia eliminado muitas pessoas.
Com este blefe, imaginava ser temido por todos e não mais ser desafiado e humilhado pelos companheiros.
Quando lhe perguntavam maiores detalhes, mantinha-se evasivo, dizendo apenas que, após o serviço, desovava os corpos em locais distantes e pouco conhecidos.
Assim, tendo adquirido fama de valentão e passando a ser respeitado por todos, agora, desfrutava de calma e tranqüilidade naquele outro morro.
Em casa, certo dia, após o almoço, ouvindo o telefone celular tocar, julgou tratar-se de algum amigo querendo marcar uma ‘pelada’ para o fim da tarde, no campinho de futebol no alto do morro.
Atendeu displicentemente e espantou-se com a voz que do outro lado dizia: - Ouvi falar de você e tenho um serviço urgente. Quero contratá-lo para eliminar um inimigo. Pago o que pedir. Encontre-me às vinte horas embaixo da ponte da rodovia. Não falte!
Embora temeroso, como sempre, a curiosidade o impeliu a comparecer ao encontro.
Tratava-se de um empresário de sucesso na cidade que, tendo sido traído pela mulher com o sócio, resolvera eliminá-lo.
Ofereceu a ele, de início, cem mil reais; logo aumentando para duzentos mil, após a sua demora em responder.
O empresário já tinha tudo planejado e faltava-lhe, apenas, o executor para apertar o gatilho na hora certa.
Conquanto continuasse covarde, por necessitar urgentemente de dinheiro, já que não trabalhava e tinha acumulado inúmeras dívidas, resolveu aceitar o serviço, principalmente em razão do adiantamento de cinqüenta mil reais que o empresário lhe oferecia ali, na hora.
Com base no planejamento que o contratante havia fornecido, foi relativamente fácil desincumbir-se do serviço sem deixar pistas.
Após aquele telefonema outros se seguiram, em razão das ótimas referências dadas pelo empresário para amigos dele.
Atualmente o filho de seu Bernardino é sócio majoritário de uma empresa dedicada à eliminação de pessoas, com sede nas Bahamas.
Atende à pedidos de várias partes do mundo. Para contratar seus serviços, basta apenas ligar para determinado número de telefone, fornecer os dados da vítima, sua foto, endereço e depositar certa quantia, como adiantamento, em uma determinada conta corrente no exterior.
Em, no máximo, trinta dias o cliente poderá comprovar a eficácia do serviço, folheando as páginas criminais dos principais jornais da cidade.
O jovem reside, atualmente, em uma mansão na Califórnia, ao lado de astros e atrizes famosos.
Nunca mais voltou ao morro, onde seus pais ainda residem. Vez por outra, no Natal, manda para eles, pelo correio, uma cesta com produtos natalinos e votos de "Merry Christmas and Happy New Year".
(Continua em próximo texto)
_*/ Economista e Doutor pela Universidade de Madrid, Espanha.
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