210.
Os dias e as noites na vida de um carioca da periferia (XI)
Jober
Rocha*
Muitos leitores gostarão de saber acerca do desfecho do caso de Heleninha; entretanto, como grande mágico que sou, o sigilo profissional me impede de relatar tudo aquilo que tive que fazer para que as duas partes se encaixassem novamente. Digo, apenas, que nós (eu e as duas metades de Heleninha) tivemos que esperar alguns meses até o retorno do Mestre Maradon. Com as instruções que dele recebi, em algumas horas, consegui que Heleninha andasse novamente. Ela, todavia, me fez prometer que jamais repetiria aquela mágica com quem quer que fosse.
Assim, depois de passar algum tempo desfrutando
da ociosidade na comunidade em que morava, um belo dia, cansado da violência e
da vida agitada da cidade - principalmente logo após o desaparecimento do ‘dono
do morro’, ao pé do qual eu residia, sem deixar vestígios, durante invasão da
milícia que desejava se apropriar daquele local - eu disse, abruptamente, para
minha mulher que preparava o café da manhã:
- Heleninha, meu bem, já me decidi! Vamos nos mudar daqui!
- Heleninha, meu bem, já me decidi! Vamos nos mudar daqui!
Ela, apanhada de surpresa, ainda
tentou argumentar, porém fui inflexível:
- Vou colocar o barraco à venda e procurar uma casa tranquila em uma cidadezinha pequena do interior! Lá, vou arranjar um empreguinho, através dos meus amigos maçons, e até ganhar um dinheirinho extra!
- Vou colocar o barraco à venda e procurar uma casa tranquila em uma cidadezinha pequena do interior! Lá, vou arranjar um empreguinho, através dos meus amigos maçons, e até ganhar um dinheirinho extra!
Como
não tínhamos filhos, Heleninha acabou concordando. Em pouco tempo vendemos o barraco
e compramos uma casa modesta em Conceição do Mato Fora, no norte do Estado.
Através de meus contatos na maçonaria,
consegui um emprego de professor na Faculdade Matodentrense de Filosofia, única
em toda aquela vasta região, cujo curso era ministrado, de forma mais ou menos
amadorística, por vários professores. Alguns deles, como eu, nem formados eram.
Os alunos eram, em sua maioria,
oriundos do próprio município ou de municípios vizinhos e eu, que havia sido funcionário
público durante alguns anos, embora não soubesse, naquela época, quase nada de
Filosofia, achava que seria fácil, com minha experiência de morador da capital,
enrolar caipiras ignorantes que viviam no interior.
Em minha aula inaugural falei sobre as
dificuldades de moradia na cidade grande, sobre as crianças abandonadas, sobre
a violência, sobre a corrupção das autoridades, etc. Fazendo uma ligação entre
o que havia dito e a Filosofia, disse que aquilo tudo ocorria por que as
pessoas, de uma maneira geral, não eram amigas do conhecimento (filo = amigo,
sofia = conhecimento).
Associei o aquecimento global e os
movimentos sísmicos do planeta ao desconhecimento dos princípios filosóficos
pela maioria dos seres humanos; já que, a própria natureza, sem que o
soubéssemos, era comandada por tais princípios.
Finda a aula fui aplaudido pelos
presentes que, não tendo entendido nada, julgaram ser aquilo normal, já que
sempre haviam ouvido dizer que Filosofia era uma coisa complicada.
Após a aula inaugural acreditei que seria bem
fácil conduzir aquelas exposições até o final do ano letivo. Na véspera de cada
uma, selecionaria algum assunto do jornal do dia anterior e pronto, com um
pouco de improvisação, a aula estaria concluída. Passei, a partir de então, a
denominar-me não mais professor Zeca Nalha, mas sim, conferencista doutor professor emérito Zeca Nalha.
Certo dia ao cortar o cabelo na
barbearia local, recebi, entregue por um mensageiro da faculdade, correspondência
a mim destinada, remetida pelo Ministério da Educação e que versava sobre o programa
de aulas, recentemente aprovado pelo ministro, para as Faculdades de Filosofia
de todo o país. Ao abrir o envelope meu coração acelerou.
Naquela ocasião tive um mau
pressentimento e nem quis abrir o envelope, porém, segui em frente. Ao ler o conteúdo tomei ciência de que
o roteiro que deveria adotar para minhas aulas, daquele momento em diante, até
o término do ano letivo, consistia em discorrer sobre os seguintes filósofos e
suas teorias:
Filosofia
Helênica
.Pré-Socráticos
Monistas (Tales de Mileto, Anaximando, Anaxímenes, Pitágoras, Heráclito, Parmênides
e Zenão);
.Pluralistas
(Empédocles, Anaxágoras, Leucipo e Demócrito);
.Sofistas
(Protágoras, Górgias e Pródico);
.Sócrates;
.Platão;
e
.Aristóteles.
Filosofia
Romana
.Epicurismo
(Epicuro);
.Estoicismo
(Zenão de Citio);
.Ceticismo
(Pirro de Elis);
.Neoplatonísmo
(Plotino de Alexandria);
.Cínicos
(Antístenes e Diógenes) e
.Ecléticos
(Cícero).
Filosofia
Medieval
.Agostinho
de Hippo;
.Anselmo
de Canterbury;
.Tomás
de Aquino;
.João
Duns Escoto;
.Roger
Bacon e
.Willian
de Ockhan.
Filosofia
da Renascença
.Volta
do Neoplatonismo (Aristóteles, Estóicos, Epicuristas e Atomistas);
.Cosimo
de Médici;
.Nicolau
de Cusa;
.Bernardino
Telésio;
.Giordano
Bruno; e
.Nicolo
Maquiavel.
Humanismo
.Francesco
Petrarca;
.Erasmo
de Roterdan; e
.Thomas
Morus.
Reforma
Protestante
.Martinho
Lutero; e
.João
Calvino.
Revolução
Científica
.Heliocentrismo
(Nicolau Copérnico, Johanes Kepler e Galileu Galilei);
.Imprensa
(Johanes Gutemberg).
Renascença
.Francis
Bacon;
.René
Descartes;
.Thomas Hobbes;
.Baruch Spinoza; e
.Gottfried Leibniz.
Empirismo
Inglês
.John
Locke;
.George
Berkeley; e
.David
Hume.
Iluminismo
Francês
.Montesquieu;
.Voltaire;
e
.Jean
Jacques Rousseau.
Idealismo Germânico
.Immanuel Kant;
.Johann Gottlieb Fichte;
.Friedrich Wilhelm Josef von
Schelling;
.George W.F. Hegel;
.Arthur Schopenhauer; e
.Friedrich Wilhelm Nietzsche.
Utilitarismo
.Jeremy Bentham; e
.John Stuart Mill.
Transcendentalísmo
Americano
.Ralph Waldo Emerson;
.Henry David Thoreau;
.William Ellery Chaning; e
.Amos Bronson Alcott
Existencialismo
.Edmund Husserl;
.Soren Kierkegaard;
.Martin Heidegger;
.Albert
Camus; e
.Jean
Paul Sartre.
Filósofos
Europeus Contemporâneos
.Henri Bergson;
.Benedeto Croce;
.Ludwig Josef Johan
Wittgenstein;
.Michel
Foucault;
.Jacques
Derrida; e
.Bertrand
Russell.
Filósofos
Americanos Contemporâneos
.George Santayana;
.William James; e
.John Dewey.
Sociologia,
Antropologia e Psicologia
.Karl
Marx;
.Max Weber;
.Émile Durkheim;
.Sigmund Freud;
.Carl Gustav Jung;
.John Watson;
.B.F.Skinner;
.Alfred Adler;
.William James; e
.Jean Piaget.
A contemplação daquela enorme relação
de nomes, dos quais nunca antes ouvira falar, deixou-me totalmente fora de mim.
Uma ânsia de vômito, seguida de tiques nervosos, acompanhou-me até o final do
dia.
Durante aquela noite não consegui
dormir. Fiquei rolando pela cama, imaginando como faria para inteirar-me sobre
quem seriam aqueles filósofos e acerca do que haveriam filosofado. A relação
era tão grande que, mesmo com a ajuda dos amigos e da maçonaria, jamais
conseguiria estudá-los todos para saber o que pensavam e sobre o que haviam
escrito.
Não sabia nem por onde começar. Pensei
em desistir de tudo, vender a casa e mudar-me de novo para a capital.
Heleninha, ao ver-me naquele estado
depressivo, sugeriu que desse um passeio até as margens do rio Mato Fora, que
cortava o município de norte a sul.
Sentado
na mureta da ponte sobre o rio, pensando firmemente em atirar-me nas suas
caudalosas águas, fui, subitamente, acometido de luminosa ideia. Afinal, não
precisaria saber de cada autor nada mais do que o simples nome. Bastaria saber
alguma coisa sobre um deles, Sócrates, por exemplo.
Cada vez que tivesse de falar sobre
algum outro, daria um jeito de acabar me referindo ao Sócrates para, em
seguida, finalizar a aula falando tudo o que sabia sobre este filósofo grego. Feliz
da vida retornei à casa para preparar a aula de sexta-feira.
Naquela aula, segundo o programa que
havia recebido do ministério, deveria falar sobre os Pré-Socráticos. Fiquei até
altas horas da noite preparando meu material, que consistia em um pequeno livro
para crianças, falando sobre a vida do filósofo quando pequeno e sobre sua
morte, além de uma coleção antiga do ‘Jornal dos Esportes’ que continha tudo sobre
a vida do jogador de futebol Sócrates, do Corinthians, que havia sido campeão
mundial jogando pela Seleção Brasileira.
Na manhã de sexta-feira dirigi-me para
a sala de aula, onde os alunos já me aguardavam. Ocorre que, justamente naquele
dia,dois fatos imponderáveis sucederam. Primeiramente o Grão Mestre Geral da Ordem
Maçônica, em visita à Loja Maçônica local e sabedor de que um maçom era
professor de Filosofia na faculdade do município, resolvera prestigiá-lo assistindo
sua aula.
Em segundo lugar o funcionário do
Ministério da Educação, responsável pela fiscalização do cumprimento dos
programas curriculares das Faculdades de Filosofia, encontrava-se de passagem
pelo município e resolvera verificar a qualidade do curso ministrado na
Faculdade Matodentrense.
Dei início à aula argumentando que
aquela seria uma conferência que faria em homenagem ao Grão Mestre da Maçonaria
e ao alto funcionário federal, ali presentes. Comecei por mencionar que era, realmente,
uma pena que os filósofos Pré-Socráticos não houvessem nascido depois de
Sócrates. Se pudessem ter-se baseado naquilo que Sócrates disse, não teriam
ficado por aí falando sozinhos, dizendo às tolices que disseram, acrescentei.
Enquanto eu falava, disfarçadamente,
percorria a sala com olhar atento, buscando captar qualquer gesto ou movimento
que indicasse aprovação ou reprovação sobre àquilo que dizia.
Continuando, afirmei que Sócrates era
tão bom que havia feito parte da Seleção de Filósofos que participara da Copa
Mundial de Filosofia, realizada pela primeira vez na Grécia. Infelizmente,
acrescentei, a inveja dos companheiros, com relação ao seu talento e aos tentos
que marcara, levou-o à morte.
Julgado pelos cartolas gregos,
afirmei, foi condenado a tomar um veneno mortal. Sócrates, entretanto, era um
verdadeiro profissional em tudo o que fazia.
Para ingerir o veneno, uma espécie de
remédio para ratos que existia na Grécia, exigiu um cálice de cristal dos mais caros.
Como o veneno era muito amargo, solicitou ao carrasco duas colheres e meia de
açúcar, além de uma colherinha de ouro para mexer o mesmo. Tomou tudo sem fazer
careta, segurando a taça com a mão direita e levantando o dedo mindinho bem
alto.
A esta altura, imaginava o Grão Mestre
da Ordem pensando consigo mesmo: - Que excelente professor, conhece tudo sobre o
assunto! Quem será o irmão Maçom que o indicou para o cargo? Vou averiguar para
felicitá-lo!
O alto funcionário do ministério, que
observei tomando notas em um bloco de papel, certamente deveria estar pensando
em providenciar, urgentemente, maiores verbas para aquela faculdade, tão logo
retornasse a Brasília, haja vista a excelente qualidade do seu corpo docente.
Os alunos, embora não soubessem quase
nada sobre a matéria, deveriam estar maravilhados com tamanha demonstração de
conhecimento filosófico, posto haver descido a tantos e a tão pequenos detalhes.
Empolgado, prossegui: - Sócrates, o
campeão dos campeões, deixou um verdadeiro vazio nos verdes gramados da
Filosofia, após sua partida! Nunca antes alguém havia driblado, tão bem, a
busca pelo conhecimento como ele fez e, verdade seja dita, sem técnico algum
para orientá-lo!
Felizmente, argumentei, não tinha para
persegui-lo uma Confederação Burocrática de Filosofia (CBF) ou uma Federação
Internacional de Filosofia Amadora (FIFA), que vivessem apontando falhas e inconsistências
suas.
Para finalizar a conferência fiz breve
referência aos sucessores de Sócrates, afirmando: - Senhores, hoje o que se vê
por aí não passa de mediocridade filosófica. Os novos filósofos são verdadeiros
pernas-de-pau, comparados com Sócrates. Nenhum deles sabe levantar uma hipótese
ou teoria e mantê-la no ar por muito tempo.
Muito daquilo que ensinam não passam de
verdadeiros chutes, que a própria trave da verdade se encarrega de rebater e
desmentir. O filósofo de hoje não sabe trabalhar mais em equipe, querendo ser o
único a receber todos os méritos quando coloca sua teoria, redondinha, dentro
da rede da história.
Meus amigos, senhor Grão Mestre e
senhor funcionário federal, tenho dito!
Curvei-me, a seguir, com humildade,
para agradecer os aplausos que esperava ouvir dos presentes.
Sai dali, pouco depois, em uma
ambulância do Posto Médico Municipal, direto para uma casa de repouso
psiquiátrico.
A estrondosa vaia que recebi, após terminar
a conferência, foi ouvida até no centro da cidade, conforme relataram ao jornal
‘Correio Matodentrense’ alguns moradores mais antigos. Tomado por súbita crise
de choro tive de ser contido, pois ameacei atirar-me da janela daquele terceiro
andar.
Dizem, porque não me lembro de nada,
que ao ser levado para o interior da ambulância, ainda murmurava baixinho:
-Sócrates, meu filho, esteja onde
estiver, vê se me ajuda aí o cara!
(Continua em próximo texto)
_*/
Economista e Doutor pela Universidade de Madrid, Espanha.
Nenhum comentário:
Postar um comentário