segunda-feira, 7 de maio de 2018


210. Os dias e as noites na vida de um carioca da periferia (XI)

Jober Rocha*


                                                                                  Muitos leitores gostarão de saber acerca do desfecho do caso de Heleninha; entretanto, como grande mágico que sou, o sigilo profissional me impede de relatar tudo aquilo que tive que fazer para que as duas partes se encaixassem novamente. Digo, apenas, que nós (eu e as duas metades de Heleninha) tivemos que esperar alguns meses até o retorno do Mestre Maradon. Com as instruções que dele recebi, em algumas horas, consegui que Heleninha andasse novamente. Ela, todavia, me fez prometer que jamais repetiria aquela mágica com quem quer que fosse.

                                           Assim, depois de passar algum tempo desfrutando da ociosidade na comunidade em que morava, um belo dia, cansado da violência e da vida agitada da cidade - principalmente logo após o desaparecimento do ‘dono do morro’, ao pé do qual eu residia, sem deixar vestígios, durante invasão da milícia que desejava se apropriar daquele local - eu disse, abruptamente, para minha mulher que preparava o café da manhã:

 - Heleninha, meu bem, já me decidi! Vamos nos mudar daqui!

                                             Ela, apanhada de surpresa, ainda tentou argumentar, porém fui inflexível: 

- Vou colocar o barraco à venda e procurar uma casa tranquila em uma cidadezinha pequena do interior! Lá, vou arranjar um empreguinho, através dos meus amigos maçons, e até ganhar um dinheirinho extra!
                                                        Como não tínhamos filhos, Heleninha acabou concordando. Em pouco tempo vendemos o barraco e compramos uma casa modesta em Conceição do Mato Fora, no norte do Estado.

                                                Através de meus contatos na maçonaria, consegui um emprego de professor na Faculdade Matodentrense de Filosofia, única em toda aquela vasta região, cujo curso era ministrado, de forma mais ou menos amadorística, por vários professores. Alguns deles, como eu, nem formados eram.

                                                   Os alunos eram, em sua maioria, oriundos do próprio município ou de municípios vizinhos e eu, que havia sido funcionário público durante alguns anos, embora não soubesse, naquela época, quase nada de Filosofia, achava que seria fácil, com minha experiência de morador da capital, enrolar caipiras ignorantes que viviam no interior.

                                            Em minha aula inaugural falei sobre as dificuldades de moradia na cidade grande, sobre as crianças abandonadas, sobre a violência, sobre a corrupção das autoridades, etc. Fazendo uma ligação entre o que havia dito e a Filosofia, disse que aquilo tudo ocorria por que as pessoas, de uma maneira geral, não eram amigas do conhecimento (filo = amigo, sofia = conhecimento).
                                            Associei o aquecimento global e os movimentos sísmicos do planeta ao desconhecimento dos princípios filosóficos pela maioria dos seres humanos; já que, a própria natureza, sem que o soubéssemos, era comandada por tais princípios.
                                                  Finda a aula fui aplaudido pelos presentes que, não tendo entendido nada, julgaram ser aquilo normal, já que sempre haviam ouvido dizer que Filosofia era uma coisa complicada.
                                                    Após a aula inaugural acreditei que seria bem fácil conduzir aquelas exposições até o final do ano letivo. Na véspera de cada uma, selecionaria algum assunto do jornal do dia anterior e pronto, com um pouco de improvisação, a aula estaria concluída. Passei, a partir de então, a denominar-me não mais professor Zeca Nalha, mas sim, conferencista doutor professor emérito Zeca Nalha.

                                             Certo dia ao cortar o cabelo na barbearia local, recebi, entregue por um mensageiro da faculdade, correspondência a mim destinada, remetida pelo Ministério da Educação e que versava sobre o programa de aulas, recentemente aprovado pelo ministro, para as Faculdades de Filosofia de todo o país. Ao abrir o envelope meu coração acelerou.
                                               Naquela ocasião tive um mau pressentimento e nem quis abrir o envelope, porém, segui em frente. Ao ler o conteúdo tomei ciência de que o roteiro que deveria adotar para minhas aulas, daquele momento em diante, até o término do ano letivo, consistia em discorrer sobre os seguintes filósofos e suas teorias:

Filosofia Helênica

.Pré-Socráticos Monistas (Tales de Mileto, Anaximando, Anaxímenes, Pitágoras, Heráclito, Parmênides e Zenão);
.Pluralistas (Empédocles, Anaxágoras, Leucipo e Demócrito);
.Sofistas (Protágoras, Górgias e Pródico);
.Sócrates;
.Platão; e
.Aristóteles.

Filosofia Romana

.Epicurismo (Epicuro);
.Estoicismo (Zenão de Citio);
.Ceticismo (Pirro de Elis);
.Neoplatonísmo (Plotino de Alexandria);
.Cínicos (Antístenes e Diógenes) e
.Ecléticos (Cícero).

Filosofia Medieval

.Agostinho de Hippo;
.Anselmo de Canterbury;
.Tomás de Aquino;
.João Duns Escoto;
.Roger Bacon e
.Willian de Ockhan.

Filosofia da Renascença

.Volta do Neoplatonismo (Aristóteles, Estóicos, Epicuristas e Atomistas);
.Cosimo de Médici;
.Nicolau de Cusa;
.Bernardino Telésio;
.Giordano Bruno; e
.Nicolo Maquiavel.

Humanismo

.Francesco Petrarca;
.Erasmo de Roterdan; e
.Thomas Morus.

Reforma Protestante

.Martinho Lutero; e
.João Calvino.

Revolução Científica

.Heliocentrismo (Nicolau Copérnico, Johanes Kepler e Galileu Galilei);
.Imprensa (Johanes Gutemberg).

Renascença

.Francis Bacon;
.René Descartes;
.Thomas Hobbes;
.Baruch Spinoza; e
.Gottfried Leibniz.

Empirismo Inglês

.John Locke;
.George Berkeley; e
.David Hume.

Iluminismo Francês

.Montesquieu;
.Voltaire; e
.Jean Jacques Rousseau.

Idealismo Germânico

.Immanuel Kant;
.Johann Gottlieb Fichte;
.Friedrich Wilhelm Josef von Schelling;
.George W.F. Hegel;
.Arthur Schopenhauer; e
.Friedrich Wilhelm Nietzsche.

Utilitarismo

.Jeremy Bentham; e
.John Stuart Mill.

Transcendentalísmo Americano
.Ralph Waldo Emerson;
.Henry David Thoreau;
.William Ellery Chaning; e
.Amos Bronson Alcott

Existencialismo

.Edmund Husserl;
.Soren Kierkegaard;
.Martin Heidegger;
.Albert Camus; e
.Jean Paul Sartre.

Filósofos Europeus Contemporâneos

.Henri Bergson;
.Benedeto Croce;
.Ludwig Josef Johan Wittgenstein;
.Michel Foucault;
.Jacques Derrida; e
.Bertrand Russell.

Filósofos Americanos Contemporâneos

.George Santayana;
.William James; e
.John Dewey.

Sociologia, Antropologia e Psicologia

.Karl Marx;
.Max Weber;
.Émile Durkheim;
.Sigmund Freud;
.Carl Gustav Jung;
.John Watson;
.B.F.Skinner;
.Alfred Adler;
.William James; e
.Jean Piaget.

                                              A contemplação daquela enorme relação de nomes, dos quais nunca antes ouvira falar, deixou-me totalmente fora de mim. Uma ânsia de vômito, seguida de tiques nervosos, acompanhou-me até o final do dia.

                                                  Durante aquela noite não consegui dormir. Fiquei rolando pela cama, imaginando como faria para inteirar-me sobre quem seriam aqueles filósofos e acerca do que haveriam filosofado. A relação era tão grande que, mesmo com a ajuda dos amigos e da maçonaria, jamais conseguiria estudá-los todos para saber o que pensavam e sobre o que haviam escrito.
                                                    Não sabia nem por onde começar. Pensei em desistir de tudo, vender a casa e mudar-me de novo para a capital.
                                              Heleninha, ao ver-me naquele estado depressivo, sugeriu que desse um passeio até as margens do rio Mato Fora, que cortava o município de norte a sul.
                                                             Sentado na mureta da ponte sobre o rio, pensando firmemente em atirar-me nas suas caudalosas águas, fui, subitamente, acometido de luminosa ideia. Afinal, não precisaria saber de cada autor nada mais do que o simples nome. Bastaria saber alguma coisa sobre um deles, Sócrates, por exemplo.
                                                      Cada vez que tivesse de falar sobre algum outro, daria um jeito de acabar me referindo ao Sócrates para, em seguida, finalizar a aula falando tudo o que sabia sobre este filósofo grego. Feliz da vida retornei à casa para preparar a aula de sexta-feira.
                                                     Naquela aula, segundo o programa que havia recebido do ministério, deveria falar sobre os Pré-Socráticos. Fiquei até altas horas da noite preparando meu material, que consistia em um pequeno livro para crianças, falando sobre a vida do filósofo quando pequeno e sobre sua morte, além de uma coleção antiga do ‘Jornal dos Esportes’ que continha tudo sobre a vida do jogador de futebol Sócrates, do Corinthians, que havia sido campeão mundial jogando pela Seleção Brasileira.
                                                     Na manhã de sexta-feira dirigi-me para a sala de aula, onde os alunos já me aguardavam. Ocorre que, justamente naquele dia,dois fatos imponderáveis sucederam. Primeiramente o Grão Mestre Geral da Ordem Maçônica, em visita à Loja Maçônica local e sabedor de que um maçom era professor de Filosofia na faculdade do município, resolvera prestigiá-lo assistindo sua aula.
                                               Em segundo lugar o funcionário do Ministério da Educação, responsável pela fiscalização do cumprimento dos programas curriculares das Faculdades de Filosofia, encontrava-se de passagem pelo município e resolvera verificar a qualidade do curso ministrado na Faculdade Matodentrense.
                                                Dei início à aula argumentando que aquela seria uma conferência que faria em homenagem ao Grão Mestre da Maçonaria e ao alto funcionário federal, ali presentes. Comecei por mencionar que era, realmente, uma pena que os filósofos Pré-Socráticos não houvessem nascido depois de Sócrates. Se pudessem ter-se baseado naquilo que Sócrates disse, não teriam ficado por aí falando sozinhos, dizendo às tolices que disseram, acrescentei.
                                               Enquanto eu falava, disfarçadamente, percorria a sala com olhar atento, buscando captar qualquer gesto ou movimento que indicasse aprovação ou reprovação sobre àquilo que dizia.
                                                      Continuando, afirmei que Sócrates era tão bom que havia feito parte da Seleção de Filósofos que participara da Copa Mundial de Filosofia, realizada pela primeira vez na Grécia. Infelizmente, acrescentei, a inveja dos companheiros, com relação ao seu talento e aos tentos que marcara, levou-o à morte.
                                                 Julgado pelos cartolas gregos, afirmei, foi condenado a tomar um veneno mortal. Sócrates, entretanto, era um verdadeiro profissional em tudo o que fazia.
                                               Para ingerir o veneno, uma espécie de remédio para ratos que existia na Grécia, exigiu um cálice de cristal dos mais caros. Como o veneno era muito amargo, solicitou ao carrasco duas colheres e meia de açúcar, além de uma colherinha de ouro para mexer o mesmo. Tomou tudo sem fazer careta, segurando a taça com a mão direita e levantando o dedo mindinho bem alto.
                                                A esta altura, imaginava o Grão Mestre da Ordem pensando consigo mesmo: - Que excelente professor, conhece tudo sobre o assunto! Quem será o irmão Maçom que o indicou para o cargo? Vou averiguar para felicitá-lo!
                                              O alto funcionário do ministério, que observei tomando notas em um bloco de papel, certamente deveria estar pensando em providenciar, urgentemente, maiores verbas para aquela faculdade, tão logo retornasse a Brasília, haja vista a excelente qualidade do seu corpo docente.
                                                    Os alunos, embora não soubessem quase nada sobre a matéria, deveriam estar maravilhados com tamanha demonstração de conhecimento filosófico, posto haver descido a tantos e a tão pequenos detalhes.

                                             Empolgado, prossegui: - Sócrates, o campeão dos campeões, deixou um verdadeiro vazio nos verdes gramados da Filosofia, após sua partida! Nunca antes alguém havia driblado, tão bem, a busca pelo conhecimento como ele fez e, verdade seja dita, sem técnico algum para orientá-lo!
                                                 Felizmente, argumentei, não tinha para persegui-lo uma Confederação Burocrática de Filosofia (CBF) ou uma Federação Internacional de Filosofia Amadora (FIFA), que vivessem apontando falhas e inconsistências suas.
                                             Para finalizar a conferência fiz breve referência aos sucessores de Sócrates, afirmando: - Senhores, hoje o que se vê por aí não passa de mediocridade filosófica. Os novos filósofos são verdadeiros pernas-de-pau, comparados com Sócrates. Nenhum deles sabe levantar uma hipótese ou teoria e mantê-la no ar por muito tempo.
                                                    Muito daquilo que ensinam não passam de verdadeiros chutes, que a própria trave da verdade se encarrega de rebater e desmentir. O filósofo de hoje não sabe trabalhar mais em equipe, querendo ser o único a receber todos os méritos quando coloca sua teoria, redondinha, dentro da rede da história.
                                                 Meus amigos, senhor Grão Mestre e senhor funcionário federal, tenho dito!
                                                Curvei-me, a seguir, com humildade, para agradecer os aplausos que esperava ouvir dos presentes.
                                                Sai dali, pouco depois, em uma ambulância do Posto Médico Municipal, direto para uma casa de repouso psiquiátrico.
                                                  A estrondosa vaia que recebi, após terminar a conferência, foi ouvida até no centro da cidade, conforme relataram ao jornal ‘Correio Matodentrense’ alguns moradores mais antigos. Tomado por súbita crise de choro tive de ser contido, pois ameacei atirar-me da janela daquele terceiro andar.
                                                      Dizem, porque não me lembro de nada, que ao ser levado para o interior da ambulância, ainda murmurava baixinho:

-Sócrates, meu filho, esteja onde estiver, vê se me ajuda aí o cara!



(Continua em próximo texto)




_*/ Economista e Doutor pela Universidade de Madrid, Espanha.



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