terça-feira, 8 de maio de 2018

215. Os dias e as noites na vida de um carioca da periferia ( XVI)


Jober Rocha*



                                             Certa feita, conversando com um amigo da favela, desempregado como eu, contou-me ele a história da sua vida, que muito me emocionou. 
                                                            Tinha sido condenado a 20 anos de prisão por um crime que, segundo afirmava, não cometera. Viveu no presídio, em cela isolada, por quase 12 anos. Nos poucos momentos destinados ao banho de sol, misturava-se com outros detentos, em sua maioria desesperados por haverem perdido a liberdade; alguns, até mesmo, quase dementes. 
                                                          Costumava dizer, a todos os companheiros de cárcere, que o Estado havia prendido apenas o seu corpo e que sua alma era e sempre seria livre. 
                                                             No interior da cela onde ficava, logo que a porta era fechada, sua mente (que já estava comprometida pela solidão do cárcere) viajava por lugares distantes. Imaginava mil locais, acontecimentos e diálogos. Nunca estava só, tendo sempre por companhia, em sua mente, homens e mulheres agradáveis com os quais convivia, conversando e interagindo. Assim, passaram-se os dias, meses e anos. 
                                                          Em uma noite quente de verão foi acordado pelo carcereiro, ordenando-lhe que se aprontasse para uma entrevista com o diretor. 
                                                         Conduzido à presença deste, foi-lhe dito que haviam descoberto o verdadeiro culpado pelo crime que lhe atribuíram e, por conseguinte, estava sendo libertado naquela ocasião. 
                                                          Abriram então os portões, no dia seguinte, e ele voltou para seu barraco. Como chegou cedo, resolveu ir a uma praia próxima na qual não pisava há mais de 12 anos. 
                                                        Após passar a manhã e a tarde tomando sol e banho de mar, retornou para o barraco no morro ao anoitecer. Após jantar e ver um pouco de TV, recolheu-se para dormir. 

                                                        A noite inteira sonhou com sua cela na prisão. Nos dias, meses e anos que se seguiram, dia e noite, não conseguia tirar de sua mente a velha cela onde passara tantos anos como recluso. 
                                                            Segundo me confessou, com lágrimas nos olhos, o Estado, ao soltar naquele dia o seu corpo, havia, finalmente, conseguido prender a sua alma. 


                                                           Mudando de assunto, quando jovem eu participei de uma Escola de Samba do bairro, tendo chegado até a fazer parte da diretoria. Ali fiz grandes amigos e formávamos um grupo unido, de cerca de 40 antigos integrantes, todos residentes na própria comunidade ou em bairros próximos. 
Na atualidade, a maioria possuía entre 60 e 70 anos, residiam em bairros distintos e, com regularidade, nos encontrávamos há vários anos no bar do seu Manoel, no centro da cidade, todas as primeiras sextas-feiras dos meses do ano. 
                                                           Eu, pela casa dos 62 anos, naquela ocasião, era um dos mais novos do grupo e nunca havia faltado a um único encontro; embora, na oportunidade, estivesse residindo longe do centro da cidade, em local incerto e não sabido pelos demais amigos, em razão de haverem sido expedidos alguns mandados de busca e apreensão, relativos à minha pessoa, pelo Juiz da comarca, em inquérito relativo ao falecimento acidental de Heleninha, minha ex-mulher, e no qual uma testemunha, totalmente desqualificada e sem credibilidade alguma, afirmava haver me reconhecido ao volante de um carro sem placa, estacionado durante a noite em uma rua mal iluminada perto de nossa casa. 
                                                        Sempre fui um dos mais animados, a lembrar aos demais, por telefone, logo na segunda-feira, o encontro da próxima sexta. 
                                                             Foi, pois, com surpresa que notaram a minha ausência, freqüente, a partir de certo momento. Após três vezes consecutivas sem aparecer, um dos colegas, incumbido pelos demais da missão de resgate do companheiro, foi à minha casa para verificar a razão do sumiço: Estaria doente? Passaria por dificuldades financeiras? Tais perguntas eram sempre formuladas pelos demais companheiros, conforme vim saber mais tarde. 
                                                          Recebi o amigo com toda cortesia, servindo-lhe um uísque duplo, e questionei o motivo da inesperada visita. 
                                                           O amigo explicou que, em razão de todos no grupo sentirem a minha falta, haviam pedido a ele que, por residir próximo e o único sabedor do meu real paradeiro, fosse averiguar o que ocorria. 
                                                   Tomei um gole do uísque e, falando calmamente, respondi: 
                                                - Sabe o que é Ariovaldo, eu estou totalmente sem ambiente no grupo. Toda a vez que vou aos encontros e me sento em uma mesa, os colegas estão falando de política. Troco de mesa e, nesta outra onde me sento, estão falando de religião ou de doenças. 
                                                          - Você sabe bem que nenhum desses assuntos me interessa. O que eu gosto mesmo é de conversar sobre mulheres, porém, toda vez que puxo esse assunto, sinto que me olham com desdém e mudam logo de conversa ou de lugar. 
                                                        - Imagine você que uma vez, após haver comentado sobre a nova empregadinha que minha mulher, Carmem Lúcia, havia contratado e com quem vivia sempre enfurnada no quarto de empregada  (uma morena novinha com coxas grossas, cintura fina e seios durinhos) um colega nosso, levantando-se para mudar de mesa, dirigiu-se aos demais exclamando: - Mas que cara chato! Só fala de mulheres! 
                                                        - Assim, notei que não tenho boa receptividade no grupo e, por isso, não vou mais! 
                                                             No exato momento em que eu falava, entrou em casa a filha da vizinha, morena de corpo escultural e trajando um short curtinho e blusa sem sutiã, aberta na frente. Pisquei o olho para Ariovaldo e disse que ela havia vindo a minha casa para saber se eu não estava precisando de alguma coisa, como ela fazia todos os dias. 
                                                        Eu respondi, na ocasião, que estava precisando muito de determinada coisa e que ela sabia bem do que se tratava.  Pedi a filha da vizinha que aguardasse a saída do meu amigo.
                                                           Ariovaldo, que até então me ouvira calado, deu um gole no seu copo, levantou e despediu-se, alegando já ser tarde e não querer mais me incomodar. 
                                                         Na saída, enquanto descia a escada que conduz ao sopé do morro, ainda pude ouvi-lo murmurar entre dentes: 
                                                              - Puxa, mas como esse cara é chato, só fala de mulher!


                                                          Naquela ocasião, pelas razões já expostas anteriormente, eu morava em uma distante comunidade, para onde me mudara em razão, dentre outras coisas, de assédios constantes, sofridos no endereço anterior, por parte de cobradores de certas dívidas que eu desconhecia e que, segundo me parecia, referiam-se a débitos com despesas médicas realizadas, em um passado remoto, no interior do Estado. Imagino que ainda procuravam um homônimo meu, que devia morar naquele mesmo bairro ou em bairro próximo. 
                                                                Eu trabalhava alguns dias no centro da cidade, fazendo bico, em uma firma de ‘telemarketing’ e me dirigia para o trabalho sempre em meu fusquinha branco, que deixava estacionado no sopé do morro. O carro possuía uma chave extra, que ficava durante a noite com um morador que alugava meu veículo. Não seu qual a atividade que desenvolvia no carro, mas lembro-me de haver encontrado em seu interior, por várias vezes, camisinhas usadas, pacotes de um pó branco que parecia talco e pacotes de determinada erva marrom que parecia erva-mate.
                                                          No morro eu tinha um amigo que morava em barraco próximo e que também trabalhava no centro, como zelador. Pela manhã, o vizinho me procurara pedindo carona até o centro, já que estava atrasado. 
                                                            Atendendo ao pedido do amigo dirigi-me com ele, como sempre fazia, pelo caminho mais curto para o trabalho. 
                                                           Naquele dia, entretanto, por causa de um acidente mais à frente, a estrada, que era de mão dupla, estava completamente congestionada. 
                                                            Ficamos vários minutos parados e o trânsito não fluía. Notando, porém, que o engarrafamento era apenas no sentido do centro da cidade, ocorreu-me voltar e pegar outra estrada que, embora mais longa, deveria estar mais vazia naquela hora. 
                                                                  Estávamos parados na via em frente a um Motel, situado à esquerda, chamado Palácio da Luxúria. Como não dava para fazer a volta na própria estrada, resolvi entrar pelo portão aberto do motel, fazer a volta lá dentro e sair pelo mesmo portão, em direção contrária ao fluxo que ia para o centro. 
                                                          Foi exatamente o que fiz. Só que, na saída do motel, parando no portão para esperar um carro que passava na hora, dei de cara com o meu chefe e com alguns colegas de trabalho. Todos, em um mesmo veículo, estavam parados na pista em direção ao centro, em razão do engarrafamento, bem em frente ao motel. 
                                                              Eles me reconheceram de imediato e, sem nada dizer, apenas sorriram em minha direção. 
                                                            Os sorrisos que me dirigiram, compreendi logo o que significavam ao perceber que haviam visto o amigo a meu lado, amigo este a quem desconheciam, e nós dois saindo juntos, pela manhã, de um motel. 
                                                               Ao chegar ao trabalho mais tarde, já que a outra estrada que tomara como alternativa também estava congestionada, notei que todos me olhavam de maneira estranha, alguns até com risinhos disfarçados. Tive, inclusive, a impressão de haver ouvido por detrás de uma porta fechada, alguém às gargalhadas dizendo: - Aquele cara nunca me enganou!


(continua em próximo capítulo)


_*/ Economista e Doutor pela Universidade de Madrid, Espanha.


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