segunda-feira, 7 de maio de 2018



212. Os dias e as noites na vida de um carioca da periferia (XIII)

Jober Rocha*


                                                             Doutor Clarindo era o único médico naquele pequeno Posto de Saúde, localizado próximo de meu barraco, na comunidade onde eu vivia há pouco tempo, bastante afastada do centro da cidade. Havia me mudado para esta nova casa em razão de grave revés financeiro e, além disto, no endereço anterior era constantemente incomodado por oficiais de justiça me intimando para que prestasse depoimentos no Fórum, sobre supostas dívidas de um homônimo, provavelmente, residente nas imediações da minha residência.
                                                  O Doutor Clarindo já trabalhava naquele posto há quase 15 anos. Conhecia todo mundo por ali e, em certa ocasião, instado por amigos, resolveu candidatar-se a vaga de prefeito nas eleições que se aproximavam. Para tanto, necessitava de um cabo eleitoral que cabalasse votos para ele.
                                           Passei a ser seu amigo após o tratamento que realizou em Cleonice Barbosa, minha nova mulher depois da morte de Heleninha em um acidente de trânsito até agora inexplicado, quando um veículo não identificado, saído não sabem de onde, atropelou-a em uma noite chuvosa. Eu não estava em casa naquela noite, razão pela qual não posso dar mais detalhes sobre a fatídica ocorrência. 
                                        Como Clarindo receitava para Barbosa, a pedido desta, substâncias químicas anabolizantes para desenvolver a musculatura dos braços e  das pernas, ofereci-me para ser o cabo eleitoral dele; principalmente porque, naquela ocasião, meu tempo ocioso era muito grande e precisava de umas caminhadas, por ordem médica do próprio Clarindo, que me empurrava para fora de casa sempre que visitava Barbosa (que era como minha mulher gostava de ser chamada), para verificar o efeito do tratamento químico que lhe havia prescrito.
                                              Próximo à data marcada para a eleição, começaram a ser realizados comícios em palanque, montado junto à Igreja matriz, para onde toda a população se dirigia, à noite, a fim de ouvir os candidatos.
                                           Certa ocasião, Doutor Clarindo havia iniciado a alocução falando sobre seus planos para a nova administração, que faria à frente da prefeitura, quando, conforme havíamos combinado, eu o interrompi segredando-lhe algo ao ouvido.

                                             O Doutor Clarindo, em seguida, pediu desculpas aos presentes dizendo que teria que ausentar-se, por razões profissionais, para atender a uma paciente grave que necessitava de seus cuidados no posto médico.
                                            Saiu, deixando-me com o microfone na mão sem saber o que fazer, pois o que faríamos a seguir não havia sido combinado antecipadamente entre nós.
                                                 Querendo ajudar o amigo, cabalando votos para ele, naquela oportunidade, tomei da palavra e comecei dizendo:
                                     - Meus amigos, só duas pessoas no mundo poderiam salvar Dona Risoleta que está lá no posto passando mal: Jesus Cristo e o Doutor Clarindo. Jesus Cristo nem apareceu aqui, até agora, para ver como ela estava; mas o doutor Clarindo foi lá fazer a sua parte. O Doutor Clarindo, além disto, é amigo do atual prefeito e mantém relações com a esposa dele!
                                         Vendo, a seguir, que muitos ouvintes começavam a rir do que eu havia dito, corrigi-me: - Mas não são essas relações que vocês estão pensando, não. São outras relações, iguais às que ele mantém, dentro do consultório, com as esposas e filhas de muita gente boa aqui presente, da comunidade.
                                                 Percebi que os ânimos começaram a se exaltar junto à platéia e ouvi, até, alguns palavrões e comentários jocosos; porém não me importei com os comentários e continuei tecendo elogios:  
                                                 - o Doutor Clarindo é tão bom que em uma ocasião, vendo que a filha do dono do açougue estava grávida e reconhecendo que o pai dela não podia saber, fez o aborto no próprio Posto de Saúde.
                                       - Quando o dono da farmácia passou por um aperto financeiro, o Doutor Clarindo, para ajudá-lo, levava de graça medicamentos do posto de saúde, para que ele vendesse na farmácia e ganhasse um dinheirinho extra.
                                     - Todas as vezes em que os empregados da prefeitura querem jogar futebol, no campinho atrás do cemitério, é ele quem fornece os atestados médicos liberando-os do trabalho, por motivo de doença!
                                            Enquanto, empolgado que estava, continuava tecendo meus elogios à boa alma de Clarindo, o público foi se retirando aos poucos, não restando mais ninguém ao final de alguns minutos, quando, então, constatei que estava falando sozinho.
                                         No dia seguinte à eleição, feita a apuração, o Doutor Clarindo ganhou dois votos, o dele e o meu.
                                              Ia me esquecendo: ganhou, também um inquérito, mandado instalar pelo promotor local, para apurar irregularidades em sua gestão à frente do Posto de Saúde.


(Continua em próximo texto)


_*/ Economista e Doutor pela Universidade de Madrid, Espanha.


Nenhum comentário:

Postar um comentário