quarta-feira, 2 de maio de 2018


200. Os dias e as noites na vida de um carioca da periferia (II)


Jober Rocha*




                                                     Hoje, finalmente, decidi procurar um pedreiro para consertar o muro que caiu durante as últimas chuvas, ocasião em que a comunidade toda foi alagada pelas águas do pequeno riacho Urubu, que corta o bairro e que, cheio de lixo jogado pelos próprios moradores, acabou assoreado e extravasando, alagando tudo. 

                                                     Lembro-me bem deste dia, pois, as ratazanas sem terem para onde ir, já que suas tocas haviam sido alagadas, subiram em muros e telhados das casas, de onde, tranquilamente, ficaram observando os moradores em suas atividades diárias.
                                                   Decidido, pois, a consertar o muro de casa, passei toda a manhã percorrendo as ruas da comunidade a procura de um pedreiro. Infelizmente, embora encontrasse muitos espalhados pelos bares, bebendo, não consegui encontrar nenhum que quisesse fazer o serviço. 
                                             Todos alegavam que agora eram funcionários do governo; isto é, recebiam uma Bolsa (como os estudantes estagiários em organismos públicos). Assim, não poderiam trabalhar na iniciativa privada, já que eram bolsistas do poder público e tinham contrato de exclusividade. 
                                                        Desanimado, voltei para casa pensando em fazer, eu mesmo, aquele serviço ou em me cadastrar também como bolsista do governo; entretanto, fui informado de que para ser bolsista era necessário possuir família e eu, infelizmente, morava sozinho. 
                                                           Se eu tivesse algum filho presidiário poderia receber, além da minha bolsa, também o salário reclusão dele, por direito. Com uma filha prostituta, poderia, ainda, receber o auxílio de quase dois salários mínimos, referente a este direito dela. 
                                                        Somado ao auxílio natalidade (de direito da esposa grávida), o auxílio desemprego, além do auxílio gás e da possibilidade de matricular os filhos de graça (aprovados através dos regimes de quotas nas universidades públicas); tomando café da manhã, almoçando e jantando no restaurante público  que cobrava apenas um real, muitos moradores daquela comunidade possuíam renda real mensal da ordem seis a sete mil reais (U$ 2.000,00), conforme fiquei sabendo.
                                                  Tendo passado todo o dia preparando massa de cimento e assentando tijolos, à noite eu estava com braços e pernas doloridos e apenas consegui ler alguns capítulos de ‘O Mundo como Vontade e Representação’, de Arthur Schopenhauer.
                                                            Deixando o livro de lado, fiquei pensando que, às vezes, chego a invejar as pessoas da comunidade, que encontro pelas vielas mal cheirosas percorridas em minhas caminhadas dos fins de semana. 
                                                       Todos alegres, fazendo seus churrascos nas lajes de suas casas, tomando banho na caixa d’água, vendo TV, jogando bola e brigando na rua. Estou certo de que são estes remédios que tomo que não me permitem achar nenhuma graça nas piadas pornográficas que contam, nem me divertir da maneira deles, assistindo futebol, vendo novelas e observando, atentos, as preleções dos pastores, como fazem durante os sábados e domingos.
                                                       Nestes dias, após uma longa caminhada, volto para casa, leio os classificados de todos os jornais, buscando comparar preços de imóveis, cotações de veículos, ofertas de emprego, pessoas desaparecidas, animais à venda, etc. 
                                                               Após o almoço, que quase sempre é constituído por um pedaço de pão e algumas bananas, me dedico àquilo que mais gosto de fazer: estudar Filosofia. 
                                                             Passo, assim, o resto da tarde lendo Kant e Espinosa, filósofos estes que muito aprecio, embora, em minha opinião, sejam pouco profundos em seus ensaios.
                                                      Á noite eu faço, normalmente, uma refeição ligeira, quase sempre constituída por um pedaço de pão e algumas bananas. Tomo meus remédios (cerca de oito comprimidos diferentes, de várias cores), visto meu pijama e me preparo para o sono reparador. 
                                                               Amanhã, domingo, pretendo conhecer a enorme piscina recém construída aqui por perto (já apelidada de ‘piscinão’, em razão do seu descomunal tamanho), destinada a evitar que os membros desta e de outras comunidades próximas frequentem, com os seus corpos feios e desnutridos, as famosas praias da zona sul da cidade, cheias de turistas nesta época do ano.

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                                                                Hoje, domingo, acordei cedo depois de uma noite tumultuada em que as rajadas de tiros de fuzil quase não me deixaram dormir. Tomei um gole de café, vesti um calção de banho por debaixo da calça, como se fosse cueca, passei um pouco de protetor solar feito em casa com casca de banana, saí e me dirigi ao ponto de ônibus mais próximo; isto é, caminhei por cerca de cinco quilômetros. 
                                                             Minha ideia, naquele dia, era conhecer a enorme piscina que havia sido construída próximo da nossa comunidade. 
                                                               As autoridades estaduais, preocupadas com as levas de moradores das periferias que invadiam frequentemente as praias turísticas da zona sul, em busca de laser, haviam construído essa monumental piscina na metade do caminho entre a periferia e as praias oceânicas, esperando que os habitantes pobres ali repousassem os seus feios corpos, esqueléticos e desnutridos, e deixassem os turistas, nacionais e estrangeiros, aproveitarem em paz as belezas naturais da Cidade Maravilhosa. 
                                                              Os ônibus ou passavam todos lotados ou não paravam no ponto, mesmo vazios. Após quase uma hora, finalmente, consegui embarcar em um deles lotado, que só parou ali porque o motorista quis urinar na vala que margeia a estrada.
                                                    Dentro do ônibus lotado, em pé e ao lado de vários outros idosos, aleijados e portadores de necessidades especiais (isto é, deficientes físicos), contemplei a algazarra produzida pelas crianças que ocupavam a maioria dos bancos do veículo. Gritavam tão alto que o som de seus berros incomodava os meus ouvidos. Certamente, estavam alegres porque iriam ao ‘piscinão’ com seus pais, naquele domingo de céu azul e de sol forte.
                                                     Finalmente chegamos e todos os passageiros desembarcaram. As crianças, como loucas, correram na frente de seus pais, atirando areia em cima dos outros e nos demais frequentadores, já instalados, que estavam debaixo de suas barracas. 
                                                             Os jovens jogavam água em todo mundo, empurravam os menores para o fundo, corriam por entre os banhistas. Seus pais, evidentemente, nada diziam, já que os modernos conceitos de psicologia infantil rezam que as crianças não podem ser tolhidas em suas manifestações de liberdade. 
                                                                  Sentei-me, calmamente, em um canto e me pus a observar aquele ambiente, para mim, até então, uma grande novidade.
                                                                   Mais a frente, duas mulheres gordas fritavam sardinhas em um fogareiro, enquanto um mulato forte abraçava uma menina de cerca de quinze anos, meio escondidos por umas caixas de cerveja vazias.
                                                                    Alguns jovens fumavam pequenos cigarros de maconha, deitados de barriga para cima e soprando a fumaça para dentro de garrafas vazias de plástico, fumaça esta que, findo o cigarro, tornavam a reaproveitar, aspirando-a de novo. 
                                                            Alguns frequentadores, portando pulseiras e colares de ouro, cheiravam cocaína diretamente do pacotinho de plástico, que traziam guardado dentro do calção. 
                                                           Aquele ambiente, aparentemente, parecia totalmente despoliciado; muito embora eu imaginasse, na ocasião, que os policiais ali lotados deveriam estar em horário de almoço, razão pela qual não eram vistos em parte alguma.
                                                                Após algum tempo, resolvi dar uma caída n’água. O cheiro de urina que senti, logo ao entrar naquela água escura, me deixou bastante nauseado. Sai rápido e fui andando pela orla, sem destino.
                                                             Mais a frente uma família almoçava, sentada na areia. Eram mais ou menos umas trinta pessoas, entre filhos, netos, primos, sobrinhos, genros, cunhados, etc. 
                                                                Reparei nos pratos que comiam avidamente, pois, também estava com um pouco de fome. Pude reconhecer asas, pés e pescoços de galinha, junto ao feijão, ao arroz e a farofa. 
                                                                       Um garrafão sem rótulo, com um líquido branco dentro, passava de boca em boca. Os restos do almoço iam direto para dentro d’água, onde eram lavados os pratos e os talheres. 
                                                                      As mulheres, todas muito gordas, usavam maiôs do tipo ‘fio dental’ que, penetrando em suas carnes, pareciam dividir seus corpos em dois.
                                                                     Perto dali um conjunto musical formado por diversos instrumentos de percussão (um surdo, um tarol, uma caixa, dois pandeiros), além de um cavaquinho, um acordeão, um reco-reco, duas cornetas e mais um trombone, tocava músicas de pagode e sambas. 
                                                                        Algumas mulheres, apenas com a parte de baixo do ‘fio dental’, dançavam na areia, sob os olhares embevecidos de muitos meninos pequenos. Quatro caixas de som se encarregavam de espalhar a música que tocavam por toda a área do ‘piscinão’ e creio que o som, de tão alto, chegava até Niterói e a Ilha de Paquetá, do outro lado da Baía da Guanabara.
                                                            Como eu já tivesse apanhado muito sol, estivesse com fome e sem dinheiro para fazer um lanche, bem como  a tarde já se aproximava, resolvi retornar para casa. 
                                                                     Já no ponto do ônibus, ao me dirigir para um coletivo que havia parado bruscamente, fui interceptado por dois menores armados com pistolas que disseram: 
                                            - Aí Tio, perdeu! Passa logo tudo o que tem! 
                                                              Deixei com eles as minhas sandálias havaianas, a minha calça, a camisa, o boné, o pente e o frasco com o protetor solar caseiro, pois era tudo o que carregava comigo. O motorista, embora violando normas municipais, me conduziu até a comunidade apenas de calção de banho. Um deles pareceu me reconhecer e perguntou se eu já tinha acabado de consertar o muro da casa. Só então percebi que ele era o filho mais moço do meu vizinho da esquerda. Mesmo pedindo de volta a sandália ele não quis devolver, pois afirmou que era do tamanho certo do pé da sua irmã.
                                                            Chegando a casa, fiz uma breve refeição, constituída por um pedaço de pão e algumas bananas e fui logo apanhar o compêndio ‘A Ética a Maneira dos Geômetras’, de Baruch de Espinosa, que esperava resumir em cinco linhas naquele final de domingo.
                                                             Sem me dar conta, talvez em razão do sol forte que apanhara durante o dia, aos poucos, fui tomado por uma lassidão e acabei mergulhando em um sono profundo, cheio de pesadelos e temores.


(Continua no próximo texto)



_*/ Economista e Doutor pela Universidade de Madrid, Espanha.




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