domingo, 6 de maio de 2018

206. Os dias e as noites na vida de um carioca da periferia (VII)


Jober Rocha*




                                              Após selarmos o nosso pacto, ele me agradeceu por proteger sua mãe contra a sanha dos bandidos da cidade do Rio de Janeiro e, a partir de então, duas ou três vezes por semana, eu e a velhinha seguíamos juntos para o malfadado sobrado, onde entregava a mala e recebia os mil reais.
                                                   Algumas vezes, durante o trajeto, pensei em empurrar a velha na frente de um ônibus ou, até mesmo, largar a mala e sair correndo; mas, a advertência do chefe ainda ecoava em meus ouvidos: - “Se me trair você terá a cabeça cortada e os membros espalhados pelas ruas do bairro, para que os cães...”
                                                       Finalmente, quando já tinha juntado um bom quinhão, resolvi por um fim naquele tormento: abandonaria tudo e iria para São Paulo. Talvez, a minha ausência naquele hospital psiquiátrico em que passei seis meses internado ainda não houvesse sido notada e eu pudesse, calmamente, voltar para meu antigo quarto e entrar, sorrateiramente, embaixo das cobertas. Talvez chegasse bem na hora do jantar e pudesse desfrutar, até, de uma sopa quentinha.
                                                  Assim, em meu último trajeto com a senhora idosa, quando ela desejou ir ao banheiro de uma lanchonete, aproveitei a oportunidade e, tomando um táxi com a grande mala, me dirigi para a estação rodoviária, onde embarquei no primeiro ônibus em direção a cidade de São Paulo. 
                                                        Por via das dúvidas, caso não houvesse vaga naquele hospital, pensava em comprar a minha aposentadoria, definitivamente, com o conteúdo daquela pesada mala...
                                               Após haver desembarcado em São Paulo, detive-me por alguns instantes para solicitar a um carregador de malas, informações sobre como chegar ao meu velho hospital. Depois de ouvir suas detalhadas explicações sobre a linha do metrô em que deveria embarcar e as conexões que deveria fazer, voltei-me para apanhar a mala que colocara ao meu lado e seguir em frente.
                                                           Ela simplesmente não estava mais lá. Havia desaparecido. Procurei por todas as partes, olhei para todas as malas que via, verifiquei em todos os cantos. Nada. Desesperado, segui andando sem rumo pelas ruas daquela velha capital.
                                                Depois de muito andar, parei debaixo de um viaduto onde alguns mendigos cozinhavam algo para comer. Sentando-me perto deles para descansar, fui convidado a participar daquela modesta refeição. Como nada havia comido, aceitei de bom grado a comida que me ofereciam. Entabulando conversação soube que eram do interior e, tendo vindo para a capital em busca de emprego, após ficarem meses desempregados resolveram viver nas ruas, mendigando. 
                                                           Lembravam-se com saudades dos tempos em que viviam na cidade natal. Segundo diziam, no lugar de onde vieram as mulheres eram lindas, as águas eram puras e as matas verdejantes. Conforme eu ouvia o que falavam, em minha mente ia se formando uma imagem daquilo que poderia ser o próprio paraíso terrestre. Ouvi deles o nome da pequena cidade, me despedi agradecido e segui em frente.
                                                          Caminhando sem destino fui levado pela Providência Divina para as margens de uma rodovia que para o interior conduzia. 
                                                              Ali, aproximando-me de um caminhão parado no acostamento, fui solicitado pelo motorista a auxiliá-lo na troca de um pneu furado. Terminado o serviço, ele perguntou-me para onde ia. Dei-lhe o nome da pequena cidade, terra natal dos mendigos que conhecera, e, por enorme coincidência, o caminhoneiro justamente para lá se dirigia. 
                                                                 Fiquei pensando no que poderia estar por detrás de tamanha coincidência? Seria novamente a maligna Entidade tentando me armar mais uma arapuca? Desconfiado, sentei junto dele na cabine e seguimos calados, em direção ao meu pequeno Eldorado. Após seis horas de viagem penetramos em uma pequena e poeirenta cidadezinha, com uma rua transversal e duas ruas paralelas. Parando em frente a um determinado galpão, ele saltou e disse: - Pronto, chegamos!
                                                       Agradecendo, fui hospedar-me no pequeno e único hotel-pensão da localidade.
                                                       Tendo ali me instalado, após tomar um banho, saí para fazer o reconhecimento daquele pequeno lugarejo. Em uma antiga construção, que mais parecia uma escola abandonada, deparei com uma multidão de pessoas vestindo camisas vermelhas e trazendo lenços da mesma cor em volta do pescoço. 
                                                             Pertenciam ao Movimento dos Campesinos Sem Sementes – MCSS. Como eu também estava usando uma camisa vermelha, estava barbado e com o cabelo bastante crescido, não notaram a minha entrada no recinto e, buscando uma cadeira vazia, sentei para ouvir o que diziam. 
                                                                   O indivíduo que estava discursando falava que eles deveriam se unir para invadir algumas propriedades agrícolas locais, mas, que, para tal, precisavam de um líder com coragem, determinação, e que não se amedrontasse frente àqueles latifundiários exploradores dos pobres campesinos do pequeno município. 
                                                            Vendo que o assunto não me interessava, nem me dizia respeito, levantei-me para ir embora, justamente na hora em que ele perguntava para os presentes se alguém se oferecia para liderar as ocupações. 
                                                           Todos me olharam quando levantei e, agarrando-me pelos braços e pernas, conduziram-me em triunfo pelas ruas poeirentas daquela vila, entoando uma canção de guerra cuja letra eu não entendi bem, mas onde havia um estribilho que dizia: - “Os campesinos unidos, jamais serão vencidos”!
                                                    Em marcha compacta, comigo nos ombros, foram caminhando para uma das fazendas que pretendiam invadir. Após a invasão sem resistência, um grupo ficou ali acampado e o restante, comigo nos ombros, seguiu para outra propriedade. 
                                                                Ao final do dia, cinco fazendas haviam sido invadidas. Sentado na grande varanda da última delas, tendo nas mãos um charuto que me haviam dado e um copo de cachaça, recebi a visita do prefeito e dos fazendeiros locais. 
                                                            Muito humildes, pediam que minhas tropas abandonassem as propriedades invadidas e me ofereceram, em caráter reservado, certa quantia em dinheiro que seria entregue onde e quando eu determinasse. 
                                                                Afirmando que iria pensar na oferta e que daria uma resposta no dia seguinte, retirei-me para um quarto isolado, onde poderia pensar no que faria a seguir, para sair daquela situação inusitada. 
                                                            Vejam, mais uma vez, caríssimos leitores, como o destino me pregava uma peça atrás da outra. Aquilo só poderia significar, realmente, que alguma Entidade superior havia me escolhido para alvo de suas brincadeiras malignas. 
                                                              Só, naquele quarto, cheguei à conclusão de que a minha única saída seria fugir durante a noite. Mandei esvaziar a adega da fazenda, distribuindo aguardente para todos. Pela alta madrugada, com todos dormindo bêbados, esgueirei-me para a estrada e pus-me a correr, sem parar, em uma direção que me pareceu segura. 
                                                             Por volta do meio dia, cheguei a uma pequena comunidade onde havia uma igreja com as portas abertas. Como fazia muito sol, entrei na igreja e sentei-me em um dos diversos bancos vazios. 
                                                             Tendo corrido durante várias horas, achava-me cansado, desidratado e com fome. Recostei-me no banco, suado, e notei que minha boca tremia; talvez, fruto da desidratação, da tensão e do extremo cansaço. 
                                                   Pelo canto dos olhos pude ver um padre se aproximando. Ele passou por mim e nada disse. Eu  permaneci sentado até me sentir recuperado. 
                                                             Tendo o padre se retirado da igreja, comecei a percorrer as suas dependências, buscando uma saída lateral para desaparecer sem ser notado. Em um pequeno quarto encontrei uma batina usada, que eu pensei em colocar numa sacola, caso fosse necessário algum disfarce para deixar aquela região rural, onde já fora líder campesino, sem que meu exército de sem sementes percebesse. 
                                                           Ao experimentar a batina, repentinamente, a porta do quarto foi aberta e uma senhora de cerca de quarenta anos, bem vestida, bonita e com um belo corpo, perguntou-me pelo padre Amaro.
                                                                Informada por mim de que ele havia se retirado da igreja, disse-me: - Venha! Você mesmo serve, pois quero me confessar agora!
                                                         Totalmente acanhado, dirigi-me para o confessionário, onde entrei, sentei e disse a ela, quase sem voz: - Pois não, minha filha, pode começar!
                                                             O que ouvi daqueles lindos lábios, a sã moral e os bons costumes me impedem de repetir aos estimados leitores, tendo, mesmo sem haver recebido as ordens monásticas ou eclesiásticas, prometido a mim mesmo que, sobre tudo aquilo que aquela bela mulher me confessou, guardaria o mais completo segredo para sempre. 
                                                                   Absolvi-a daqueles pecados (mirando pelos orifícios do confessionário o movimento dos seus belos seios, que ondulavam enquanto ela arfava ouvindo minhas palavras), não sem antes indicar-lhe uma branda penitência, o que a deixou satisfeita; porém, um pouco desconfiada. 
                                                                 Perguntou-me se era novo na paróquia e disse que, a partir de então, queria confessar-se sempre comigo, padre jovem e tão mais humano e compreensivo com os deslizes de uma jovem mulher do que o velho padre Amaro. 
                                                                 Dizendo isto, levantou-se para ir cumprir a sua penitência e pude observar seu corpo bem torneado, suas pernas grossas e seu andar bamboleante. 
                                                              Observando de dentro do confessionário da igreja diversos indivíduos trajando camisas vermelhas circulando pela rua, resolvi retirar a batina que usava e, esgueirando-me furtivamente, tomei um pequeno caminho que me levou a uma estrada de terra, onde embarquei em um ônibus que me conduziu, finalmente, de volta ao Rio de Janeiro.
                                                                 Desanimado, com fome, sede e cansado, sentei-me em um caixote de madeira. Encontrava-me ali, pensando no que iria fazer a seguir, quando se aproximou de mim um jovem. Disse-me que era proprietário de editora especializada em estórias de mendigos e citou vários casos em que mendigos haviam saído da sarjeta para tornarem-se escritores famosos, reconhecidos mundialmente e ganhando rios de dinheiro. Olhando-me nos olhos, perguntou: - Você tem algo para nos contar?
                                                              Imediatamente, as lágrimas me escorreram pela face. Eram tantas as vicissitudes que me haviam acontecido, que não consegui conter o pranto. 
                                                           Lembrei-me dos meus últimos anos e de tudo aquilo pelo que havia passado. Respondi a ele que sim, que tinha muito para contar; até porque, já havia enchido dezenas de rolos de papel higiênico, onde relatava minhas vicissitudes e tomava notas sobre fatos ocorridos comigo e suas respectivas datas. 
                                                             A partir daquele dia passei a conviver na editora, onde eu dispunha de uma pequena sala nos fundos e um pequeno computador, com o qual dei inicio à minha carreira de escritor autobiográfico, escrevendo estas Memórias de Zeca Nalha que, infelizmente, a editora jamais conseguiu vender, sequer, um único exemplar.



(Continua em próximo texto)

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