211.
Os dias e as noites na vida de um carioca da periferia (XII)
Jober
Rocha*
Após período de tratamento em
organização psiquiátrica a que tive de recorrer, em razão de surto psicótico
originado de forte trauma vivenciado durante o tempo de professor de filosofia
em faculdade do interior do Estado, voltava, naquele fatídico dia, para um novo
e espaçoso barraco, alugado em comunidade pacífica ao sopé de um morro da cidade
do Rio de Janeiro, em veículo conduzido por minha esposa Heleninha.
Escolhera
aquele local para residir por ser uma comunidade meio isolada, onde pretendia recuperar-me
do forte trauma pelo qual passara e manter-me afastado dos amigos que deixara
naquela instituição psiquiátrica, notadamente o Diretor Administrativo-Financeiro
que insistia em receber o pagamento das diárias, honorários e medicamentos, supostamente
gastos comigo no período em que estive sob tratamento.
Como não me lembro de nada, referente ao
intervalo de tempo em que estive sobre cuidados médicos, não posso afirmar que
suas alegações sejam verdadeiras e que tenha deixado alguma dívida pendente.
Havíamos saído cedo da Casa de Saúde e
Heleninha, animada com a perspectiva de voltar ao convívio das amigas, que
deixara no Rio de Janeiro ao se mudar para a cidadezinha de Conceição do Mato Fora,
vinha cantarolando uma canção que ouvira há pouco no rádio.
Ao distrair-se, abaixando para pegar
um cigarro aceso que caíra no chão do carro, colidiu frontalmente com um
caminhão tanque carregado de gasolina.
Com a batida eu fui atirado para
frente, chocando-me com o pára-brisa. Heleninha foi jogada fora do veículo, ficando
caída na pista.
Em breve chegaram os bombeiros e ambos
fomos conduzidos a um hospital próximo.
Os médicos, recém-formados, que nos
atenderam, após conferenciarem entre si e darem vários telefonemas para antigos
professores, diagnosticaram, no caso de Heleninha, fratura de um braço e da
mão. No meu caso, mais complexo segundo afirmaram, não disseram nada e
resolveram enviar-me de ambulância para a capital, onde existiam melhores
médicos e hospitais.
Após uma série de tomografias, veio o diagnóstico:
fratura da bacia, das costelas, das clavículas, das omoplatas, dos braços e das
pernas.
Com a total recuperação de Heleninha
esta procurou dedicar-se, de corpo e alma, aos meus cuidados, notadamente
porque fora a única responsável por aquele meu estado lamentável. Eu, de inicio
revoltado pelo que me havia ocorrido, aos poucos, com o auxílio profissional de
psiquiatras, conformei-me tanto que, durante o dia, falava e brincava com Heleninha; mas, durante o sono, a noite, um sonho era recorrente e eu acordava dele suado e agitado: eu me via sempre apertando as mãos ao redor da garganta dela e gritando que ela era a única culpada.
Com o passar do tempo, ocorreu-me que,
embora engessado do pescoço para baixo, poderia usar a boca para pintar,
escrever, etc.
O novo aprendizado foi demorado e
cansativo, porém, finalmente já conseguia escrever e até pintar, segurando a
caneta ou o pincel entre os dentes.
Totalmente imobilizado naquela cama,
ao começar a escrever passei a sentir-me verdadeiramente livre. Minha mente vagava
pelo tempo e pelo espaço, criando personagens, situações e acontecimentos.
Comecei, a partir de então, a viver
uma nova vida de escritor, livre, paralela à minha vida de permanente personagem
aprisionada. Minhas criações literárias faziam tudo o que eu estava
impossibilitado de fazer.
Tendo iniciado um conto cujo
personagem principal, um professor de filosofia muito culto e inteligente,
apaixonara-se por empregada doméstica burrinha, chamada Heleninha e que ele contratara
como serviçal, vi-me, repentinamente, diante de um inesperado dilema: O senhor Alhan
- era assim que denominei o professor e os leitores mais perspicazes já perceberam
que usei o meu sobrenome ao contrário - recebera uma proposta para lecionar em
pequena Faculdade de Filosofia no interior do Estado.
Na ocasião, como autor do conto,
encontrava-me na dúvida se o professor Alhan deveria casar-se com a empregada e
aceitar o cargo de professor na cidadezinha do interior ou, ao contrário,
continuar solteiro e morando na capital.
Por fim, decidindo que Alhan deveria
ir mesmo para o interior, comecei a preparar sua saída. Primeiro casei-o na
igreja matriz do bairro, com direito a festa no clube e lua de mel em
Petrópolis.
Finda esta, o próprio personagem
contratou empresa de mudanças para levar sua mobília até Conceição do Mato
Fora, pois era este o nome da cidadezinha para onde ia, e alugou um carro no
qual ele e a esposa iriam para seu destino final.
No dia da partida Alhan acordou cedo,
colocou alguns pertences em uma maleta de mão e saiu dirigindo o veículo em
direção à auto-estrada, junto com a esposa sentada no banco do carona.
Ao atingirem a rodovia ele aumentou a
velocidade do automóvel e parecia, pelo olhar, estar procurando algo.
Pouco depois avistou, vindo em sentido
contrário, um caminhão tanque conduzindo gasolina.
Aumentando mais ainda a velocidade,
virou o volante para a esquerda, oferecendo ao pára-choque do caminhão toda a
lateral do carro, na qual se encontrava sentada à esposa.
A batida foi terrível. A mulher,
imprensada pela lataria, coube toda em uma caixa de sapatos na hora do enterro.
Ele, que havia saltado do veículo
antes da batida, logo após os funerais mudou-se para outro Estado, com uma nova
namorada, onde casou novamente e passou a trabalhar como assistente de
importante figura política.
Este
meu conto, muito elogiado pelos leitores e premiado no tradicional concurso
literário “Talentos da Terceira Encarnação”, foi lido por Heleninha em silêncio, na
cama.
A partir daí ela passou a olhar-me com desconfiança, demonstrando, inclusive, certo sentimento de pavor em algumas ocasiões. Desde então, fazia sempre absoluta questão de ler, em primeira mão, todos os rascunhos dos contos que eu escrevia.
Em várias ocasiões surpreendi-a folheando minhas gavetas em busca do final das estórias que eu escrevia.
A partir daí ela passou a olhar-me com desconfiança, demonstrando, inclusive, certo sentimento de pavor em algumas ocasiões. Desde então, fazia sempre absoluta questão de ler, em primeira mão, todos os rascunhos dos contos que eu escrevia.
Em várias ocasiões surpreendi-a folheando minhas gavetas em busca do final das estórias que eu escrevia.
(Continua
em próximo texto)
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Economista e Doutor pela Universidade de Madrid, Espanha.
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