segunda-feira, 7 de maio de 2018


208. Os dias e as noites na vida de um carioca da periferia (IX)


Jober Rocha*


                                       Lá descendo encontrei a minha velha mesa, solitária, ao lado do gerador de energia para emergências. Perguntando, fiquei sabendo que ali se reuniam os fiscais externos da nossa repartição. Como necessitavam de lugar sossegado para estabelecer as estratégias de fiscalização das empresas sob suas responsabilidades, ocupavam aquele subsolo. Minha nova função seria a de supervisionar a atividade daqueles fiscais.

                                            Marquei logo uma reunião para o mesmo dia à qual, de um total de dez fiscais, apenas dois compareceram. Estes dois, ao serem inquiridos por mim sobre suas atividades, mostraram-se evasivos e apenas murmuraram algumas palavras ininteligíveis.
                                                   Nas semanas que se seguiram, por mais que insistisse, não consegui reunir os fiscais para uma reunião conjunta. Um havia tido problema com o iate em Angra dos Reis, outro estava supervisionando a construção de seu hotel em uma praia do nordeste, outro ainda não havia retornado de Miami onde possuía residência de fim de semana.

                                                      Quando, após dois meses, consegui reuni-los, a reunião foi pouco produtiva. Notei que formavam um grupo coeso. Falavam, entre si, sempre em voz baixa, e percebi que possuíam um líder, tipo baixo, barbudo e atarracado, chamado pelos companheiros de Natário. Ao perguntar seu nome completo, respondeu-me: Doutor Stélio Natário, às suas ordens, chefe!

                                                       Resolvi segui-lo, disfarçadamente à distância, para ver como atuava no dia a dia junto às empresas fiscalizadas. Constatei que sempre que saia de uma empresa que acabara de fiscalizar, procurava rapidamente uma agência bancária, na qual entrava e permanecia por cerca de vinte minutos.

                                          Aguardando do lado de fora sua saída, pude constatar como é duro trabalhar externamente à repartição. Se não fosse o expediente de entrar no banco e lá permanecer no ar condicionado por cerca de vinte minutos, o fiscal não aguentaria o terrível calor das ruas cariocas.

                                                  Voltando para a seção, iniciei por estabelecer normas sobre a atuação dos fiscais. Buscando evitar que os mesmos sofressem os efeitos dos raios solares (a principal causa de melanoma em idade avançada) determinei que os responsáveis pelas próprias empresas fiscalizadas, a partir daquele momento, deveriam comparecer, pessoalmente, à repartição, onde eu teria a oportunidade de conhecê-los e de participar, também, diretamente da fiscalização, trazendo novas idéias e sugestões.

                                                   Baixada a norma, cinqüenta por cento dos fiscais entraram com pedido de Licença-Prêmio e trinta por cento em Licença para Tratamento de Saúde. Como dez por cento estava gozando do Auxílio Reclusão, apenas pude continuar contando com os dez por cento restantes, isto é, um funcionário.
                                              Impossibilitado, assim, de cumprir minha missão, pois as empresas contavam-se em centenas, e os fiscais em unidades, eu voltei, então, a dedicar-me à elaboração de normas e manuais que julgava úteis para o funcionamento interno da minha repartição.

                                                 Passei, assim, a parte final da minha vida de servidor público a elaborar regras que eram lançadas, sob a forma de tiras cortadas, pelas janelas dos andares mais altos ao final do último dia do ano.

                                                Meus principais manuais, frutos de denodado esforço de observação sobre a realidade de um órgão público, foram:

1. Como guardar camarão-frito com repolho dentro da gaveta da escrivaninha, por uma semana, evitando que estrague e que exale mau cheiro;
2. O que todo funcionário deve saber, para conseguir vender bem seus produtos eletro-eletrônicos no horário do expediente;
3. Aprenda a distinguir as várias espécies de ratos que habitam em uma Seção;
4. Como usar a mesma roupa, durante trinta dias, sem lavar;
5. Mil desculpas para esticar um pouco mais o horário do almoço;
6. A Arte e a Ciência de chegar tarde e sair cedo;
7. O que pode ser reaproveitado em uma lixeira de Seção;
8. Falar mal do colega pelas costas: Arte ou Ciência;
9. A Inveja Criadora: Como decolar na administração pública tendo a fofoca como propelente;
10. Não tome partido nem à esquerda, nem à direita: As dez razões pelas quais um carimbo deve ser colocado bem no centro da página.

                                             Alguns outros manuais ainda pude elaborar durante minha trajetória de servidor público, porém creio que estes mencionados foram os mais importantes.

                                                    Tendo sido, finalmente, demitido pelo chefe sem haver recebido nenhuma promoção, resolvi que era chegada a hora de, finalmente, procurar outro caminho.

                                                No último dia de trabalho guardei meus lápis, réguas e borrachas dentro da pasta e entreguei meu copo de plástico na cozinha. Com lágrimas nos olhos fixei, pela última vez, aquelas instalações que me abrigaram como mãe carinhosa durante mais de trinta anos.
                                                 Tentei despedir-me com um olhar dos companheiros de trabalho, porém, notei que me viravam o rosto, certamente para que eu não visse as lágrimas de tristeza que, com certeza, vertiam copiosamente naquela ocasião.
                                                       Parti dali em busca de alguma outra atividade que permitisse o meu sustento; pois estava casado há pouco com Heleninha e eu vivia cansado de ver televisão e de alimentar o gato preto que comigo convivia há quase quinze anos. Resolvi, então, reiniciar a elaboração de novos e modernos manuais, agora, porém, com uma conotação não de utilidade pública, mas de utilidade privada.

                                                     Depois de muito observar a realidade do bairro onde moro na periferia, elaborei alguns manuais que distribuí para os moradores locais desempregados.

                                                    Certamente, hoje em dia, ao ser abordado em um sinal de trânsito por um vendedor de balas que, correndo, coloca o saquinho no seu espelho retrovisor, você não imagina que aquele modo de vender balas foi por mim desenvolvido em meu ‘Manual do Vendedor de Balas’, após meses de estudos e de pesquisas.

                                                         A própria frase exclamativa “Perdeu Cara!”, dita por bandidos no ato do assalto foi, inescrupulosamente, pirateada e apropriada do meu ‘Manual do Flanelinha Profissional’. A frase, hoje tão em moda, foi criada por mim para ser dita, como desculpa pelo guardador de carros quando o motorista, ao pegar o seu veículo estacionado, reclamasse da falta das calotas ou de algum pneu.
                                                         Malabarismos com laranjas, com tochas pegando fogo, com pedras, etc., foram também por mim desenvolvidos, como forma alternativa dos desempregados obterem alguns trocados de motoristas desatentos nos sinais de trânsito fechados.

                                                  A técnica de colocar barracas nas calçadas, no meio dos transeuntes, por mim desenvolvida após exaustivas pesquisas e citada no ‘Manual do Camelô Profissional’, foi o modo que encontrei de proporcionar, de forma magistral, a verdadeira integração entre as classes sociais.

                                                     A ‘Tática do Arrastão’ foi por mim criada e seu objetivo inicial era motivar a união entre as classes menos favorecidas, em torno de um objetivo comum (esta tática foi, inicialmente, criada, apenas, com objetivos virtuosos de ajuda mútua; mas, com o passar do tempo, foi sendo tão desvirtuada pelos políticos que, hoje, é adotada até pelas classes mais favorecidas da Capital Federal, quando desejam delinquir).
                                                   Depois de muito escrever este tipo de normas, resolvi tirar umas férias. A partir de então ficava em casa, apenas, enchendo a paciência de minha nova esposa, Heleninha, criticando o seu desempenho nas atividades domésticas diárias.


(Continua em próximo texto)



_*/ Economista e Doutor pela Universidade de Madrid, Espanha.


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