208.
Os dias e as noites na vida de um carioca da periferia (IX)
Jober
Rocha*
Lá descendo encontrei a minha velha
mesa, solitária, ao lado do gerador de energia para emergências. Perguntando, fiquei
sabendo que ali se reuniam os fiscais externos da nossa repartição. Como
necessitavam de lugar sossegado para estabelecer as estratégias de fiscalização
das empresas sob suas responsabilidades, ocupavam aquele subsolo. Minha nova
função seria a de supervisionar a atividade daqueles fiscais.
Marquei logo uma reunião para o mesmo
dia à qual, de um total de dez fiscais, apenas dois compareceram. Estes dois,
ao serem inquiridos por mim sobre suas atividades, mostraram-se evasivos e apenas
murmuraram algumas palavras ininteligíveis.
Nas semanas que se seguiram, por mais
que insistisse, não consegui reunir os fiscais para uma reunião conjunta. Um
havia tido problema com o iate em Angra dos Reis, outro estava supervisionando
a construção de seu hotel em uma praia do nordeste, outro ainda não havia
retornado de Miami onde possuía residência de fim de semana.
Quando, após dois meses, consegui
reuni-los, a reunião foi pouco produtiva. Notei que formavam um grupo coeso.
Falavam, entre si, sempre em voz baixa, e percebi que possuíam um líder, tipo
baixo, barbudo e atarracado, chamado pelos companheiros de Natário. Ao
perguntar seu nome completo, respondeu-me: Doutor Stélio Natário, às suas
ordens, chefe!
Resolvi segui-lo, disfarçadamente à
distância, para ver como atuava no dia a dia junto às empresas fiscalizadas.
Constatei que sempre que saia de uma empresa que acabara de fiscalizar,
procurava rapidamente uma agência bancária, na qual entrava e permanecia por
cerca de vinte minutos.
Aguardando do lado de fora sua saída,
pude constatar como é duro trabalhar externamente à repartição. Se não fosse o
expediente de entrar no banco e lá permanecer no ar condicionado por cerca de
vinte minutos, o fiscal não aguentaria o terrível calor das ruas cariocas.
Voltando para a seção, iniciei por
estabelecer normas sobre a atuação dos fiscais. Buscando evitar que os mesmos
sofressem os efeitos dos raios solares (a principal causa de melanoma em idade
avançada) determinei que os responsáveis pelas próprias empresas fiscalizadas,
a partir daquele momento, deveriam comparecer, pessoalmente, à repartição, onde
eu teria a oportunidade de conhecê-los e de participar, também, diretamente da fiscalização,
trazendo novas idéias e sugestões.
Baixada a norma, cinqüenta por cento
dos fiscais entraram com pedido de Licença-Prêmio e trinta por cento em Licença
para Tratamento de Saúde. Como dez por cento estava gozando do Auxílio
Reclusão, apenas pude continuar contando com os dez por cento restantes, isto
é, um funcionário.
Impossibilitado, assim, de cumprir
minha missão, pois as empresas contavam-se em centenas, e os fiscais em
unidades, eu voltei, então, a dedicar-me à elaboração de normas e manuais que
julgava úteis para o funcionamento interno da minha repartição.
Passei, assim, a parte final da minha
vida de servidor público a elaborar regras que eram lançadas, sob a forma de
tiras cortadas, pelas janelas dos andares mais altos ao final do último dia do
ano.
Meus principais manuais, frutos de
denodado esforço de observação sobre a realidade de um órgão público, foram:
1.
Como guardar camarão-frito com repolho dentro da gaveta da escrivaninha, por
uma semana, evitando que estrague e que exale mau cheiro;
2.
O que todo funcionário deve saber, para conseguir vender bem seus produtos eletro-eletrônicos
no horário do expediente;
3.
Aprenda a distinguir as várias espécies de ratos que habitam em uma Seção;
4.
Como usar a mesma roupa, durante trinta dias, sem lavar;
5.
Mil desculpas para esticar um pouco mais o horário do almoço;
6.
A Arte e a Ciência de chegar tarde e sair cedo;
7.
O que pode ser reaproveitado em uma lixeira de Seção;
8.
Falar mal do colega pelas costas: Arte ou Ciência;
9.
A Inveja Criadora: Como decolar na administração pública tendo a fofoca como
propelente;
10.
Não tome partido nem à esquerda, nem à direita: As dez razões pelas quais um
carimbo deve ser colocado bem no centro da página.
Alguns outros manuais ainda pude
elaborar durante minha trajetória de servidor público, porém creio que estes
mencionados foram os mais importantes.
Tendo sido, finalmente, demitido pelo
chefe sem haver recebido nenhuma promoção, resolvi que era chegada a hora de,
finalmente, procurar outro caminho.
No último dia de trabalho guardei meus
lápis, réguas e borrachas dentro da pasta e entreguei meu copo de plástico na
cozinha. Com lágrimas nos olhos fixei, pela última vez, aquelas instalações que
me abrigaram como mãe carinhosa durante mais de trinta anos.
Tentei despedir-me com um olhar dos
companheiros de trabalho, porém, notei que me viravam o rosto, certamente para
que eu não visse as lágrimas de tristeza que, com certeza, vertiam copiosamente
naquela ocasião.
Parti dali em busca de alguma outra
atividade que permitisse o meu sustento; pois estava casado há pouco com
Heleninha e eu vivia cansado de ver televisão e de alimentar o gato preto que
comigo convivia há quase quinze anos. Resolvi, então, reiniciar a elaboração de
novos e modernos manuais, agora, porém, com uma conotação não de utilidade
pública, mas de utilidade privada.
Depois de muito observar a realidade
do bairro onde moro na periferia, elaborei alguns manuais que distribuí para os
moradores locais desempregados.
Certamente, hoje em dia, ao ser
abordado em um sinal de trânsito por um vendedor de balas que, correndo, coloca
o saquinho no seu espelho retrovisor, você não imagina que aquele modo de vender
balas foi por mim desenvolvido em meu ‘Manual do Vendedor de Balas’, após meses
de estudos e de pesquisas.
A própria frase exclamativa “Perdeu
Cara!”, dita por bandidos no ato do assalto foi, inescrupulosamente, pirateada
e apropriada do meu ‘Manual do Flanelinha Profissional’. A frase, hoje tão em
moda, foi criada por mim para ser dita, como desculpa pelo guardador de carros
quando o motorista, ao pegar o seu veículo estacionado, reclamasse da falta das
calotas ou de algum pneu.
Malabarismos com laranjas, com tochas
pegando fogo, com pedras, etc., foram também por mim desenvolvidos, como forma
alternativa dos desempregados obterem alguns trocados de motoristas desatentos
nos sinais de trânsito fechados.
A técnica de colocar barracas nas
calçadas, no meio dos transeuntes, por mim desenvolvida após exaustivas
pesquisas e citada no ‘Manual do Camelô Profissional’, foi o modo que encontrei
de proporcionar, de forma magistral, a verdadeira integração entre as classes
sociais.
A ‘Tática do Arrastão’ foi por mim
criada e seu objetivo inicial era motivar a união entre as classes menos
favorecidas, em torno de um objetivo comum (esta tática foi, inicialmente,
criada, apenas, com objetivos virtuosos de ajuda mútua; mas, com o passar do
tempo, foi sendo tão desvirtuada pelos políticos que, hoje, é adotada até pelas
classes mais favorecidas da Capital Federal, quando desejam delinquir).
Depois de muito escrever este tipo de normas,
resolvi tirar umas férias. A partir de então ficava em casa, apenas, enchendo a
paciência de minha nova esposa, Heleninha, criticando o seu desempenho nas
atividades domésticas diárias.
(Continua em próximo texto)
_*/ Economista e Doutor pela Universidade de Madrid, Espanha.
_*/ Economista e Doutor pela Universidade de Madrid, Espanha.
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