199. Os dias e as noites na vida de um carioca da periferia (I)
Jober Rocha*
Hoje acordei sentindo, ainda, aquela forte dor no peito que me acometera na véspera. Pensando que poderia se tratar de algum mal cardíaco, resolvi ir me consultar no posto de saúde local.
Ali chegando, notei que a fila dava voltas em torno do prédio. Mães com crianças no colo sentadas no chão da rua, velhos deitados pelos cantos, sentados em caixotes de madeira ou em baldes de tinta vazios. Aguardei, pacientemente, por cerca de cinco horas, até que chegasse a minha vez de ser chamado.
O médico que me atendeu era Dermatologista e falava em uma mistura de castelhano com português. Sem sequer tocar em mim, ao ouvir os meus sintomas, me receitou uma pomada de cortisona para que passasse entre os dedos dos pés, após o banho; tendo frisado bem, por várias vezes: - Después del baño!
Com respeito à dor no peito, que eu havia relatado, disse que aquilo era fruto da minha imaginação, pois sabia que ali todos os moradores eram dados a ter surtos de hipocondria ou queriam atestados médicos, apenas para faltar ao trabalho sem terem o dia descontado no salário.
Mandou-me sair do consultório e chamou o próximo da fila. Voltei para casa pensando em como a Medicina evoluíra nestes últimos anos. Os médicos atuais já não mais necessitavam auscultar os pacientes, como faziam os de antigamente. Bastava olhar para eles e, rapidamente, formulavam seus diagnósticos. Eu não havia permanecido naquele gabinete mais do que cinco minutos e já saíra dali com o diagnóstico fechado e com uma receita na mão.
Como tomo alguns outros medicamentos fortes, que atuam no cérebro e consomem todo o meu salário de aposentado pela Previdência Social, acredito que a dor que sentia e que ainda sinto seja, realmente, fruto de minha imaginação, como bem disse o doutor, embora falando em uma língua esquisita da qual apenas entendi algumas poucas palavras.
Ao retornar para casa, notei uma pequena aglomeração de pessoas no cruzamento e me aproximei para observar do que se tratava. Era um candidato a vereador, que prometia urbanizar o bairro construindo pontes, viadutos, escolas, esgotos, linha de metrô, aeroporto internacional, edifícios residenciais, etc.
Dizia que já tinha feito diversas reuniões com os donos das empreiteiras e que já estava tudo acertado. Enquanto ele falava para aquele povo, algumas pessoas de terno e gravata, que destoavam dos moradores locais, batiam palmas e gritavam: - Muito bem! Já ganhou!
No final da sua preleção, ele disse que apenas poderia fazer tudo aquilo se a comunidade inteira votasse nele nas próximas eleições. Todos prometeram que ele teria quantos votos precisasse daquela comunidade, principalmente se enviasse como doação algumas caixas de cerveja e carne para churrasco.
Em casa (tendo almoçado algumas bananas e tomado um excelente copo d'água obtido com os pingos que caiam da torneira, pois há meses que não temos água, embora paguemos a conta que chega adiantada todos os meses), preparava-me para iniciar a leitura de Critica da Razão Pura, do filósofo Kant e, ao coçar a cabeça de um gato preto que me acompanha há muitos anos, lembrei de que não cabia aos vereadores fazerem obras, mas, sim, aos prefeitos.
Acho que eu era o único que possuía aquela informação no local onde morava, mas, pode ser que estivesse enganado, principalmente, porque os médicos não cansam de afirmar que minha percepção da realidade é prejudicada pelos remédios que tomo.
Sentei-me em uma velha poltrona na sala e me esforçava para prestar atenção ao texto que lia de Critica da Razão Pura, na parte em que Kant discorria sobre o Imperativo Categórico.
Quase ao findar o dia e se iniciar o crepúsculo, ainda meio que cochilando e com o livro nas mãos, fui despertado por disparos de fuzil, alguns dos quais perfuraram a parede da sala, quebraram o lustre e danificaram alguns dos poucos móveis que possuo, por pouco não me atingindo.
Rapidamente me atirei ao chão, como havia aprendido no quartel, no tempo em que servira no Exército.
Deitado no solo ouvi muita gritaria na rua e pude perceber que se tratava de uma disputa entre traficantes locais, pelo ponto de venda de drogas daquela comunidade. Este ponto ficava bem na via principal, ao lado de um pequeno posto policial.
Imagino que as autoridades policiais permitiam que o ponto de venda de drogas funcionasse vinte e quatro horas por dia, em razão das propriedades terapêuticas das drogas, notadamente no que se refere a supressão da fome e da dor, tão comuns em locais onde habitam populações carentes e desnutridas e onde as autoridades ainda não conseguiram implantar seus eficientes e modernos restaurantes e hospitais públicos, há tanto tempo prometidos.
Ali no chão deitado, aos poucos, fui sentindo o corpo relaxar e quando dei por mim o sol já estava nascendo novamente no horizonte.
(Continua no próximo texto)
_*/ Economista e Doutor pela Universidade de Madrid, Espanha.
Nenhum comentário:
Postar um comentário