214. Os dias e as noites na vida de um carioca da periferia (XV)
Jober Rocha*
Meu vizinho de bairro, chamado Claudinei (que morava sozinho em um barraco na comunidade), desde criança sempre fora bom de briga. Na Escola Pública onde estudara, ninguém tirava satisfação com ele sem sair com um olho roxo ou o nariz sangrando.
Na juventude havia frequentado todas as academias de artes marciais, lá embaixo no asfalto: jiu-jitsu, caratê, boxe, tae-kwondo, capoeira, etc.
Atualmente trabalhava como segurança em uma Corretora de Câmbio, no quarto andar de um elegante prédio comercial no centro da cidade.
Na sua função, segundo fazia questão de se vangloriar no morro, já havia passado por muitas experiências difíceis; tais como, separar brigas entre clientes, prender estelionatários, falsários, etc.
A experiência que viveu naquele dia, entretanto, marcou para sempre a sua vida, conforme me relatou a filha de dona Julia, minha vizinha da esquerda, que era faxineira na mesma corretora em que Claudinei trabalhava.
Em determinado momento do dia, entretido em olhar a flutuação da cotação da Libra Esterlina, ele não percebeu a entrada no local de vários indivíduos portando armas e sacolas.
Quando deu por si ele mesmo já estava sob a mira das armas, como também os demais seguranças, clientes e empregados, inclusive a própria filha de dona Julia. Os assaltantes, extremamente violentos, obrigaram todos a se dirigirem para um quarto nos fundos onde ordenaram que tirassem as roupas e os pertences.
Como Claudinei hesitasse bastante antes de acatar a ordem dada, alguns colegas pensaram que, tendo uma arma escondida sob as roupas, ele iria reagir a qualquer momento.
Apontando-lhe a metralhadora, um dos assaltantes ordenou aos berros que tirasse logo tudo. Sob os olhares de todos os presentes, aos poucos, ele foi tirando suas roupas: primeiro o paletó azul marinho, depois a camisa, a seguir a calça, a meia e os sapatos, ficando apenas vestido com uma calcinha feminina preta.
Suas pernas, nuas e depiladas, apresentavam dois pés pequenos com as unhas pintadas de esmalte vermelho. Na nádega direita havia um coração tatuado, encimado pela frase: “Eterno Amor de Reginaldo”.
Em certa ocasião fui procurado por Dona Leonora, responsável pela escola e creche do bairro. Como eu era considerado o maior intelectual daquela comunidade, ela vinha pedir-me que escrevesse algumas frases de incentivo aos alunos; frases estas que seriam colocadas em placas a serem afixadas nos principais locais da escola.
Na opinião dela, os alunos vendo aquelas frases incentivadoras, todos os dias, lembrar-se-iam delas pela vida afora.
Passei, então, uma manhã inteira pensando em possíveis frases de efeito, para incentivar os alunos. Ao final da manhã entreguei uma folha com os seguintes dizeres à Dona Leonora:
Frases para serem escritas nas paredes da escola
No Refeitório: “O único alimento cuja quantidade, qualidade, cheiro e sabor realmente importam, é o alimento do espírito.”
Na Barbearia: “Seja compreensivo e tolerante, pois neste local todos nós somos barbeiros”.
No Portão de Entrada: “Jovem, antes de entrar por este portão, consulte os conselhos de alguém que já o tenha feito”.
No alojamento: “Mais vale o sono dos incompetentes do que a insônia dos dedicados”.
No Pátio do Recreio: “Jovens, lembrai-vos de que todos nós temos uma mãezinha em casa”.
No Almoxarifado: “Conserva o que é teu, pois, assim, no ano que vem não precisaremos te dar de novo”.
No Posto Médico: “Tua saúde é muito importante. Quanto pior para você, melhor para nós”.
Na Sala dos Diretores: “O aluno obedecer ao professor é tão nobre e honrado quanto o professor mandar no aluno”.
No banheiro: “Neste local, milhares de jovens brasileiros deixaram de ser gerados e de desfrutar de um futuro brilhante, por absoluta falta de óvulos”.
Na Sala de Aula: “Nunca na história do ensino público, tão poucos ensinaram tão pouco a tantos”.
Na Praça de Esportes: ”Dê o máximo de si. Se ninguém prestar atenção, tente novamente; até que alguém te veja e te mande para casa por absoluta falta de aptidão para os esportes”.
No Campo de Futebol:
"Agarre no sol, defenda na chuva,
Com tênis, calção, camiseta e luva,
Engolindo um frango por não defender o gol inteiro.
Esta é a triste sina de um goleiro".
Na tarde daquele mesmo dia, Dona Leonora procurou-me, novamente, para solicitar que fosse com ela ao Instituto Médico Legal, reconhecer o que restara do corpo do marido.
Durante o trajeto, contou-me, chorando, o que havia acontecido. Um cineasta bastante famoso e que já havia feito vários filmes, no país e no exterior, havia contratado Gumercindo, seu marido, para um serviço.
O cineasta era conhecido por suas películas conterem inúmeros efeitos especiais: acidentes, quedas, explosões, incêndios etc.
A única filha, do seu oitavo casamento, ia se casar naquele mês, na mansão que ele possuía na Barra da Tijuca, no Rio de Janeiro.
Querendo marcar a ocasião por um efeito especial espetacular, ele pensou em contratar um homem bomba, para explodir-se em um cantinho afastado do jardim, sob os olhares impressionados dos quase 500 convidados; muitos deles estrangeiros.
Procurou pela Internet e não encontrou nenhum se oferecendo. Foi à Palestina, ao Iraque, ao Afeganistão; percorreu ruas e mesquitas e não conseguiu contratar ninguém.
Voltando ao Brasil, desanimado, pensava em criar outro efeito especial quando, olhando nos classificados de um jornal local, deparou com o anúncio de uma pessoa (Gumercindo) que vendia um rim, um pulmão, as duas córneas, parte do fígado, um braço, uma mão, um pé e uma orelha.
O cineasta imaginou que, se o sujeito queria desfazer-se de todas essas partes, nada melhor que uma bomba explodindo junto ao peito. Imediatamente ligou para o indivíduo e marcou hora e local para conversarem.
Gumercindo explicou que estava endividado e, com o dinheiro arrecadado, pagaria as dívidas e mandaria dona Leonora e os doze filhos de volta para o Norte do país. Como sempre, exigira o dinheiro adiantado. Acertada a negociação, na qual o cineasta não regateou no preço, pois pagaria com verbas federais destinadas ao seu próximo filme (em que aproveitaria a cena da explosão de Gumercindo, que seria totalmente filmada), o próprio Gumercindo ficara encarregado de preparar a bomba e colocá-la ao peito.
No dia do casamento, após a cerimônia, com os convidados todos no jardim, foi anunciado o evento.
Gumercindo chegou todo vestido com uma túnica branca e capuz, sendo apresentado como um membro de organização terrorista internacional.
Dirigiu-se ele para o canto preparado do jardim e, embora tentasse por diversas vezes, não conseguiu fazer a bomba, presa ao peito, explodir; deixando os convidados e os noivos desolados e frustrados.
Terminada a festa e tendo todos os convidados se retirado, o cineasta, a esposa, a filha e o genro achavam-se na sala da mansão, tomando uma taça de champanhe e conversando sobre o local da lua de mel, quando a campainha tocou. Ao atendê-la o cineasta deparou com Gumercindo que, alegando não ter podido cumprir o combinado, havia vindo devolver o dinheiro recebido antecipadamente.
Ao entrar na sala e mexer nos bolsos para retirar o dinheiro, o artefato, finalmente, explodira, matando todos os presentes.
Dona Leonora, quando nos aproximávamos do prédio do Instituto Médico Legal, confessou baixinho que ainda tinha esperança de encontrar algumas notas presas no que havia sobrado do corpo e das roupas de Gumercindo.
(Continua em próximo texto)
_*/ Economista e Doutor pela universidade de Madrid, Espanha.
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