segunda-feira, 7 de maio de 2018


207. Os dias e as noites na vida de um carioca da periferia (VIII)




Jober Rocha*



                                     Talvez o leitor não saiba, mas fui um servidor público, logo depois que me casei pela primeira vez. Trabalhei durante vários anos em uma repartição governamental na qual dediquei o melhor de minha existência, abdicando, até mesmo, da fama e da fortuna.

                                           Iniciarei por dizer-lhe que minha mesa sempre foi a mais organizada e limpa de quantas conheci por este país afora. Meus lápis com suas pontas afiadas, minhas borrachas e réguas limpinhas e meus clipes, na quantidade certa para o consumo do dia, eram objeto da admiração de quantos passavam pela frente da minha bela escrivaninha, indo rumo ao banheiro localizado ao final do corredor.

                                               Os carimbos que eu utilizava nos despachos e que eram Petição Aprovada e Petição Negada, após os seus usos eram limpos com todo o esmero, parecendo àqueles que os viam, pela primeira vez, nunca terem sido antes utilizados.

                                             O copo de água sobre minha mesa continha a quantidade certa, necessária para um bom gole a cada hora, de modo a no final do expediente encontrar-se totalmente vazio.

                                                      Nada na minha mesa era desperdiçado ou consumido com prodigalidade. Os envelopes eram reutilizados tantas vezes quanto fosse possível, em razão de sua resistência; o mesmo ocorrendo com folhas de papel, pastas de arquivo, copos de plástico, elásticos, etc.

                                          Aos poucos, os colegas de ofício, que inicialmente me chamavam apenas de Zeca Nalha, passaram a chamar-me por vários apelidos carinhosos, ditos pelas minhas costas e que não cabem aqui serem relatados, pois algum menor de idade pode ter acesso a estas folhas e devemos preservar a pureza das crianças.

                                             Em razão de minha formação cultural de verdadeiro autodidata ter sido muito boa e bem ampla, da qual fizeram parte tanto os autores clássicos quanto os contemporâneos, consigo visualizar, por vezes, coisas e aspectos não percebidos pelos companheiros de seção; razão pela qual, suponho despertar-lhes certa dose de ciúmes que, até então, tem sido mantida por eles em sigilo.

                                         Pelo fato de dar expediente durante muitos anos na Secretaria Geral, ao lado do gabinete de importante autoridade, pude fazer inúmeras observações que me conduziram a classificar as Normas Funcionais segundo as seguintes categorias: Grandes e Pequenas.

                                          As primeiras, no meu entender, dizem respeito ao estabelecimento de critérios necessários ao bom funcionamento do setor público e dos demais setores da sociedade de um modo geral, constituindo, na minha modesta maneira de ver, as Grandes Normas. 
                                             As segundas referem-se às pequenas coisas que escapam ao olhar arguto das autoridades constituídas como, por exemplo: a maneira do servidor público sentar-se no vaso sanitário sem se contaminar, o modo de carimbar um processo sem que a tinta do carimbo manche a pagina de trás, o jeito de regular a velocidade das pás do ventilador para que a papelada da seção não saia voando, etc.
                                           Como não participava da elaboração das Grandes Normas, aperfeiçoei-me na elaboração das Pequenas Normas.

                                      Assim é que a maior parte do meu tempo, de funcionário público, dediquei-a à elaboração de manuais que buscassem regular as atividades e procedimentos que, embora usuais numa repartição, jamais foram objeto de estudos detalhados sobre tempos e movimentos, de modo a alcançar a máxima eficiência na alocação dos escassos recursos disponíveis nos órgãos públicos.

                                       Meus primeiros trabalhos neste campo, que me valeram inicialmente elogios por parte dos chefes, foram: ‘Manual sobre como urinar sem molhar a tabua e sem deixar os pingos caírem no chão’ e ‘Manual sobre a utilização racional do rolo de papel higiênico’.

                                                  Na elaboração destes dois manuais gastei horas de observação no banheiro da repartição, medindo tempos e movimentos dos usuários. Por vezes necessitei empregar sofisticadas análises de Custo-Benefício ou de Custo-Eficácia. Minha função objetivo, a ser otimizada, algumas vezes, consistia em minimizar a quantidade de papel higiênico usado pelo funcionário e, em outras, maximizar o volume de dejetos lançados dentro do vaso sanitário.

                                             Gabo-me de haver sido o primeiro a descobrir, pessoalmente, a razão pela qual grande parte da urina lançada pelo usuário ficava no chão do banheiro. Para tal tive de recorrer ao estudo da ciência Ótica.
                                             Pude notar após muita observação meticulosa, que uma pequena refração, motivada pelo fato do funcionário urinar de pé, fazia com que a incidência dos raios luminosos atingisse de maneira ortogonal a sua retina, proporcionando-lhe uma visão distorcida, ou ilusória, do tamanho daquilo que tinha em mãos.
                                            Assim, ao urinar no vaso sanitário, julgando possuir segurar algo maior do que aquilo que em realidade segurava, afastava-se a grande distancia do mesmo, fazendo com que parte do líquido caísse ao piso.
                                               Para corrigir tal falha mandei pintar no solo, junto ao vaso, uma faixa amarela na qual todo usuário tinha de pisar antes de urinar, independente do tamanho que julgasse ter aquilo que tinha em mãos.
                                                    Para os cegos mandei colocar um sinal sonoro que apitava, quando alguma gota caia ao chão antes da linha amarela.

                                                    Estabelecendo, mediante uma tabela afixada junto ao vaso sanitário, qual o tamanho correto do papel higiênico a ser utilizado individualmente, em razão das variáveis peso e altura do funcionário, pude economizar substancial quantidade de água e de sabão ao final do mês, já que, em decorrência desta norma, as mãos sujas não necessitavam mais serem esfregadas com tanta intensidade.

                                                     Para não me acusarem de parcialidade com relação aos homens, estabeleci normas também para o banheiro das mulheres.
                                                     Fixei em apenas dez o número máximo de mulheres que poderiam ir juntas ao banheiro, de cada vez. Da mesma forma, estabeleci o prazo máximo de permanência dentro do banheiro, para cada funcionária, de apenas duas horas. Com isto, a quantidade de lixo oriunda da venda de bijuteria e de produtos de beleza, bem como do consumo de alimentos e da lavagem de roupas íntimas, diminuiu sensivelmente. 
                                                   Cada servidora só poderia ir ao banheiro, a partir do estabelecimento das minhas normas, no máximo dez vezes por dia, já que, para um número maior de vezes passei a exigir atestado médico de incontinência urinária. Com isto creio que resolvi toda a problemática envolvendo o uso dos‘toilettes’ durante o horário de expediente.

                                               Meu segundo passo foi dirigir minha atenção para o comercio ambulante dentro da repartição.
                                                                   Notei que desde o inicio até o final de um dia de expediente -não digo de trabalho, porque este seria bem menor -aproximadamente quarenta vendedores ambulantes, vindos da rua, percorriam as mesas de meus colegas de seção, oferecendo-lhes canetas, celulares, óculos, bijuterias, etc. Muitos destes vendedores trajavam-se mal e andavam, até mesmo, com roupas sujas. Os produtos que vendiam, por sua vez, oriundos do Oriente, quase sempre apresentavam defeitos de fabricação. A partir de então, estabeleci as seguintes normas para o comércio ambulante na repartição:

1. Todo camelô deveria ser cadastrado, andar uniformizado e portar crachá nas dependências do órgão público;
2. Os produtos vendidos deveriam, antes de serem pagos, ficar sob caução durante trinta dias com o comprador. Caso apresentassem defeitos seriam devolvidos, sem nenhum pagamento.

                                                Após a primeira semana de implantação destas normas, tendo o movimento deste comércio declinado, fui chamado à presença do meu chefe que, furioso, ordenou-me revogá-las, alegando a inconstitucionalidade das mesmas e reclamando dos enormes prejuízos que vinha sofrendo. Ao entrar em sua sala pude notar, em cima da mesa, enorme quantidade de aparelhos celulares, relógios, anéis, brincos e colares. Suponho que os camelôs tenham deixado àqueles produtos em caução com o chefe e não voltaram mais para apanhá-los.

                                              Transferido que fui, logo em seguida, para o terceiro subsolo onde funcionavam a Gráfica e a Garagem, levei alguns meses para me adaptar às minhas novas funções, que consistiam em conferir as notas de entrada e saída de material, bem como a relação dos materiais em estoque.

                                                Minha primeira dúvida ocorreu quando vi que saiam mais materiais do que entravam. Ocorreu-me, na ocasião, comparar tal situação com a do milagre da multiplicação dos pães e peixes, de que ouvira minha mãe falar quando criança.

                                                       Depois de muita pesquisa constatei a origem da divergência. Na falta de normas específicas e de locais adequados para a guarda dos materiais, muitos colegas os levavam para casa, prometendo, a si mesmos, trazerem-nos de volta, tão logo fossem necessários e as suas ausências constatadas pela auditoria.

                                                Após a elaboração de manuais disciplinando a entrada e a saída daqueles materiais, fui, novamente, admoestado pelo chefe que mandou revogá-las alegando que os materiais guardados em casa estariam menos sujeitos a extravios e a danos de manuseio e, logo em seguida, transferiu-me para o Setor de Concorrências, no quinto subsolo.

                                             Naquele setor pude conhecer, com maior intimidade, os nossos fornecedores. Faziam, todos, parte de uma mesma família, numerosa, composta por pai e oito filhos, cada qual com sua firma individual e todas elas localizadas no mesmo endereço.

                                                   Cada vez que meu chefe anunciava uma concorrência para aquisição de determinada mercadoria ou material, a família concorria tanto com o preço mais baixo quanto com o preço mais alto. Se algum concorrente, estranho à família, oferecesse um preço intermediário, o irmão com o preço mais baixo ganhava. Se nenhum concorrente estranho aparecesse, o irmão com preço mais baixo desistia e o ganhador era o irmão com o preço mais alto. Já forneciam para a repartição há muitos anos.
                                       Meu chefe, que frequentava, assiduamente, a casa deles, recebia inúmeras cestas com alimentos e bebidas em ocasiões festivas, tais como: seu aniversário, natal, carnaval, finados, proclamação da república, abolição da escravatura, comemoração do final da Guerra na Coréia, etc. Notando a baixa qualidade das mercadorias e dos materiais que forneciam para a repartição, bem como o alto preço unitário daqueles itens face aos preços de mercado, iniciei por criar um Banco de Dados com os preços daqueles bens, que coletava mensalmente junto aos fabricantes, para cotejá-los com os preços ofertados nas concorrências.

                                          Por outro lado, elaborei normas que impediam a participação de empresas localizadas no mesmo domicilio e pertencentes à mesma família.

                                                      Na primeira concorrência realizada após a minha chegada, na hora da abertura das propostas, afirmei, com base nas normas por mim elaboradas, que as empresas da tradicional família estavam impedidas de participar. Após a enorme confusão que se seguiu, fui voto vencido, pois, naquele dia, meu chefe e vários dos seus assessores e amigos, que nunca haviam participado de concorrências, fizeram parte da Comissão de Licitação e a única voz discordante foi a minha.
                                                    Ao ser posto para fora da sala aos empurrões, ainda consegui argumentar que o preço apresentado pelo irmão vencedor estava quinhentos por cento acima do preço de mercado, porém meu chefe, que não entendia daqueles aspectos legais e econômicos, deixou-se mais uma vez enganar, ordenando que a sala fosse trancada a chave. Passou o resto daquele dia, incomunicável, junto com os irmãos concorrentes.

                                                Como era uma sexta-feira, fui direto para casa estudar toda a legislação referente a Concorrências e Processos Licitatórios, buscando uma brecha para anular aquela. Tendo finalmente descoberto um caminho legal bastante promissor, ao chegar cedo, na segunda-feira, para comunicar o fato ao chefe, não encontrei minha mesa na sala da repartição. Fui informado por um continuo que a mesma havia descido, na própria sexta-feira anterior, para o oitavo subsolo.

(Continua em próximo texto)


_*/ Economista e Doutor pela Universidade de Madrid, Espanha.


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