18. Trabalha a Medicina a favor ou contra os desígnios do Criador?
Jober Rocha*
Em razão da ignorância sobre as origens dos fenômenos naturais que cercavam os seres humanos, estes teriam atribuído, desde o início dos tempos, uma característica sobrenatural a tais acontecimentos. A partir daí, com certeza, passaram a acreditar na existência dos Deuses, responsáveis pela vigência e manifestação dos fenômenos e por aplacá-los, caso pudessem ser diretamente contatados. Ademais, vendo o nascimento e a morte dos seres vivos e não compreendendo as razões para tal, o homem passou a crer na hipótese de outra existência, de onde os seres humanos viriam e para onde voltariam após a morte; existência esta que também seria o local da morada dos Deuses.
A Ciência, surgida com o progresso da civilização e que busca descobrir as causas de todos os fenômenos, de uma maneira geral, pressupõe que a Natureza seja ordenada e regida por leis. Tal pressuposição, segundo alguns autores, teve sua origem na idéia de que um (ou até mais de um) Deus foi o criador do Universo; já que, sendo este Deus racional e legislador, as suas criações também possuiriam estas características (conforme crença comungada por inúmeros pensadores ao longo da História, dentre estes, destacando-se Descartes, Newton, Einstein, Heisenberg, etc.).
De todas as Leis da natureza (quer se acredite ou não nas suas existências), uma delas pertenceria ao rol das coisas que não poderiam ser violadas, e esta seria a Lei da Lógica. Como já disse alguém: “As cadeias com que a Lógica acorrenta a Natureza, são apenas formais, não chegando a oprimi-la; porém, em razão disto, são totalmente inquebrantáveis”. Assim, ao considerarmos as Leis da Natureza como ordens que teriam partido de um Criador, estaríamos bem próximos de atribuirmos às Leis da Natureza a necessidade de pertencerem às Leis da Lógica.
A Medicina com todas as demais Ciências - dizem os filósofos – fazem parte do ‘Pacote da Criação’; isto é, ao criar tudo o que existe no Universo conhecido, o ‘Criador de Todas as Coisas’, também, teria criado as leis que regeriam o comportamento e o funcionamento da Sua criação. Tais leis, a pouco e pouco, iriam sendo descobertas pelo homem (figura importante, consciente e, talvez mesmo, central de todo este fenômeno), dando lugar ao surgimento, pela descoberta humana conforme dito, das diversas Ciências.
A Medicina consiste como todos sabem, em uma área do conhecimento ligada a manutenção e a restauração da saúde, trabalhando, em um contexto médico, para a prevenção e a cura das doenças dos seres humanos e dos animais. Segundo alguns autores, a Ciência da Medicina teria surgido, no Ocidente, com Hipócrates (460 a 377 a.C.) e, segundo outros, no Império Aquemênida (no Sudeste da Ásia, entre 550 e 330 a.C.), no Oriente. Ao longo da História, após Hipócrates, diversos ‘médicos’ contribuíram para o desenvolvimento desta ciência incipiente, notadamente: Asclepiades de Bitinia, Claudio Galeno, Ibn Sina (Avicena), Ibn Rushd (Averrois), Ibn al-Nafis, Ibn al-Baytar, Al-Farabi, Al-Zarzi, Louis Pasteur, Alexander Fleming, etc.
Na atualidade, fruto de pesquisas teóricas e aplicadas, a Medicina tem progredido sensivelmente, tendo descoberto as causas e as curas de uma infinidade de moléstias que acometem os seres humanos e os animais. Ao fazer isto, entretanto, segundo pensam alguns religiosos e fiéis, tem interferido nos desígnios do Criador para com as Suas criaturas.
Diversas crenças religiosas associam a vida humana (ou a encarnação de um espírito em um corpo material) à necessidade do aprendizado espiritual, aprendizado este que passaria pelas vias dos sofrimentos, das dores e das vicissitudes, necessárias estas para que o aperfeiçoamento ocorresse. Lembremo-nos que a evolução ocorre dialeticamente e que o embate entre a tese e a antítese é o que provoca a síntese; isto é, a evolução daquelas duas em direção a esta. Algumas crenças falam em, apenas, uma vida e outras em múltiplas existências; todas, entretanto, reafirmam a necessidade deste aprendizado encarnado, para que o espírito possa evoluir. As crenças Orientais, panteístas em sua maioria, advogam a existência de um Determinismo com relação ao destino dos indivíduos, enquanto as principais crenças Ocidentais, quase todas monoteístas, propugnam a existência de um Livre Arbítrio.
Com base no que dizem a Religião e a Filosofia, podemos estabelecer algumas hipóteses: 1. A existência humana seria determinística e Deus estaria em toda a Natureza (Budismo, Hinduismo, Sufísmo, Confucionismo, Taoísmo e Xintoísmo); 2. A existência humana seria determinística e Deus estaria fora da Natureza (Islamismo, Espiritismo); 3. A existência humana possuiria total livre-arbítrio e Deus estaria em toda a Natureza (nenhuma religião comunga com esta hipótese, pois, aparentemente, se trataria de uma contradição religiosa); e 4. A existência humana possuiria total livre-arbítrio e Deus estaria fora da Natureza (Catolicismo, Protestantismo).
Cada uma destas hipóteses implicaria em uma maneira diferente, para seus seguidores, de encarar a vida e os demais fenômenos Metafísicos.
A primeira hipótese seria a que mais nos aproximaria fisicamente do Criador (que estaria na própria Natureza) e, portanto, implicaria em uma menor necessidade da intermediação por parte de organizações religiosas entre Deus e os homens, além de induzir a uma maior pratica das chamadas virtudes, por parte dos cidadãos, em razão da visão determinística da existência.
A última delas seria a que mais nos distanciaria fisicamente do Criador, criando, assim, uma necessidade maior da presença de instituições religiosas para servir de ponte entre o Criador e as criaturas e induziria a uma maior pratica dos chamados vícios (pecados), por parte dos cidadãos, em razão da visão religiosa de livre arbítrio e do constante apelo do Sistema Capitalista para a satisfação dos desejos do ego, prontamente atendidos em razão do livre-arbítrio. Tanto é assim, que a noção de pecado e do inferno (onde ficariam os pecadores) é muito forte no Cristianismo.
Como visto, todas as religiões (quer monoteístas, quer panteístas) admitem a existência de um Criador e de leis que regeriam a criação. Assim, em condições normais, a Natureza operaria segundo os critérios estabelecidos pelo Criador e da forma como necessitaria operar; isto é, nada seria feito de maneira supérflua ou sem finalidade. Neste contexto, como compatibilizar a Medicina (que objetiva salvar e prolongar a vida dos seres humanos) com as Leis da Natureza? A interferência da Medicina teria, assim, a propriedade de interromper o livre curso da Natureza, modificando-o a revelia do Criador, já que nada ocorreria por acaso (assim, o indivíduo que estivesse enfermo, possuísse deformidades ou estivesse à beira da morte, teria, necessariamente, de passar por tudo aquilo, para atingir a evolução prevista para o seu espírito naquela atual existência).
Determinada crença religiosa é conhecida por seus seguidores recusarem transfusões de sangue. Estes fazem isto, baseando-se em suas interpretações de: Genesis 9:4; Levítico 17:10; Deuteronômio 12:23; Atos 15:28, 29 e Levítico 17:14.
Em todos os lugares do nosso planeta onde a vida surgiu (quando na ausência de qualquer interferência humana), ela tem seguido o seu curso normal; isto é, a Lei Natural que faz com que tudo aquilo que necessite morrer, morra. Com a interferência dos seres humanos e da Ciência da Medicina, esta Lei pode ser anulada e constantemente o tem sido, para felicidade nossa. Filosoficamente, entretanto, a questão que se coloca é a de que os praticantes da Ciência Médica, ao obstarem a ação da Natureza, mediante as suas intervenções, e impedirem, assim, a ação da Lei Natural, interferem na programação divina de aprendizado dos espíritos encarnados. Lembremo-nos que a constituição física de cada indivíduo, seu DNA, seus cromossomas, sua resistência ou propensão às doenças e as enfermidades, etc., são exogenamente determinados; isto é, já vieram com ele quando do seu nascimento (ou encarnação). Ao se acreditar na existência de um Criador, nas Leis da Natureza, na necessidade da evolução espiritual e no conseqüente caminho do sofrimento para atingir esta evolução, a interferência do médico com a sua ciência; embora vista com alegria, carinho e respeito pelos pacientes, pode ter conotações espirituais desconhecidas por nós, ao permitir prorrogar a vida de alguém que teria, inexoravelmente, sucumbido pela ação da Lei Natural.
Reconheço ser este um assunto complexo e, filosoficamente, ainda não solucionado a contento, até o presente. Quem sabe se, futuramente, a Ciência, a Religião e a Filosofia não convergirão para um ponto comum, de modo a chegarem as três a possuir a mesma concepção Metafísica sobre o fenômeno da vida e da morte, para que possamos ter uma resposta definitiva para a pergunta que dá título a este ensaio?
_*/ Economista, M.S. Doutor pela Universidade de Madrid, Espanha.
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