25. A Consciência de ser um Servidor Público
Jober Rocha*
Em nosso país, tradicionalmente, aquelas famílias que podem (e mesmo aquelas que não podem), buscam encaminhar seus filhos e demais familiares para empregos públicos, ao contrário de outros países do Primeiro Mundo, notadamente aqueles de língua inglesa (como os USA e Canadá, por exemplo), onde as famílias que podem (e mesmo aquelas que não podem) buscam a iniciativa privada como forma de sustento e de ascensão social de seus integrantes.
Razões econômicas que poderiam justificar tais procedimentos tornam-se fracos argumentos justificativos, na medida em que somos a oitava ou a sétima economia mundial e, embora a produtividade da nossa mão de obra seja, ainda, baixa, possuímos uma importante economia no cenário mundial. O argumento de que o Estado seria o grande empregador de mão de obra, em uma economia pouco desenvolvida, portanto, cai por terra, perante o fato de que a nossa está entre as dez maiores economias do mundo.
As razões sócio-culturais que poderiam explicar estas distintas preferências, entre os países mencionados, são diversas e podem ser atribuídas, grosso modo, às nossas colonizações diferentes; como também, ao fato de os povos que colonizaram aqueles dois países, serem distintos daquele que nos colonizou, não sendo o nosso propósito analisar em profundidade tais razões no presente texto.
O fato de, inicialmente, a corte do rei de Portugal e, posteriormente, a corte do imperador do Brasil, ser a grande mantenedora das famílias dos nobres em nosso país (e, conseqüentemente, das famílias dos escravos), até o advento da república, pode ser, talvez, uma explicação para esta contínua busca pelo emprego público, da forma como aqui é exercida. Enquanto nós, após a nossa independência de Portugal (1822), continuamos com uma corte dependente do imperador durante todo o período em que durou o império (67 anos); nos Estados unidos e no Canadá, com a independência (USA/1783; Canadá/1867), veio imediatamente a república (USA/1787) e o papel da iniciativa privada logo se fez sentir em importância.
Pode-se afirmar, sem medo de errar, que em nosso país o primeiro objetivo daqueles que buscam um emprego público, normalmente, é o de conseguir estabilidade laboral e uma fonte de renda certa e relativamente segura, mesmo que em nível inferior ao nível praticado na iniciativa privada. O segundo objetivo, quase sempre, é o de obter um emprego onde o volume de trabalho não seja muito grande e a legislação trabalhista seja respeitada com todos os seus direitos e vantagens (isto vale para os celetistas e para os estatutários, já que o Estado não contrata pessoal sem concurso ou, então, quando pela CLT, sem carteira assinada; o que costuma ocorrer em empresas privadas, notadamente as pequenas e micros, que são as grandes empregadoras em nosso país).
Embora no setor público os salários dos escalões inferiores sejam relativamente baixos e os dos escalões superiores relativamente altos, comparativamente aos da iniciativa privada, o volume de trabalho normalmente é inferior e as regalias costumam ser maiores (comparativamente, para funções equivalentes, em ambos os setores), principalmente no que se refere a flexibilização do horário de trabalho e ao abono de atrasos e de faltas.
A ausência de um patrão no setor público (dono do negócio, que sofre no bolso as faltas e os atrasos dos seus empregados e que jamais poderá ser substituído), cujo lugar é ocupado por um chefe (que não terá seus vencimentos reduzidos em razão de faltas ou atrasos dos servidores), induz, certamente, a diferença de regalias mencionada anteriormente.
Por outro lado, uma característica psicológica que faz com que muitos busquem um emprego público é a reduzida ambição e a pouca vontade de crescer profissionalmente, com tudo aquilo que isto representa em termos de melhoria no padrão de vida. Muitas pessoas contentam-se com uma vida modesta, desde que contando com segurança do emprego e da renda.
Aqueles verdadeiramente ambiciosos, que buscam ver atendidas as suas elevadas ambições através de empregos públicos, mas cedo ou mais tarde poderão entrar pelas veredas dos descaminhos, das concussões, das malversações; já que estas, quase sempre, são as únicas maneiras do empregado do setor público vencer as barreiras salariais, pois o mérito e a produtividade raramente são reconhecidos e agraciados com correspondentes aumentos salariais.
Na empresa privada, no entanto, através do treinamento, da capacitação, do interesse pelo trabalho e do aumento da produtividade, os ambiciosos por níveis mais elevados de renda poderão ter suas pretensões atendidas pelos patrões (interessados no aumento dos lucros, gerado por aquele empregado ambicioso), sem que seja necessário ao trabalhador recorrer a alguma irregularidade ou violação das leis; posto que, como já dito, tais empresas, costumam valorizar o desempenho e a produtividade de seus empregados.
O que diferencia o servidor público, em nosso país, daqueles servidores públicos dos dois países anteriormente mencionados, salvo raras e honrosas exceções, é que naqueles países o serviço público é buscado não pelas razões com que aqui tais serviços são procurados; posto que, neles existe a consciência do que é ser um servidor, isto é, os servidores públicos sabem que são pagos pelos contribuintes para servi-los. Aqui, qualquer simples empregado público julga-se uma autoridade a que os contribuintes devem se submeter e acatar (quem sabe em sua memória genética, exista, ainda, a noção de que pertence à corte imperial?), mesmo quando exorbitam de suas funções ou, até mesmo, quando deixam de executar suas atribuições.
Aqueles que duvidam desta assertiva observem como em nosso país se relacionam com o público, em geral, aqueles servidores públicos que exercem algum tipo de fiscalização e aqueles que exercem algum tipo de atividade que lhes dá poder de decidir sobre qualquer coisa, seja lá o que for.
A impressão que se tem é justamente a contrária daquela que deveria ser; isto é, ao invés do servidor atender ao interlocutor de maneira afável e educada, tentando ajudá-lo a resolver o seu problema, o que se vê, muitas vezes, é que o servidor vê no interlocutor um inimigo, do qual precisa se descartar imediatamente. Alguns pensarão: - mas isto é devido à sobrecarga de trabalho e aos baixos salários! Ora, quando ele buscou o serviço público, como alternativa de emprego, já sabia dos baixos salários que receberia.
Relativamente à sobrecarga de trabalho, também não procede (a não ser quando se trata de servidores públicos da Saúde e da Educação, que trabalham em nossos hospitais superlotados e em nossas escolas sobrecarregadas de alunos), pois a maior parte das repartições, com pouco trabalho a fazer, está repleta de servidores ali colocados para atender aos interesses políticos, às sinecuras e ao nepotismo (as diretorias, as superintendências, as coordenadorias, as gerências, as chefias de departamentos, as subchefias, os adjuntos, etc. se multiplicam ao infinito, chegando ao cúmulo de um chefe chegar a ser chefe de si mesmo, como único funcionário daquela chefia).
O normal, quando se visita qualquer repartição pública, é observar excesso de pessoal totalmente ocioso. Compare-se o número de ministérios brasileiros (25 ministérios e 14 secretarias com status de ministério, totalizando 39) com os da Alemanha (15 ministérios), com o dos USA (15 ministérios), com o da China (24 ministérios) e com o da Argentina (15 ministérios).
Os países desenvolvidos tratam seus cidadãos como clientes do serviço público, em um modelo de administração mais direto, participativo, concentrado e com menor interferência política. Nosso país trata os cidadãos como dependentes indesejáveis do serviço público; como pessoas que recorrem ao Estado para atrapalhar o descanso ou perturbar as atividades particulares dos seus servidores, em sua maioria ali colocados por apadrinhamento político, quando não concursados.
Carecemos, portanto, de maior conscientização com respeito ao que é ser um servidor público.
No Poder Legislativo (que costuma fugir, inúmeras vezes, à regra dos baixos salários de servidores públicos), os representantes dos eleitores, após serem instalados em seus gabinetes, ganham vida própria e tratam, quase que exclusivamente, de seus próprios interesses particulares ou dos interesses do partido a que pertencem, em suas coligações com o partido no governo. Eles deixam, assim, de se considerar servidores do público que os elegeu (eleitores) e passam a ser servidores de si mesmos e dos governantes do momento (quase sempre em troco de favores e de dinheiro, conforme os vários escândalos que freqüentemente ocorrem noticiados diariamente pela imprensa).
Muitos vereadores, deputados e senadores, jamais apresentaram um único projeto de sua autoria, durante todo o mandato.
No Poder Judiciário (que, também, para os cargos mais elevados, quase sempre, foge as regras de baixos salários dos servidores), o que se vê é um excesso de direitos e vantagens, relativamente aos demais trabalhadores do setor público e privado. O excesso de prazo para que seja feita justiça nos processos e o acumulo destes nas varas públicas, denota, no mínimo, a baixa produtividade e eficiência da justiça. Alguém já disse que os três poderes da República, se fossem três empresas privadas, pelo muito que custam e pelo pouco que produzem, já teriam fechado as portas há muito tempo.
Um levantamento realizado pela Escola de Direito da FGV de São Paulo, abrangendo o período de abril de 2013 a março de 2014, entrevistou 7.176 pessoas de diferentes Estados, entre eles: Amazonas, Pernambuco, Bahia, Minas Gerais, Rio de Janeiro, São Paulo, Rio Grande do Sul e Distrito Federal. A população alvo da pesquisa foi composta por habitantes com 18 anos ou mais. Tratava-se de um levantamento estatístico trimestral, de natureza qualitativa, realizado nas regiões metropolitanas e no interior de sete Estados do país e do Distrito Federal, com base em amostra representativa da população. O objetivo era o de retratar, sistematicamente, a confiança da população no Poder Judiciário.
Em um total de onze instituições pesquisadas, a confiança dos entrevistados no Poder Judiciário ficou em sétimo lugar. Os Partidos Políticos ficaram em último, o Poder Legislativo ficou em penúltimo e o Poder Executivo em anti-penúltimo.
Vê-se, portanto, que das onze instituições pesquisadas, justamente aquelas de natureza pública foram as duas últimas (Legislativo e Executivo) nas quais a população confiava. A confiança popular na terceira instituição pública (Judiciário) também ficou próxima destas duas instituições anteriores, quase no final da lista. Alguma coisa está muito errada no Brasil (a oitava economia mundial), relativamente aos demais países. Falta muito mais para o nosso país romper as barreiras do subdesenvolvimento cultural e ético, do que simplesmente vencer as barreiras do subdesenvolvimento econômico.
Creio que se não surgir, urgentemente, um movimento por mudanças psicossociais de vulto, partido das camadas mais esclarecidas da nossa população, notadamente aquelas que já não suportam mais conviver com a burocracia, com a corrupção e com a baixa produtividade dos três Poderes da República, nosso país continuará eternamente sendo o país do futuro e jamais dará o salto que historicamente esperamos para o tão almejado Primeiro Mundo. Falta-nos, infelizmente, a consciência do que é ser um servidor público, ademais de outros aspectos psicossociais encontrados, comumente, nos países do Primeiro Mundo e dos quais falaremos em outra ocasião.