331. Sua Excelência o Prisioneiro
Jober Rocha*
No local onde ele estava era tratado por todos com deferência. Alguns, ainda, o chamavam de excelência. Havia ocupado um grande e importante cargo político no passado recente. Envolvido em denúncias de empresários e executivos, após longo inquérito judicial, fora constatada a sua culpa e havia sido condenado a pena de vários anos de cadeia, os quais cumpria em cela especial mandada preparar de urgência para receber tão importante e famosa figura.
Embora as provas materiais e testemunhais, acerca dos seus crimes, fossem fartas e contundentes, ele mantinha-se, desde o início, alegando inocência:
- Não havia feito nada errado e de nada sabia sobre aquilo que lhe imputavam! - era o que sempre dizia.
Face ao seu cargo anterior, ainda que não tivesse direito a prisão especial, colocaram-no em cela isolada de um determinado local onde ficasse bem guardado, sem a possibilidade de fugas e sem o contato com a massa carcerária; já que, ele, como um político matreiro e sagaz, era bem capaz de incitar rebeliões.
Sua cela, por deferência de algumas autoridades anteriormente por ele mesmo nomeadas para os altos cargos que ainda ocupavam, podia receber visitas de jornalistas, de amigos e de eventuais namoradas, por mais incrível que isto possa parecer.
Costumava dizer a todos que o visitavam no cárcere que:
- O Estado havia prendido apenas o seu corpo e que a sua alma era, e sempre seria, livre!
Essa afirmação continha, implícita, uma declaração de que havia sido preso injustamente e que era um prisioneiro político, detido por incomodar aos novos donos do poder.
No interior da cela onde ficava, logo que a porta era fechada, sua mente viajava por lugares distantes. Imaginava mil locais, acontecimentos e diálogos. Nunca estava só, tendo sempre por companhia, em sua mente, homens e mulheres que pensavam como ele e com os quais convivia imaginariamente, conversando, interagindo e combinando falcatruas. Assim, passaram-se os dias, meses e anos.
Em uma noite quente de verão foi acordado pelo carcereiro ordenando-lhe que se aprontasse para uma entrevista com o diretor.
Conduzido à presença deste, foi-lhe dito que em uma alta corte de justiça haviam aprovado recente resolução estabelecendo que réus, mesmo condenados, só poderiam ser presos após seus processos terem transitado em terceira instância (o que não era o caso dele, que só havia sido condenado em primeira e segunda instâncias) e, por conseguinte, estava sendo libertado naquela ocasião. Assim, ele deveria se preparar para deixar aquele local logo nas primeiras horas da manhã seguinte.
Abriram-se então os portões, no dia seguinte, e ele voltou para casa, acompanhado por uma dezena de ex companheiros do partido político a que pertencia, alguns deles ainda respondendo a processos judiciais por ações semelhantes àquelas que o haviam condenado.
No primeiro dia livre tudo foi festa. Recepcionado pelos companheiros em vários locais, ao final do dia estava quase totalmente embriagado, tantos foram os brindes que fizeram em sua homenagem e ele teve que acompanhar aqueles que brindavam tomando uma taça de champanhe, um copo de cerveja, uma dose de cachaça.
A programação dos dias subsequentes incluía viagens pelos estados e municípios, tentando levantar o apoio das massas ao seu favor, de modo a mostrar ao mundo todo que ele era um líder popular com chances de voltar ao poder, apoiado pelos seguidores do partido a que pertencia.
Entretanto, o resultado obtido nestas viagens pelo interior do país foi pífio, sendo ele hostilizado em todos os lugares que chegava junto com sua comitiva partidária.
Os analistas políticos já o consideravam como uma ‘carta fora do baralho’.
De forma igual, pensavam alguns membros mais lúcidos do seu próprio partido político; embora ele, alheio a tudo em sua volta, já se imaginava fazendo comícios em palanques e, finalmente, desfilando em viatura oficial após ter sido reeleito.
- Da próxima vez - pensava, - terei muito mais cuidado com aquilo que maquinarmos. Não me deixarei levar pela afoiteza e pela ambição de alguns companheiros!
Em breve suas viagens diminuíram, pois quase ninguém comparecia aos locais em que ele ia. Mesmo os militantes do seu partido já se negavam a viajar para locais distantes, onde eram hostilizados pela população.
Ele, a partir de certa ocasião, começou a se dar conta que sempre que dormia sonhava com a sua velha cela na prisão onde permanecera durante algum tempo.
Ouvia o barulho da torneira da pia gotejando, as palavras ditas pelos carcereiros, entre si, na hora da mudança da guarda, o canto longínquo de um galo que, todas as manhãs, vinha acordá-lo tão logo raiava o sol.
Lembrava-se, em seus sonhos recorrentes, de todos os momentos do dia na cela, de tudo o que fazia ali dentro, da agonia de sentir-se preso em um lugar pequeno e confinado como aquele. Recordava-se das vezes em que, deitado em sua cama, buscava compreender o que havia feito de errado, pois suas maquinações lhe pareciam tão inteligentes e feitas de modo a que todos os aspectos fossem, sempre, mantidos sob rigorosíssimo controle, que as chances de descobrirem, o que havia feito durante o período em que dava as ordens, eram remotíssimas.
Nestas ocasiões imaginava traições de velhos parceiros inconformados com a partilha do butim; conspirações internacionais de grupos empresariais incomodados com as concorrências fraudadas que montara, a troco de propinas; já que, em virtude das leis dos países em que aquelas empresas estavam sediadas, eram proibidas de pagar propinas em concorrências no exterior.
Imaginava, até, que alguma de suas velhas amantes, inconformada por haver sido substituída por outra mais nova e mais bonita, estava fornecendo informações a polícia internacional sobre tudo o que sabia, que vira acontecer e que ele mesmo lhe segredara, após uma noitada de bebida e de luxúria.
Assim, nos dias, meses e anos que se seguiram, sempre que sonhava, não conseguia tirar de sua mente a velha cela onde passara tanto tempo como recluso.
Fazendo uso da sagacidade que lhe era inerente, constatou, pois, surpreso, a explicação para aquele sonho recorrente:
- O Estado havia soltado o seu corpo; mas, finalmente, tinha conseguido prender a sua alma!
_*/ Economista e doutor pela Universidade de Madrid, Espanha. Membro doa Academia Brasileira de Defesa – ABD e do Centro Brasileiro de Estudos Estratégicos – CEBRES.
Li sem piscar o olho ... parabéns pela montagem imaginária do real ...
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