terça-feira, 3 de dezembro de 2019

330. O Projeto de Lei


Jober Rocha*



                              Na seção plenária daquele dia o vereador apresentaria um projeto de lei sobre o qual estava debruçado há vários meses. Era o seu primeiro projeto a ser apresentado, desde que fora eleito, e ele estava um pouco nervoso de falar perante uma plateia de políticos, muitos deles já em segundo ou terceiro mandato e com muito mais experiência do que ele, um simples novato.
                                       Notou que vários repórteres e fotógrafos se encontravam presentes no recinto da Assembleia Legislativa, bem como as câmeras de algumas redes de televisão estavam ligadas e transmitindo, ao vivo, para todo o país.
                                           Por alguns momentos veio-lhe à mente recordações do passado. Lembrou-se dos tempos de menino, correndo descalço pelas ruas da favela em que nascera e se criara. Pensou na vida dura dos pais trabalhando o dia inteiro para sustentar a família de dez pessoas, que incluía os avós paternos já idosos e acamados.
                                                  Recordou das inúmeras vezes em que passaram fome, das dificuldades que enfrentavam quando alguém adoecia, da distância em que ficava o colégio onde estudava e que tinha que ser vencida a pé todos os dias.
                                              Rememorou o dia em que a sua revolta por viver em situação tão precária e desumana cresceu tanto dentro dele ao ponto de prometer, a si mesmo e com lágrimas nos olhos, que quando crescesse faria tudo para melhorar a vida daquelas pessoas tão carentes da favela, como ele e toda a família, sem nenhum apoio por parte das autoridades, notadamente dos políticos.
                                             Hoje ele, como vereador eleito com grande quantidade de votos, se considerava uma autoridade e pretendia mudar aquele quadro que se acostumara a ver, tanto naquelas assembleias legislativas municipais, quanto nas câmaras de deputados estaduais, na câmara dos deputados federais e no senado; ou seja, parlamentares sempre legislando em causa própria ou no interesse de seus partidos e grupos, mas jamais no interesse dos eleitores.
                                             Ele buscara o caminho da política para tentar alterar aquela situação perversa, que sempre viu vicejar em todo o país e que tanto o deixava revoltado.
                                           Foi com passos trêmulos que se dirigiu para o local de onde exporia o projeto aos seus pares. Ao tomar nas mãos o microfone ficou alguns minutos calado, olhando o plenário na mais completa algazarra. Ninguém prestava atenção a ele; era como se ninguém se importasse com aquilo que ele diria, cada um cuidando da sua própria vida e dos seus negócios particulares. O plenário assemelhava-se a uma feira de bairro, onde cada político apregoava as suas mercadorias para aqueles que iam ali em busca delas. 
                                                  Aos poucos, como ele nada dissesse, foi se fazendo silêncio. O costume da casa era o de que qualquer político com projeto a apresentar, o fizesse mesmo no meio da balburdia reinante. Dias depois os assessores de cada parlamentar já teriam preparado seus resumos do projeto, em no máximo uma página, para serem lidos pelos respectivos chefes, com a proposta de aprovar, de modificar ou de rejeitar o mesmo.
                                                 Em determinado momento, todos os presentes olhavam mudos na direção dele. As câmeras de Televisão focavam-no e alguns fotógrafos tiravam fotos.
                                               Retirando de uma pasta o projeto que apresentaria, pigarreou junto ao microfone e começou:

                                                - Projeto de lei número 171/2019, de autoria do vereador fulano de tal.

                                                   “Todos os vereadores estão proibidos de apresentar projetos fúteis; inúteis; imorais; idiotas; visivelmente venais ou feitos sob encomenda de terceiros e em troca de dinheiro; prejudiciais ao povo; antipatrióticos; lesivos ao patrimônio público ou que beneficiassem diretamente o próprio vereador e/ou seus pares. Aqueles que o fizerem perderão, automaticamente, o mandato popular conferido por seus eleitores”.

                                                  Tendo lido o Caput do projeto, preparava-se para apresentar as justificativas do mesmo e, em seguida, formular sua normatização, quando começou o burburinho. De início um leve murmúrio. Aos poucos, foi engrossando e aumentando de tom até tornar-se um berro furioso partido das gargantas de todos os políticos presentes. A maioria deles com os rostos vermelhos, muitos espumando de raiva com os punhos fechados e levantados em atitude agressiva.
                                               Alguns atiravam garrafas, cheias e vazias, de água mineral em direção ao púlpito onde ele se encontrava. Muitos se preparavam para subir no local onde ele estava com a visível intenção de agredi-lo.
                                         Ele tentou se proteger dos objetos que lhe atiravam, mas um grampeador acabou lhe acertando na testa produzindo um ferimento do qual começou a brotar sangue. Em breve, em que pese alguns seguranças terem tentado fazer um cordão de isolamento ao seu redor, foi apanhado por alguns políticos mais afoitos e acabou levando vários socos e chutes.
                                             Saiu dali algemado a uma maca, em direção ao hospital municipal. Muitos políticos seguiram atrás da ambulância, xingando e proferindo ameaças de morte.
                                             Foi salvo graças à intervenção dos médicos municipais cujos salários haviam sido reduzidos pelos atuais políticos. Estes o conduziram diretamente para a sala de cirurgia, onde não era permitida a entrada de pessoas estranhas.
                                          Ficou internado naquele hospital durante alguns dias. Quando teve alta foi para casa restabelecer-se. 
                                        Logo que chegou a residência, ligou a televisão do quarto; tendo pegado, ainda, o finalzinho do jornal local. 
                                          Nele ficou sabendo que a assembleia havia aprovado, por unanimidade, um novo projeto de lei “que proibia aos vereadores apresentarem, para votação em plenário, quaisquer projetos de lei que proibissem os vereadores de apresentar projetos fúteis; inúteis; imorais; idiotas; visivelmente venais ou feitos sob encomenda de terceiros e em troca de dinheiro; prejudiciais ao povo; antipatrióticos; lesivos ao patrimônio público ou que beneficiassem diretamente o próprio vereador e/ou seus pares. Aqueles que o fizessem, perderiam automaticamente, o mandato popular conferido por seus eleitores”.
                                                 Ficou sabendo, também, que seu nome havia sido enviado para o conselho de ética (cujos membros respondiam a dezenas de processos na justiça) objetivando ser julgado por violação do código de ética da casa. A pena mínima, que propunha a maioria dos integrantes daquele colendo conselho, para o seu caso, era a cassação do mandato pela violação de cláusulas pétreas do regulamento da casa, ao propor que todos ali tinham a obrigação de ser honestos e produtivos...


_*/ Economista e doutor pela Universidade de Madrid, Espanha. Membro da Academia Brasileira de Defesa - ABD e do Centro Brasileiro de Estudos Estratégicos - CEBRES.

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