quarta-feira, 4 de dezembro de 2019

332. MEIN KAMPF*


 Jober Rocha**



                                  Meus caros leitores, resolvi redigir este texto após conversar com um médico durante uma viagem de ônibus,na qual, por influência das Moiras ou das Parcas, deusas da antiguidade greco-romana que regem os destinos humanos, tivemos a felicidade de viajar sentados em um mesmo banco e de podermos conversar sobre os mais variados temas, durante as horas em que durou a referida viagem.
                                            Em síntese, o que meu companheiro de viagem me narrou sobre a sua profissão e que busquei transmitir fielmente neste texto é o que relato a seguir:

                                            Sou médico, formado pela Faculdade de Medicina de uma Universidade brasileira. Além de todos os anos de ensino necessários para ingressar na universidade, possuo, ainda, mais seis anos de estudos de Medicina, fundamentais para me tornar médico, além dos anos de residência médica, necessários para poder exercer a minha profissão. 
                                              Não realizei mestrado ou doutorado em razão de haver casado logo após formado e, pouco tempo depois, já com um filho pequeno, necessitar ganhar a vida com o fruto do meu trabalho.
                                               Assim, sou obrigado, para poder trabalhar e sobreviver da profissão que escolhi (desde que em pequeno via meu avô, também médico, tratando de pessoas em seu pequeno consultório, perto de casa no bairro em que morávamos), a viver dando plantões de 12 ou de 24 horas em vários hospitais públicos da cidade.
                                               Meus pacientes são pessoas pobres e humildes, oriundas das vizinhanças do hospital ou mesmo de bairros mais distantes que, por não possuírem renda suficiente para pagar um plano de saúde, fazem uso do Sistema Único de Saúde; que, embora pago por todos os trabalhadores, apenas é utilizado por aqueles mais pobres e seus familiares, em razão das deficiências hospitalares e da baixa qualidade do atendimento.
                                                   Minha ocupação diária nos hospitais em que trabalho consiste, basicamente, em evitar que meus pacientes venham a falecer no meu plantão; já que, por não trabalhar todos os dias no mesmo hospital, ao retornar a este novamente os pacientes, normalmente, já serão outros. Alguns daqueles primeiros pacientes, que atendi da última vez, já terão tido alta, outros terão sido transferidos para diferentes unidades, outros terão falecido, etc.
                                                  Nas ocasiões em que encontro alguns pacientes, anteriormente atendidos por mim, muitas vezes, as condutas e prescrições já foram modificadas por outros colegas com os quais não pude discutir o caso; posto que, trabalhamos todos em regime de plantão e só nos encontramos, rápida e ocasionalmente, quando da entrada ou saída nos hospitais.
                                                     Por vezes, deparei com pacientes graves, de outras especialidades, esvaindo-se pelos corredores e clamando por um atendimento, inexistente naquelas ocasiões por falta de médicos das especialidades requeridas, em razão dos baixos salários oferecidos pelo hospital.
                                                      Nestas oportunidades, como eu também tinha os meus próprios pacientes graves e aquelas não eram as minhas especialidades, fui obrigado a me omitir. No início passava o dia todo com uma sensação de culpa; porém, com o tempo, aprendi a só me preocupar com o que me dizia respeito.
                                                           Trabalho em quatro hospitais distintos dando em cada um deles, semanalmente, plantões de doze e de vinte e quatro horas. Para poder trabalhar nestes hospitais fui obrigado a fazer parte de uma cooperativa de médicos e, nesta condição, não possuo vínculo empregatício com nenhum dos hospitais, não tendo, portanto, direito aos benefícios trabalhistas de férias, licenças, horas extras, décimo terceiro salário, férias remuneradas, etc., benefícios estes comuns a todos os demais trabalhadores. 
                                                        Por vezes, ao finalizar o plantão de vinte e quatro horas, em um hospital, já inicio um novo, também de vinte e quatro horas, em outro; pois o hospital não se interessa em saber de onde estou vindo, se estou descansado, se dormi e me alimentei suficientemente, etc. 
                                                   Nestas ocasiões, as poucas horas de sono que consigo desfrutar são obtidas, quase sempre, à noite (em horas de queda no movimento), em cima de uma maca suja de sangue ou em alguma cadeira abandonada em canto menos movimentado do hospital.
                                                      Durante os plantões de vinte e quatro horas, normalmente, não me alimento, já que trabalho sob pressão o tempo todo em virtude do excesso de pacientes; além da alimentação fornecida pelo hospital, em geral, ser abaixo da crítica, não despertando nenhuma vontade de ingeri-la.
                                                          Minha capacidade de diagnosticar, quase sempre, é limitada; já que, a maioria dos equipamentos que subsidiariam os diagnósticos (tomógrafos, aparelhos de ultrassonografia, raios x, etc.), bem como, laboratórios de análises clínicas e patológicas, raramente estão funcionando a contento. A minha capacidade de intervir também é prejudicada em razão da falta de medicamentos, material cirúrgico, material de enfermagem, etc.
                                                     Aqueles pacientes não atendidos no momento (posto que as administrações dos hospitais, normalmente, impõem senhas para o atendimento, já que o número de pacientes é superior ao da capacidade dos hospitais públicos em prestar-lhes assistência) voltam seus ódios, justificados, em direção aos médicos. Afinal, somos os únicos de toda essa cadeia de erros e omissões com os quais eles têm contato. Assim, descarregam sobre nós, por vezes com agressões verbais e físicas, todo o ódio que têm acumulado em razão das injustiças que sofrem desde muito e por toda parte.
                                               Não vêm que acima de nós, com responsabilidades infinitamente superiores às nossas na administração de todo esse Sistema caótico, escondem-se subchefes, chefes, superintendentes, diretores, subsecretários e secretários de saúde, prefeitos, governadores, ministros e presidentes (passando estes os seus dias em milhares de gabinetes atapetados, com ar condicionado e viaturas oficiais a disposição deles e das suas famílias), aos quais deveriam ser dirigidos os ódios acumulados pelos pacientes; posto que, a estas autoridades, como criadoras e administradoras deste Sistema, cabem as responsabilidades pelo seu gerenciamento.
                                                   Tais autoridades, entretanto, nunca são vistas pelos pacientes necessitados, que culpam a nós, os médicos, pelos seus sofrimentos e pelas mazelas daquele atendimento precário; já que nós estamos ali, todos os dias, em contato direto com eles. Esquecem-se de que, assim como eles, somos também vítimas desse Sistema de Saúde ineficiente e até mesmo criminoso.
                                           Muitos governantes ao anunciarem a construção de mais uma Unidade Hospitalar pensam, apenas, nas polpudas comissões pelo superfaturamento das obras e dos equipamentos, além de terem seus nomes afixados nas placas de inauguração à entrada dos hospitais, e não na contratação de médicos, enfermeiras e atendentes capacitados, em número suficiente e com salários dignos, que irão fazer funcionar aquela unidade e prestar serviços de qualidade aquelas populações enfermas.
                                              Ao término de mais um dia de plantão, quase sempre, sinto fortes dores de cabeça, só reduzidas com a ingestão de potentes medicamentos.
                                                     Minha mulher a vejo apenas nos fins de semana e tenho acompanhado o crescimento do meu filho à distância, pelo que ela me relata de suas atividades no colégio e em casa.
                                                       Tomo sempre muito cuidado no trato com os pacientes e seus familiares, para evitar qualquer mal entendido que, porventura, venha a ensejar uma ação judicial, cível e/ou criminal da parte deles, por algum suposto erro médico que, mesmo sem fundamento, irá me atormentar durante vários anos com inúmeras idas e vindas ao fórum para prestar depoimentos; além de despesas financeiras com a contratação de advogados (sempre caríssimos, em se tratando de causas cíveis e criminais). 
                                                Ganhando a causa sei que não poderei solicitar da parte perdedora o ressarcimento das despesas advocatícias que tive, nem pleitear danos morais. Perdendo a causa, sei que terei de indenizar a parte ganhadora, pagar os advogados e, talvez, perder o direito de exercer minha profissão; além de, quase sempre, ser obrigado a prestação de serviços comunitários, custear cestas básicas ou, até mesmo, passar alguns anos atrás das grades.
                                                     Em um Sistema de Saúde inteiramente errado, desde a faculdade que me formou (que, muitas vezes, não me deu o treinamento necessário para exercer a minha profissão), até o local público onde trabalho (que, muitas vezes, não fornece os meios necessários para o meu desempenho profissional), o único culpado sou eu, que, um certo dia no passado, tive a triste ideia de resolver estudar Medicina para poder ajudar os meus semelhantes.
                                                Esta, para aqueles que não sabem, é a minha guerra diária, na qual, no mínimo, tenho que matar um leão todos os dias e sou acusado de não preservar a fauna e de destruir o meio ambiente por aqueles que jamais viveram em uma floresta...

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¬_*/ Nota:  Mein Kampf, do alemão, é traduzido para o português como Minha Luta. É importante notar, todavia, a flexibilidade conotativa e contextual, na língua alemã, da palavra Kampf, que traz diversas possibilidades de traduções para o português. A palavra também pode ser traduzida, não só como luta, mas como combate ou, até mesmo, como guerra. Muitos médicos, certamente, traduziriam este texto como Minha Guerra...
_**/ Economista e doutor pela Universidade de Madrid, Espanha. Membro da Academia Brasileira de Defesa – ABD e do Centro Brasileiro de Estudos Estratégicos – CEBRES.

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