333. A Disputa pelo Poder e o Abuso de Autoridade
Jober Rocha*
Alguém já disse que a disputa pelo poder se assemelha a um casal dançando colado; quando a perna de um deles avança a do outro se retrai, para que a dança possa prosseguir seu curso sem interrupção.
Poder, segundo os dicionários, é a capacidade de deliberar arbitrariamente, de agir, de mandar e, também, dependendo do contexto, a faculdade de exercer a autoridade e a soberania.
Tem sido o poder estudado por filósofos e sociólogos, dentre outros pesquisadores. Para os primeiros "a organização do Estado e dos poderes coincide com um contrato social (ou Constituição) que substitui o estado anterior de Natureza, no qual dominava a força física e a lei do mais forte (ou o mundo cão ou o caos social). Quando todos detêm o poder, na realidade, este poder será inexistente, de fato e de Direito, no caos social que, sem dúvida alguma, irá imperar".
Por outro lado, "quando a corrupção existe e é intensa, passa a vigorar um poder paralelo ao poder oficial de Direito, poder este que será oposto, em sua totalidade, ao Contrato Social ou a Constituição do país em questão”. Acresce, ademais, que “a violência sempre ocorre quando se dá a perda de autoridade e do poder”.
Para alguns filósofos “o poder é menos uma propriedade do que uma estratégia e seus efeitos não são atribuídos a uma apropriação, mas, sim, a disposições, manobras, táticas e funcionamentos. O poder é exercido mais do que, de fato, é possuído. Não é o poder um privilégio adquirido ou conservado da classe dominante, mas, sim, o efeito conjunto de posições estratégicas adotadas”.
Relativamente ao campo da Sociologia, o poder é definido “como a habilidade de impor a sua vontade sobre a dos outros, mesmo quando estes resistem de alguma maneira”.
O poder, portanto, é acirradamente disputado pelos agentes participantes do processo de aperfeiçoamento da nossa civilização, chamada humana. Qualquer que seja o sistema de governo de um determinado país, a briga pelo poder sempre estará presente; tanto entre aqueles que dele já desfrutam quanto daqueles que dele querem desfrutar.
Abuso de poder ou abuso de autoridade, por sua vez, é conceituado como “o ato de se prevalecer de cargos para fazer valer vontades particulares”. No caso de um agente público, este “atuaria contrariamente ao interesse público, desviando-se da finalidade pública”.
No Brasil, a Lei nº 13.869, de 5.9.2019 (conhecida como a Lei do Abuso de Autoridade), em seu Artigo Primeiro, dispôs “sobre o direito de representação e o processo de responsabilidade administrativa, civil e penal, contra as autoridades que, no exercício de suas funções, cometerem os abusos regulados pela presente lei”.
Em seus Artigos Terceiro e Quarto a lei define o que constitui abuso de autoridade; isto é, “qualquer atentado contra: à liberdade de locomoção; à inviolabilidade do domicílio; ao sigilo da correspondência; à liberdade de consciência e de crença; ao livre exercício do culto religioso; à liberdade de associação; aos direitos e garantias legais assegurados ao exercício do voto; ao direito de reunião; à incolumidade física do indivíduo; aos direitos e garantias legais assegurados ao exercício profissional; ordenar ou executar medida privativa da liberdade individual, sem as formalidades legais ou com abuso de poder; submeter pessoa sob sua guarda ou custódia a vexame ou a constrangimento não autorizado em lei; deixar de comunicar, imediatamente, ao juiz competente a prisão ou detenção de qualquer pessoa; deixar o Juiz de ordenar o relaxamento de prisão ou detenção ilegal que lhe seja comunicada; levar à prisão e nela deter quem quer que se proponha a prestar fiança, permitida em lei; cobrar o carcereiro ou agente de autoridade policial carceragem, custas, emolumentos ou qualquer outra despesa, desde que a cobrança não tenha apoio em lei, quer quanto à espécie quer quanto ao seu valor; recusar o carcereiro ou agente de autoridade policial recibo de importância recebida a título de carceragem, custas, emolumentos ou de qualquer outra despesa; o ato lesivo da honra ou do patrimônio de pessoa natural ou jurídica, quando praticado com abuso ou desvio de poder ou sem competência legal; prolongar a execução de prisão temporária, de pena ou de medida de segurança, deixando de expedir em tempo oportuno ou de cumprir imediatamente ordem de liberdade; prolongar a execução de prisão temporária, de pena ou de medida de segurança, deixando de expedir em tempo oportuno ou de cumprir imediatamente ordem de liberdade”.
Vejo, portanto, que a preocupação dos legisladores, ao promulgarem está lei, se estendeu, apenas, à Expressão Psicossocial do poder nacional, nada mencionando com respeito ao abuso de poder nas demais expressões, como, por exemplo:
Na Expressão Política – quando os parlamentares, abusando de seu poder e autoridade como representantes do povo, legislam de forma contrária aos interesses deste ou em seu prejuízo;
Na Expressão Militar – quando os militares, abusando de seu poder e autoridade, em dissintonia com a legislação vigente, interferem nos demais poderes constituídos para destituir governantes, fechar o parlamento e envolver-se em guerra interna ou externa;
Na Expressão Econômica – quando grupos econômicos, abusando do seu poder e autoridade, buscam a dominação de mercados, a eliminação da concorrência e a geração de lucros exorbitantes em épocas de escassez de oferta ou de excesso de demanda;
Na Expressão Tecnológica – quando o Estado ou a iniciativa privada, abusando do seu poder e autoridade, fazem uso do desenvolvimento tecnológico de que são detentores e passam, ao arrepio da lei e de forma sorrateira e secreta, a invadir a privacidade dos cidadãos, a espionar suas atividades quotidianas e a interferir nas suas vidas particulares.
Suponho que, centrando a ação da lei na Expressão Psicossocial e omitindo o abuso de poder nas demais expressões, os legisladores objetivavam, principalmente, conter o Poder Executivo e se auto excluírem; ou seja, continuarem a se prevalecer dos cargos políticos que ocupam para fazer valer suas vontades particulares.
Na minha modesta opinião, creio que o maior abuso de autoridade é aquele perpetrado por parlamentares contra o quadro institucional vigente, ao criarem novas leis que suprimem direitos populares ou que os modifiquem para pior. Da mesma forma agem os parlamentares quando legislam para beneficiar uma minoria em detrimento da maioria e quando, com suas leis esdruxulas, interferem e colocam uma ‘camisa de força’ nos demais poderes, impedindo as suas respectivas autoridades de tomar medidas que se fazem necessárias e urgentes em benefício da nação.
O fato é que, na disputa pelo poder (que sempre existiu, mesmo nos regimes democráticos), o legislativo pode controlar através de suas leis o funcionamento do judiciário e do executivo, quando estes são, eventualmente, geridos por pessoas mal-intencionadas, temerárias e/ou corruptas. Todavia, os demais poderes não podem controlar um parlamento, eventualmente, mal-intencionado, temerário e/ ou corrupto, a não ser praticando o tão famoso e temido abuso de autoridade; pois, como já dizia Santo Agostinho: “A necessidade não conhece leis”...
_*/ Economista e doutor pela Universidade de Madrid, Espanha. Membro da Academia Brasileira de Defesa – ABD e do Centro Brasileiro de Estudos Estratégicos – CEBRES.
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