337. Le Grand Chef de Cuisine
Jober Rocha*
Ele pertencia a uma tradicional família de políticos do interior do país sustentada, desde os tempos do império, por verbas oficiais. Grandes latifundiários que eram, eles nada cultivavam em suas terras.
Fazia ele, assim, parte de uma minoria de agricultores políticos que se limitava a desviar para as contas que mantinha em bancos, no país e no exterior, os recursos que recebia do governo anualmente, cuja destinação original deveria ser para o plantio e a colheita de leguminosas.
A maior parte dos membros jovens da família nem estudava e nem trabalhava; ou seja, preparava-se para ocupar altos cargos na política. Os membros mais idosos da família já haviam encontrado seus caminhos como políticos, seja no próprio município, seja no Estado ou na Capital Federal.
Ele, tipo magro, pele muito branca, dedos finos e com longos cabelos negros, era bem diferente dos demais jovens da família. Diferia não só na aparência, mas, também, nos interesses e preferências: enquanto os rapazes da família, geralmente musculosos e queimados de sol, se interessavam por esportes, ele gostava de culinária. Enquanto as moças gostavam de rapazes e os rapazes gostavam de moças, ele preferia, sempre, a companhia de rapazes.
Em certa ocasião, participando do banquete comemorativo da posse do avô como deputado federal, na Capital da República, ele teve a oportunidade de saborear iguarias muito finas, elaboradas por um grande mestre da culinária francesa contratado a peso de ouro pela família, com a verba de representação que o avô, antecipadamente, recebera do governo.
Após o lauto jantar ele foi à cozinha para conhecer o artífice daquelas maravilhas que provara. O ‘Chef’ era um tipo alto, magro, branco como ele mesmo e de olhos verdes, sonhadores, com quem nosso personagem se identificou logo ao primeiro contato.
Convidou o ‘Chef’ para visitá-lo na casa funcional do seu avô, na Capital Federal, onde parte da família estava hospedada, o que foi logo aceito por este, revirando os olhos verdes e exclamando: - Oui, mon cherry!
A partir de então eles eram sempre vistos juntos, pelas ruas e pontos turísticos da Capital Federal e das demais cidades no entorno da mesma. Aos poucos, pelas mãos do ‘Chef’ e amigo, ele foi introduzido nos segredos da difícil e sofisticada Culinária Francesa.
Iniciou pelos pratos mais fáceis: Quiche Lorraine; Cassoulet; Coq au Vin; Ratatouille; Cuisses de Grenouilles; Fondue Savoyarde; Confit de Canard e Gratin Dauphinois.
Mais tarde passou aos pratos mais requintados: Limande à La Normande; Le Canard à L’orange; Poulett Marine et Grillé au Citron Vert, Poisson ao Court-Bouillon e Poulet à La Marengo; este último uma homenagem à Batalha de Marengo, travada contra os austríacos, em 1800, e vencida pelas tropas francesas comandadas por Napoleão Bonaparte.
Os pratos que preparava, sob a supervisão do ‘Chef’, eram apreciadíssimos pelo restante da família (ainda de férias na Capital Federal, meses depois daquela posse do avô), que já pensava até em abrir um restaurante na própria capital, onde os parentes e amigos, alguns com mandatos populares naquela cidade, poderiam saborear os requintados pratos que seriam elaborados e, evidentemente, pagos com recursos de diárias e de verbas de representação.
Em breve, contando com financiamentos governamentais obtidos mediante a intervenção do avô deputado, um sofisticado restaurante foi inaugurado pela família às margens de um belo lago na Capital Federal, com vistas para a cidade, para os ministérios e para o palácio presidencial.
O jantar de inauguração, ao qual compareceu toda a classe política, empresarial e do primeiro escalão governamental, foi, sem dúvida, noticiado previamente pelos principais periódicos locais.
Ele, naquela altura já sendo tratado como um novo ‘Grande Chefe de Cozinha’, fazendo uso da sua grande criatividade e querendo unir os costumes da culinária francesa às tradições regionais do seu país, superou-se na cozinha, fazendo adaptações, transformações e novas criações de sofisticadas receitas.
Assim é que ao iniciar-se o jantar, com todos os lugares ocupados pela fina flor daquela elite acostumada a comer bem às expensas de polpudas diárias recebidas dos cofres públicos, foram anunciados, em francês e na língua local, os pratos que seriam servidos.
O ‘maître’, em um perfeito francês e também na língua local, anunciou: - Mesdames et messieurs, les plats que nous servons maintenant sont comme suit (Senhoras e senhores, os pratos que nós serviremos agora são os seguintes):
• Soup de Calango Vert au Citron (Sopa de Calango Verde ao Limão);
• Bouillon Haricots (Caldinho de Feijão);
• Viande du Soleil au Beurre de Garrafe (Carne de Sol na Manteiga de Garrafa);
• Tarte de Seriguelas a L’anglaise (Torta de Seriguela à Inglesa);
• Chèvre Tripés a L’orange avec Phare de L‘Arrière-Pays (Buchada de Bode na Laranja com Farofa do Sertão);
• Queue de Boeuf aux Herbes de Provence Nord-Est (Rabada em Ervas Nordestinas);
• Bouillon Mocotó avec Cuisses de Grenouilles dês Vallées Humides (Caldo de Mocotó com Coxa de Rã dos Vales Úmidos).
Les desserts son (As sobremesas são)
• Macaxeira Jumbo Sauce Champagne (Macacheira Gigante ao Molho de Champanhe);
• Sucre Brun de Canne à Sucre (Rapadura de Cana).
Les apéritifs son (Os aperitivos são):
• Petite Femme de La Campagne (Caipirinha);
• Battre de Fruit de La Passion (Batida de Maracujá);
• Battre Arachide (Batida de Amendoim);
• Vin de La Région Rugueuse (Vinho do Agreste);
• Bière a La Pression (Chopp);
• Réfrigérants (Refrigerantes);
• L’eau Minérale Naturelle dês Sources de L’arrière-Pays (Água Mineral Natural de Fontes do Sertão).
Aqueles importantes convidados da corte, ao ouvirem a descrição, na língua local, dos pratos, das sobremesas e dos aperitivos que seriam servidos, começaram a se levantar e a caminhar em direção a porta de saída. Todos eles, com seus telefones celulares de quinta geração ao ouvido, chamavam os motoristas dos veículos oficiais que os serviam, diuturnamente, na Capital Federal.
O único e magistral erro do nosso ilustre personagem e ‘Grande Chefe de Cozinha’, tardiamente por ele percebido, foi o de querer que o ‘maître’ traduzisse os nomes dos pratos do francês, que ninguém entendia mas admirava, para a língua local, que ninguém admirava, mas que todos entendiam, alguns mais e outros menos; já que muitas daquelas autoridades possuíam apenas o primeiro grau.
Se o ‘maître’ tivesse apenas mencionado os nomes franceses dos pratos, das bebidas e das sobremesas, aquela teria sido, certamente, mais uma noite gastronômica maravilhosa na Capital Federal. Ao ouvirem os nomes em francês, sem entender seus significados, nem imaginariam que iriam comer calangos, rãs e mocotós.
Ao ouvirem os nomes dos pratos na língua local, todavia, sentiram-se todos ofendidos e desprestigiados em razão dos altos cargos que ocupavam na corte, com a apresentação, no jantar de inauguração de tão sofisticado restaurante, daqueles simples pratos de consumo popular dos habitantes do sertão. Muitas autoridades diziam até que providenciariam a cassação do alvará de funcionamento daquele estabelecimento, que se atrevia a servir Sopa de Calango e Coxa de Rã dos Vales Úmidos.
Ele, muito nervoso, gritava aos quatro cantos da casa, entremeando palavras francesas a língua local, afirmando que havia sido ultrajado, insultado, afrontado e desconsiderado por aqueles convidados que se retiravam.
Dizia que eles não haviam respeitado os direitos humanos que ele possuía de tentar fazer, a sua maneira, a união da culinária francesa à culinária do sertão; que haviam sido preconceituosos com uma minoria de mestres cozinheiros, inovadores como ele, que trabalhavam a serviço do desenvolvimento da gastronomia nacional e internacional. Tudo em vão. Os clientes foram todos embora profundamente ofendidos.
Assim é que meses depois daquele evento qualquer viajante, se deslocando ao serviço público, privado ou mesmo em visita de turismo à Capital Federal, que passasse pelas margens do belo lago veria o mato crescendo e as paredes descascadas em redor daquele que prometia ser um dos grandes restaurantes da cidade.
O Grande Chefe de Cozinha, tendo retornado à sua cidade natal, passou a ocupar seus dias na ociosidade, como sempre fizeram seus irmãos e primos, aguardando, finalmente, que chegasse a sua vez na fila da sucessão política local.
Uma ou outra vez, quando o desejo aumentava muito, ele ia para a cozinha e preparava uma suculenta ‘Viande Séchée avec de La Citrouille’ (Carne Seca com Abóbora), que saboreava com prazer, na companhia de alguns parentes mais chegados, trajando uma rica vestimenta de ‘Chef de Cuisine’, com a gola e os punhos bordados por famosas costureiras locais e calçando tamanquinhos importados do Marrocos.
_*/ Economista e Doutor pela universidade de Madrid, Espanha.
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