quinta-feira, 26 de dezembro de 2019


344. O Amigo da Onça


Jober Rocha*



                                    O Amigo da Onça consiste em um personagem criado, em 1943, pelo cartunista pernambucano Péricles de Andrade Maranhão. As características principais deste personagem, por ele criado, eram as de ser alguém satírico, irônico e crítico, aparecendo em diversos cartuns de Péricles desmascarando seus interlocutores ou colocando-os nas mais embaraçosas situações. O nome de Amigo da Onça, dado ao tipo criado, surgiu de antiga piada contada no Brasil, na qual dois caçadores conversavam em um acampamento:

— O que você faria se estivesse agora na selva e uma onça aparecesse na sua frente? - Disse o primeiro.

— Ora, dava um tiro nela! – Respondeu o segundo.

— Mas se você não tivesse nenhuma arma de fogo? – Falou o primeiro.

— Bom, então eu matava ela com meu facão! – Disse o segundo.

— E se você estivesse sem o facão? – Perguntou o primeiro.

— Apanhava um pedaço de pau! – Falou o segundo.

— E se não tivesse nenhum pedaço de pau? – Questionou o primeiro.

— Subiria na árvore mais próxima! – Respondeu o segundo.

— E se não tivesse nenhuma árvore? – Inquiriu o primeiro.

— Sairia correndo! – Disse o segundo

— E se você estivesse paralisado pelo medo? – Quis saber o primeiro.

Então, o outro, já irritado, retruca:

— Mas, afinal, você é meu amigo ou amigo da onça?


                                        Por extensão, Amigo da Onça passou a ser todo aquele indivíduo que gostava de armar ‘arapucas’ para seus amigos e interlocutores, dando-lhes um ‘xeque-mate’ ou colocando-os em uma ‘saia justa’ e divertindo-se com os efeitos que estas iriam neles causar. É justamente esta a situação de um velho amigo meu, cujo caso passarei a relatar a continuação.

                                  Depois dele haver passado o seu aniversário de sessenta anos sozinho, em casa e sem a presença de nenhum parente ou amigo (em razão do constante mau humor e da irritabilidade pelos quais era sobejamente conhecido de todos aqueles que com ele privavam), resolveu, no dia seguinte ao evento, como uma pequena vingança pessoal, à todos aqueles amigos, parentes e conhecidos que nem haviam se dado ao trabalho de lhe telefonar desejando votos de felicidade, enviar correspondência, pelos Correios, para quantos constavam do seu caderno de notas; bem como, mandar e-mails com aquele mesmo texto, aos demais com quem se relacionava e cujos endereços eletrônicos estavam nos seus arquivos na internet. 
                                            Uma destas correspondências chegou às minhas mãos, por sermos velhos conhecidos dos bancos escolares e nos correspondermos, eventualmente, trocando mensagens por e-mail; muito embora não nos víssemos pessoalmente há muitos anos. Assim, passo a reproduzir aos leitores, a mensagem que dele recebi, para que percebam até onde podem chegar a canalhice e a desfaçatez na alma de um mísero ser humano:

                                            Caro amigo Fulano,

                                          Foi, realmente, uma pena você não ter comparecido ao meu aniversário, transcorrido nos salões do conhecido e tradicional Hotel Copacabana Palace, alugados que foram aqueles caríssimos salões por amigos comuns (fazendo questão do anonimato e procedendo de forma sigilosa), desejosos de me proporcionar comemoração natalícia à altura das nossas velhas amizades. Assim, me forneceram aqueles benfeitores, gratuitamente, cerca de cinquenta e poucos convites para que eu os distribuísse entre os meus amigos e parentes mais chegados e você é um daqueles para quem eu enviei o convite pelos Correios; embora, infelizmente e, com toda a certeza, por motivo superveniente (como o tradicional atraso ou extravio do nosso Correio) não tenha podido contar com a sua presença. 
                                                A magnífica decoração dos salões (sim, pois eram três os salões alugados) estava inspirada em um tema bastante interessante; isto é, baseava-se na exaltação de virtudes como a cordialidade, a camaradagem, a estima, o apreço, a afeição e a ternura. Creio que escolheram o tema para retratar os sentimentos que os uniam a mim, e eu a eles, desde longa data.
                                           Imagino que o convite que lhe enviei pelos Correios tenha se extraviado ou que acabou retornando à agência, em razão do fato de você não se encontrar em sua residência por motivo de alguma viagem de estudos ao interior do país ou, até mesmo, ao exterior, coisa que sempre gostava de fazer segundo me recordo.
                                               O bufete não poderia ter sido mais bem escolhido pelos organizadores: Caviar, camarões, lagostas e frutos do mar variados; tudo isto, regado com champanhe Veuve Clicquot. Carnes de todos os tipos, saladas diversas e finas iguarias da cozinha francesa, saboreados pelos presentes nos intervalos entre um e outro gole dos melhores chiantes italianos, dos vinhos espanhóis de Rioja e dos franceses das regiões de Bordeaux e de Bourgogne. 
                                          As sobremesas eram tantas e tão variadas que, mesmo os convidados tendo saboreado, durante horas, aquele tão lauto jantar, ainda desfrutaram, por longo tempo, de todas aquelas doces iguarias preparadas pelos diversos ‘Chefs de Cuisine’ franceses.
                                               A orquestra, tocando durante toda a comemoração, possuía um repertório enorme de músicas da nossa época de rapazes. Lembra-se daquele tempo em que os casais dançavam juntos, enlaçados e de rostos colados? Pois foi exatamente isso mesmo que aconteceu. 
                                                        A maior parte das moças presentes, todas jovens e convidadas em uma sauna próxima pelos organizadores, acharam a maior novidade dançar de rosto colado com velhos sessentões como eu e os nossos contemporâneos que lá estavam. Eu, inclusive, presenciei várias trocas de cartões, com telefones e endereços, entre aquelas jovens e os velhos sessentões presentes. 
                                          Alguns casais, até mesmo, saíram juntos da festa com destino ignorado.
                                                    Recorda-se daquela jovem por quem você era apaixonado em sua juventude? Acho que foi a sua primeira namorada; pois é, ela estava lá, sozinha. Parece, ainda, a mesma pessoa que eu conheci na juventude, pois os anos não modificaram em nada o seu belo corpo nem o seu lindo rosto. Passou a noite toda sem dançar com ninguém. Quando lhe indaguei o motivo pelo qual também não dançava, respondeu-me que estava aguardando a sua chegada. Foi uma pena que você não tenha vindo e podido estar presente a tão inesquecível ocasião. Fiquei surpreso quando ela, depois de tanto esperar, deu-me um carinhoso abraço no pescoço e um beijo na boca, com lágrimas nos olhos e, suspirando, disse que queria ser a minha única companhia durante toda aquela noite.
                                                   Eu recebi tantos presentes, que estou com um quarto cheio deles aqui em casa. Muitos presentes não vieram com a indicação do remetente e, por esta razão, estou sem poder agradecer aqueles amigos e parentes que os enviaram. 
                                                Rogo a você, meu velho amigo, para que me diga qual o presente que me mandou e como estava embalado, para que eu possa agradecê-lo condignamente. Se ainda pretende enviar algum presente, mesmo atrasado, meu endereço atual é: Rua tal, número tal, CEP tal. 
                                                     Segundo ouvi de um dos organizadores, eles pretendem repetir este tipo de comemoração do meu aniversário durante os próximos anos, variando apenas o local onde a festa será realizada. Você, certamente, será convidado para todos os eventos (independente de não haver comparecido ou, mesmo, não tendo mandado presente neste meu aniversário que passou, se for o caso); como também, convidarei novamente, aquela sua bela e fogosa primeira namorada, que, após me proporcionar uma noite de luxúrias, acabou me convidando para um drinque, hoje à noite, em sua casa, ao qual não poderei faltar. Como sou um leal amigo dos meus amigos, direi a ela que estivemos juntos depois da festa e que você lhe havia enviado saudosas lembranças...
                                                   Aceite um forte abraço do seu velho amigo de sempre,


Beltrano.


_*/ Economista e doutor pela Universidade de Madrid, Espanha.



Nenhum comentário:

Postar um comentário