domingo, 25 de agosto de 2019

300. O Edital


Jober Rocha*



                                     Reza antiga lenda que em um reino distante, comandado por um monarca ‘macho alfa’, todas as medidas preconizadas ou as decisões tomadas pelo rei eram, logo em seguida, alvo de críticas virulentas por parte de alguns súditos, opositores do regime monárquico; bem como, da mídia local e internacional, interessada em ver o monarca substituído por algum outro soberano, mais razoável naquilo que respeitava a determinadas verbas com as quais muitos reinos cooptavam a mídia e que aquele monarca, em um gesto duro e moralizante, havia suprimido logo que colocara a coroa na cabeça.
                                                 Isto ocorria por que o monarca, sendo um macho alfa, dizia francamente tudo aquilo que pensava e que pretendia fazer, antecipando seus lances no xadrez da administração das coisas do reino.
                                               Certo dia, conversando com um velho sábio que vivia, por vontade própria, trancado na torre do castelo escrevendo ensaios, crônicas e contos, o monarca ouviu deste um interessante conselho: 
                                             - "Majestade, faça a coisa certa, não telegrafe suas intenções ou ações, de forma antecipada, para os súditos hostis e para a mídia inimiga. Ao invés de ser conhecido pelos súditos e perante a história como Rei Capitão I, ‘O implacável’, seja conhecido como Rei Capitão I ‘Paz e amor’".
                                                     O monarca, tendo ficado interessado naquele assunto, pediu ao velho sábio: - Fale-me mais sobre isso!
                                                   O sábio, então, continuou: 
                                                    - "Se vossa majestade usar de toda a sua franqueza, dizendo com honestidade aquilo que pode e o que não pode, muitos que desejam o que não pode e que desdenham daquilo que pode, ficarão contra vossa majestade. Da mesma forma, tendo cortado as verbas da mídia, que o rei anterior distribuía com tamanha prodigalidade, vossa majestade despertou a ira da classe que monopoliza as notícias e, portanto, tudo aquilo que divulgam é contra o seu reinado e as suas decisões".
                                                    - "Só vejo uma saída que, de tão fácil de ser implantada e com efeito tão imediato, poderia salvar vosso reinado e vosso nome perante a história".
                                                  O rei, imediatamente, chegou a sua cadeira mais próximo do velho sábio e, olhando para o interior da sala onde se encontravam, para certificar-se de que se achavam completamente sozinhos, perguntou-lhe baixinho, de modo a que só o velho ouvisse: - E qual é essa saída?
                                                       O velho, coçando o branco cavanhaque e acendendo o seu cachimbo, disse ao monarca: - "Convoque uma entrevista coletiva de imprensa e, em horário nobre, quando todos os súditos estiverem em suas casas, vá para a frente das câmeras e diga, sorrindo e com um ar bonachão, as palavras escritas nesta página". 
                                                      A seguir, o sábio entregou ao rei um velho pergaminho e exclamou: - "Isto é o que os antigos sempre fizeram e deu certo"!
                                                    Olhando aquele pergaminho o rei leu o seguinte texto:

                                            “Meus caros súditos e queridos e inestimáveis colaboradores da mídia. Reconheço que tenho sido muito duro com vocês e que tenho imposto medidas restritivas e controles severos sobre antigos costumes a que todos (ou grande parte de vocês) já estavam adaptados por fazerem parte da velha política de reinados anteriores”.
                                                    “Quero comunicar-lhes que estou, verdadeiramente, arrependido. A partir de hoje, qualquer súdito que tenha alguma queixa, sugestão ou reclamação sobre o meu reinado, poderá fazê-la. Da mesma forma, a mídia, em geral, continuará contando com as tradicionais fontes de recursos do reino, que, no passado, costumavam irrigar e abastecer as suas oficinas, os seus escritórios e as contas correntes de seus proprietários”.
                                                         "Para tanto, bastará que procurem uma repartição qualquer do reino e  leiam o edital que lá estará fixado, bem a vista de todos. Sigam corretamente os termos do edital e verão que todas as queixas serão levadas em consideração, todas as sugestões implantadas, todas as reclamações atendidas, todos os desejos realizados. Quanto a mídia, especificamente, busquem se adequar as novas normas do edital que os antigos recursos financeiros continuarão a fluir, inesgotavelmente”. 
                                                        “Meu reino é de vocês e meu reinado para vocês, como foram os anteriores do Rei Molusco I “Paz e amor’ e da rainha Anta I “Coração valente”.
                                                    “Boa noite a todos e durmam felizes e contentes, pois os velhos tempos estão de volta”!
                                                             Ao terminar de ler o texto, o rosto do monarca estava vermelho de raiva. Pensou em mandar enforcar, imediatamente, o velho sábio que zombava dele com aquele mentiroso e inexplicável texto.
                                                               Percebendo a reação do monarca, o sábio acrescentou: 
                                            - “Rei Capitão I, esqueci de mencionar que basta fazer constar no edital uma quantidade de documentos tão grande, todos com firmas reconhecidas e cuja validade seja de apenas uma semana, que a maioria dos súditos opositores não conseguirá obtê-los”.
                                            “Por outro lado, faça com que a entrega dos documentos seja feita, apenas, em uma única repartição, com um único funcionário para receber. Este funcionário deverá ser míope, hipertenso e diabético, além de possuir mais de 70 anos. Distribua, somente, três senhas diárias”.
                                               “As petições não terão prazo para serem respondidas, nem protocolos para que sejam acompanhadas pelos interessados. Com as chuvas e inundações que acometem o reino todos os anos, muitas repartições antigas são inundadas e os processos acabam sendo destruídos pelas águas”.
                                                “Assim, vossa majestade neutralizará a crítica daqueles admiradores dos antigos monarcas, (que desviavam e deixavam roubar as coisas do reino), dizendo que, no seu reinado, tudo continua da mesma forma como era nos reinados anteriores. As verbas públicas sempre estarão à disposição de todos, desde que cumpram o constante do edital. Da mesma forma, as reivindicações por mais drogas, por mais mordomias, por mais privilégios, por mais tolerância com os crimes e criminosos (de colarinho branco, de colarinho sujo ou descamisado), serão sempre levadas em consideração por vossa majestade, desde que as reivindicações sejam protocoladas de acordo com os termos do edital”. 
                                      “Enquanto isto, saia pelo país cumprimentando as pessoas. Vá as reuniões do Foro de São Pedro e diga que tudo continua igual ao que era antes. Que os delegados dos partidos comunistas e socialistas de países estrangeiros, para obterem os vistos de entrada no território do reino, deveriam, antes, ir as embaixadas e consulados do reino em seus países de origem e anexar, ao pedido de visto, a relação completa dos documentos constantes do recente edital (proclamado por vossa majestade), pegar suas senhas e aguardar serem chamados brevemente. Os delegados do foro que fossem súditos do reino, deveriam, também, obter suas autorizações na repartição específica, de acordo com o contido no mesmo edital”.
                                         “Vá, majestade, as universidades públicas do reino, aos congressos de campesinos sem terras, às reuniões de sindicalistas. Diga a todos eles que nada mudou em seu reinado. Tudo continua igual como era antes, desde que sejam respeitados os termos do referido edital. Que cada um entregue os documentos solicitados, pegue a sua senha e seja feliz”. 
                                      “Verá que, rapidamente, as queixas desaparecerão e a sua imagem pública mudará, como da água para o vinho” – finalizou o velho sábio.
                                                O rei se levantou da cadeira, agradeceu efusivamente ao sábio por aquela jogada de mestre (segundo a qual tudo fazia crer que as coisas seguiam igual àquilo que os súditos, ideologicamente contrários ao seu reinado, críticos de suas medidas saneadoras e acostumados aos ‘malfeitos’ dos reinados anteriores, desejavam; mas, tudo aquilo era impossível de ser conseguido, na prática, em razão da burocracia envolvida) e preparava-se para sair  da torre do castelo quando o sábio, reacendendo seu cachimbo que havia apagado, disse ao monarca: 
                                          - “Há, majestade, ia me esquecendo: contrate também um marqueteiro experiente, pois vossa alteza está precisando muito...”


_*/ Economista e Doutor pela Universidade de Madrid, Espanha.

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