290. Nega Maluca
Jober Rocha*
Nega-maluca é um bolo muito popular em Portugal e no Brasil. É feito com chocolate, farinha de trigo, açúcar e ovos. Normalmente, leva uma cobertura feita com chocolate e leite condensado, o denominado ‘Brigadeiro’, que se refere ao oficial da Força Aérea Brasileira e patrono da mesma, Marechal Eduardo Gomes. Apenas por curiosidade, a origem do nome "brigadeiro" está ligada à campanha presidencial do Brigadeiro Eduardo Gomes, candidato da UDN à Presidência da República, em 1946.
Consta que Heloísa Nabuco de Oliveira, jovem pertencente a tradicional família carioca que apoiava a candidatura de Eduardo Gomes, criou um doce, pouco diferente da versão atual, feito com leite, ovos, manteiga, açúcar, chocolate, e o denominou de brigadeiro (a patente do candidato a presidência de sua preferência) em homenagem ao mesmo. O doce, feito de leite condensado, manteiga, açúcar e chocolate em pó, inicialmente elaborado como uma forma de arrecadar fundos para a campanha presidencial, rapidamente, ganhou popularidade e se espalhou pelo resto do país. Como naquela época as festas dos correligionários e cabos eleitorais eram muito disputadas pela população brasileira, estes, logo começaram a chamar os amigos, durante e após a realização dos comícios, para irem comer o "docinho do brigadeiro". Com o tempo, o nome "brigadeiro" se tornou tão associado ao doce, que o mesmo passou a ser conhecido apenas como "brigadeiro". Entretanto, apesar do apoio recebido, na ocasião, Eduardo Gomes foi derrotado nas eleições; tendo a eleição sido vencida pelo General Eurico Gaspar Dutra.
Nega-maluca, por sua vez, também, foi o nome de uma música de Evaldo Ruy e Fernando Lobo, gravada pela cantora Linda Batista e sucesso no carnaval brasileiro de 1950. A letra da música começava assim: “Estava jogando sinuca, uma nega maluca me apareceu. Vinha com um filho no colo e dizia para o povo que o filho era meu (bis). Toma que o filho é seu, meu senhor, guarda o que Deus lhe deu, meu senhor” ...
Esta introdução objetivou, apenas, trazer à baila uma interessante e polêmica questão: A importância do chamado ‘amor de mãe’, na vida dos filhos, em detrimento do eventual ‘amor de pai’.
Qual dos dois, pai ou mãe, é aquele que, a seu juízo, meu caro leitor, detém, naturalmente, uma maior afeição (amor, bem querer, afeto, amizade, apego, benevolência, carinho) pelo filho? Qual dos dois recebe de volta, a maior afeição (amor, bem querer, afeto, amizade, apego, benevolência, carinho) por parte do filho?
A Religião já nos dá uma indicação no Livro 1 de Reis, capítulo 3, versículos 16 a 28 da Bíblia. Para aqueles que nunca ouviram falar do assunto, trata-se do relato do caso de duas mulheres que foram levadas à presença do rei Salomão.
O fato é que ambas tiveram bebês no mesmo dia e estavam juntas no mesmo cômodo. Na primeira noite após o parto, morreu um dos bebês, pois uma das mães deitara-se e dormira sobre ele. Essa mãe, então, trocou o seu filho morto pelo da outra, que vivia, sem que a sua companheira que dormia percebesse a troca. Na ocasião não havia ninguém que tivesse testemunhado o fato. A mãe verdadeira, do bebê que ainda vivia, já agora com a outra, acordou de madrugada para aleitar o seu filho, quando teve a desagradável surpresa de ver ao lado uma criança morta. Reconheceu logo que aquele não era o seu filho e pediu a outra que lhe entregasse o que estava com ela. Esta não o fez e o caso foi levado a Salomão.
Como ambas reivindicassem o mesmo filho, Salomão, então, determinou aos guardas que o dividissem em dois pela espada, dando uma metade para cada mãe. A mãe verdadeira implorou ao rei que mantivesse o menino vivo e íntegro, pois ela o cedia à outra mulher. Esta, no entanto, disse: "Nem meu, nem teu; que seja dividido!".
Salomão, a seguir, sentenciou: "Dai à primeira mulher o menino; não o mateis, porque esta é sua verdadeira mãe!".
Lembremo-nos, caros leitores, de que antigamente era comum ver, tatuada nos braços de muitos criminosos condenados e presos, a velha frase popular: - Amor só de mãe!
Os camburões (veículos de transporte de presos) costumavam, também, ser chamados pela população de ‘coração de mãe’; com isto, querendo o povo dizer que sempre caberia mais um prisioneiro, mesmo que o veículo já estivesse lotado.
As questões levantadas anteriormente, evidentemente, podem ser analisadas, no mínimo, sob três óticas distintas: a da mãe, a do pai e a do filho.
Sob a ótica da mãe, podemos considerar que o filho nascido foi um ser que ela (quase sempre por amor ao cônjuge, ao companheiro, ao amante, etc.) carregou durante nove meses no interior do seu corpo; ser este que, por força dos hormônios que ela possuía, caberia cuidar e proteger antes, durante e depois do nascimento.
Sob a ótica do pai, aquele ser nascido foi o produto de uma de suas incontáveis ejaculações, que, tendo frutificado; isto é, sido semeada em campo fértil, caberia, agora, cuidar para que vingasse e se transformasse em um indivíduo útil e produtivo (que o auxiliasse, mais tarde, em suas tarefas diárias, conforme tem ocorrido entre os povos desde o início da vida humana no planeta). A mãe, normalmente, não tem essa mesma preocupação e objetivo do pai. Ela, em virtude do seu ‘amor maternal’, quer que aquele ser a quem deu vida cresça, se desenvolva e seja feliz, independentemente de seu destino e daquilo que fará ao longo da vida.
Entretanto, na vida de um casal que mantenha diversas relações sexuais por semana, para um feliz espermatozoide conseguir fecundar um óvulo e se manter vivendo, milhões não conseguem, morrem e ninguém chora pelo destino deles. Portanto, para o homem ejaculador e engravidador (muitas vezes sem nenhum amor pelo cônjuge, companheiro ou amante; mas, simples desejo sexual) nada diferencia a sua ejaculação anterior e sem gravidez (fruto simplesmente do prazer), da presente ejaculação com gravidez (fruto simplesmente, do prazer).
Digo isto por que a mulher, quase sempre, é quem determina se quer e quando quer engravidar. O homem, simplesmente, é aquele que, na ânsia incontida pelo prazer, fornece o meio e as condições para que o referido evento se realize. Evidentemente, essa observação não se constitui em regra geral. Existem casos em que as coisas se passam de forma diferente. Todavia, a mulher, de uma maneira geral, ânsia pela gravidez e pela maternidade; o que nem sempre é o caso do homem, que recebe a notícia com surpresa e um certo receio.
Sob a ótica do filho que nasceu, por sua vez, é claro que ele sentirá, sempre, mais amor pela mãe. Afinal, quem permitiu que ele vivesse e se desenvolvesse foi ela, com seu leite e com seus cuidados maternais. O eventual pai só começa a fazer parte do universo do filho muito tempo depois. A mãe faz parte deste universo desde o seu primeiro dia de vida.
Assim, o vínculo mãe e filho é, inúmeras vezes, maior do que o vínculo pai e filho, notadamente na primeira infância. Posteriormente, este vínculo pode se alterar, em razão de fatores psicológicos e conjunturais explicitados a continuação.
Na primeira infância, principalmente quando a mãe não trabalha fora e passa a maior parte do tempo em casa, o contato do filho é maior com ela, que cuida dele e de seu bem-estar diário. O contato do filho com o pai se dá, apenas, durante a noite e por pouco tempo. Nada mais justo, portanto, que o filho seja muito apegado a mãe e menos ao pai, nesta fase da sua vida.
Na puberdade e adolescência, quando o filho passa a maior parte do tempo fora de casa, na escola, nos cursos, no clube, e começa a ter necessidade (em razão do efeito demonstração) de bens de consumo idênticos aos que seus amigos e companheiros possuem (bens estes adquiridos, apenas, com dinheiro, cuja fonte, quando a mãe não trabalha fora, é o pai), é natural que para o filho a necessidade da contribuição materna diminua e a paterna aumente. Assim, durante a puberdade e a adolescência, os filhos tendem a depender mais do pai, forçando, com isto, uma maior aproximação e maior afetividade entre eles.
Por outro lado, em muitas famílias onde a mãe não trabalha fora, a figura do pai (que sai pela manhã e só retorna à noite) é usada, sabiamente pela mãe, como um árbitro ou juiz que, ao voltar para casa, dará o veredito final sobre alguma estrepolia feita pelo filho. Este veredicto pode significar alguns dias de castigo, sem celular, sem idas ao shopping, etc. Só isto já seria suficiente para desenvolver, neste filho, um sentimento de temor (e, por vezes, até de aversão) para com a figura paterna.
Em famílias onde a mãe trabalha fora, estando os cônjuges juntos ou separados, as coisas, evidentemente, podem e devem ser diferentes. Nestes casos os pais são, quase sempre, substituídos pelos avós ou, então, os filhos são criados sozinhos ou por terceiros e à revelia dos pais, que imaginam controla-los diariamente através do telefone.
No primeiro caso, os avós, por conhecerem a rapidez com que a vida humana se esvai, tendem a ser excessivamente permissivos para com os netos, funcionando, quase sempre, apenas como guardiões e cuidadores; mas, não como pais educadores. Os netos, principalmente por isto, sempre adoram os seus avós.
No segundo caso, os filhos são criados por terceiros (empregados domésticos, professores particulares, etc.) e tendem a ser independentes dos pais, dispensando a eles, em geral, pouca atenção e carinho.
Em que pesem os conhecidos ‘Complexos de Edipo (segundo a Psicologia, uma fase do desenvolvimento psicossexual da criança do sexo masculino, que se caracteriza quando esta começa a sentir uma forte atração pela figura materna e passa a se rivalizar com a figura paterna) e de Electra (fase do desenvolvimento psicossexual das crianças do sexo feminino, conforme a Psicologia, em que a filha passa a se sentir atraída pelo próprio pai, disputando com a mãe a atenção daquele homem em casa), é evidente que qualquer criança necessita mais dos cuidados da mãe do que daqueles do pai; salvo algumas raras exceções. Não é por outro motivo que nas separações entre casais, as crianças, normalmente, fiquem com as mães por decisão judicial.
Como já disse alguém, o ser humano logo ao nascer torna-se fascinado pela mãe, ao contemplar seu seio de onde obtêm o alimento para seguir vivendo e ao receber seus cuidados, para continuar vivendo bem e confortavelmente. Nesta ocasião, ele ainda nem imagina quem terá sido o seu pai, embora conheça com bastante detalhes a sua mãe através do tato, do olfato, da audição, do paladar e da visão.
Isto até aqui mencionado, não impede que se desenvolva, mais a frente, entre pai e filho, muitas vezes, uma relação de amizade franca, sincera e duradoura, idêntica àquela desenvolvida, com frequência, entre a mãe e o filho desde o início.
Voltando, pois, ao título do presente texto, vejam que os autores da música Nega Maluca deixaram claro três coisas, comuns na moral da época (1950):
1. O pai não querer assumir o filho; posto que, este que estava sendo entregue pela mãe deveria ser mais um dos vários bastardos, indesejados, que ele eventualmente teria espalhados pela cidade e pelo país;
2. A mãe, que alegava esta paternidade, era tachada como uma ‘Nega Maluca’ pelo suposto pai sinuqueiro, visando descredenciar a sua acusação de paternidade (supostamente pelo fato de ser negra, pobre e louca) e permitir ao pai sair incólume daquele imbróglio. Lembremo-nos que, naquela época, ainda não existiam os exames de DNA e, portanto, o descredenciamento da parte acusatória era fundamental para a querela morrer no nascedouro; daí a pecha de ‘Nega Maluca’.
3. A mãe, sem condições de criar o filho em virtude da pobreza extrema em que vivia, em um gesto de amor pela criança (como o de uma das mulheres do episódio sobre Salomão, mencionado no início), tentava entregar a criança para que o verdadeiro pai a criasse.
Vê-se, portanto, segundo a letra desta velha música de carnaval mencionada (muito cantada, na ocasião, por traduzir a voz e o sentimento popular), que o amor da mãe pelo filho era maior do que o eventual amor do pai pela criança. A Nega Maluca preferia se ver separada do filho, entregando-o ao pai, do que vê-lo seguir sofrendo em sua companhia. Com isto, creio que as questões formuladas no início do texto estariam plenamente respondidas.
A música, todavia, não informa se o pai sinuqueiro, finalmente, aceitou o filho que a Nega lhe entregava; pois a letra completa diz, apenas: “Há tanta gente no mundo, mas meu azar é profundo, veja você meu irmão, a bomba estourou na minha mão. Tudo acontece comigo, eu que nem sou do amor, até parece castigo, ou então influência da cor”...
_*/ Economista e Doutor pela Universidade de Madrid, Espanha.
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