189. A Lenda da Virtude e do Vício**
Jober Rocha*
Conta velha lenda que o monarca de um reino muito antigo e distante, preocupado com a degradação da moral e dos bons costumes em suas terras, resolveu convocar seus principais conselheiros para que o ajudassem a descobrir como consertar tudo aquilo que ele, o rei, julgava estar acontecendo de errado na vida de seus súditos.
Acatando as recomendações e sugestões que lhe deram os conselheiros, o rei determinou a criação de uma instituição, de caráter secreto, cujo objetivo seria o de levantar templos às virtudes e de cavar masmorras aos vícios, sem que todos os demais súditos disto se apercebessem, evitando, assim, que pudessem ser contrários às idéias do monarca, que sabia o que era bom para o seu povo
Achava o bem intencionado monarca, que o problema estaria resolvido com a simples edificação daquelas obras públicas. O raciocínio, por detrás da ideia, era bem simples: construindo templos às virtudes, de mármore e com materiais nobres, amplos e bem decorados, todos os seus súditos passariam a frequentar tais templos, sempre que pudessem em seus momentos de laser e acabariam sendo virtuosos.
Cavando-se masmorras aos vícios, sob a terra, mal iluminadas, frias e apertadas, delas os súditos fugiriam; já que, teriam novos templos suntuosos, destinados às virtudes, para frequentar nas horas vagas. Assim, os vícios acabariam por terminar, já que as masmorras a eles destinadas ficariam totalmente vazias.
Pedreiros foram então selecionados dentre os melhores e mais puros homens do reino. Para obra de tal envergadura não se admitiram mutilados, deficientes, mulheres ou homens de má conduta, pois as obras tinham prazo certo para terminar e a qualidade requerida para os serviços a serem executados era a melhor possível.
Os trabalhos tiveram início, o tempo passou, o reino se ampliou, a população cresceu, o número de pedreiros se multiplicou, o rei morreu e foi sucedido por seu filho que deu continuidade ao projeto do pai.
O mesmo aconteceu com o filho deste, após a sua morte, e ele foi, tempos depois, sucedido por seu próprio filho, bisneto do antigo rei. No reinado do bisneto, os templos às virtudes já eram incontáveis, como também as masmorras aos vícios.
O bisneto, interessado em assuntos de ordem metafísica e muito preocupado com a crescente degradação da moral e dos bons costumes, que ainda ocorria em seu reinado na medida em que a população crescia, mandou chamar um súdito do reino vizinho, considerado por todos como grande sábio, para se aconselhar.
Este, após chegar e instalar-se em um dos quartos do palácio real, sentando-se ao pé do trono do atual monarca, falou com humildade:
- Majestade, a natureza humana sempre foi e sempre será a mesma. O ser humano reconhece, na teoria, que deve pautar sua vida pelas virtudes; entretanto, na prática, as injunções são de tal ordem que os vícios acabam por prevalecer, em muitas ocasiões.
Quando o ser humano está isolado, física ou espiritualmente, existe bastante lugar em sua mente e em seu espírito para todos os bons sentimentos. Basta, entretanto, que outro ser humano dele se aproxime para que aqueles espaços, que antes eram preenchidos pelos bons sentimentos, sejam, agora, ocupados por pensamentos de medo, de inveja, de temor, de desconfiança e de rejeição, com relação ao intruso.
Isoladamente, o ser humano é uma criação perfeita, já que é pleno de qualidades para consigo mesmo. Seus defeitos só aparecem quando está inserido em algum grupo. Dentro dos grupos é que surgem as competições, as desavenças, as ganâncias, as luxúrias, os ódios, as violências, as paixões, etc., e o ser humano pode, então, abrir as portas do seu coração e mostrar quem realmente é, permitindo que seus maus caracteres se manifestem.
Mesmo entre aqueles indivíduos considerados virtuosos encontraremos, sempre, estes sentimentos viciosos; como também, por sua vez, entre aqueles seres considerados viciosos encontraremos, sempre, sentimentos virtuosos, de amor, de amizade, de perdão e de compaixão.
Em qualquer grupo, portanto, ninguém é totalmente virtuoso, como ninguém é totalmente vicioso.
Não que isto se dê por vontade dos participantes do grupo, mas, sim, porque seus comportamentos obedecem a uma Lei de Distribuição Matemática.
O rei, ao ouvir tal assertiva, pensou logo que o velho sábio estava louco, mas dispôs-se a continuar ouvindo o que ele tinha a dizer.
O sábio, então, continuou:
- A maior parte dos fenômenos probabilísticos de natureza continua, e alguns de natureza discreta, tendem a seguir uma Lei de Distribuição conhecida por Função de Distribuição Normal. O seu uso é geral em todas as Ciências, bastando dizer que mais de oitenta por cento dos fenômenos da Natureza, possuem comportamentos com a característica dessa Distribuição Normal.
Os valores mais frequentes; isto é, os valores a que correspondem maiores probabilidades de ocorrer, se encontram em torno da média da variável considerada. Quanto mais afastados os valores estão da média, quer acima quer abaixo desta, menos frequentes são as suas ocorrências.
Esta interpretação da Lei de Distribuição Normal é coerente com o que se passa na maior parte dos fenômenos que sucedem na Natureza. Ora, as características dos fenômenos que ocorrem com os seres humanos, podem, também, ser representadas através de uma Função de Distribuição Normal.
Assim, frente a determinada situação com que se defronta um grupo (ou uma amostra, ou uma população), podemos dizer que sessenta e oito por cento dos indivíduos deste grupo (ou desta amostra, ou desta população), apresentará um comportamento que estará a menos de um desvio padrão da média da variável que se está pesquisando.
Noventa e cinco por cento dos indivíduos do grupo apresentará um comportamento que estará a menos de dois desvios padrões da média; e noventa e nove virgula sete por cento dos indivíduos, apresentara um comportamento que estará a menos de três desvios padrões com relação a média.
Com isto, quero deixar claro que os comportamentos extremos, totalmente virtuosos ou totalmente viciosos, frente a determinadas situações vivenciadas pelos grupos (pelas amostras, pelas populações), constituem exceções ao comportamento médio e, como tal, não são seguidos pela maioria das pessoas.
Isto ocorre, não porque elas assim o queiram, mas, porque seguem a uma Lei Matemática da Natureza que, invariavelmente, orienta o comportamento humano. Nenhum grupo pensa e age, unanimemente, de uma determinada maneira, sobre uma determinada questão; pois, sempre existirá uma média, uma moda, uma mediana e uma variância (todas elas medidas matemáticas) para qualquer evento que suceda em uma população.
A razão por detrás de tudo isto é o fato de a evolução humana se dar mediante um processo dialético, no qual são necessárias a tese e a antítese para que, finalmente, ocorra uma síntese.
Assim, entre a virtude e o vício, a humanidade sintetiza sua evolução. Alguns denominam esse processo de Principio do Contraditório, que vigora na Natureza e na vida social dos indivíduos: a verdade aparece através das contradições humanas e tudo na Natureza, que necessita de evolução, evolui de forma dialética. Logo, se não existirem contradições, a humanidade não evoluirá e a verdade não será conhecida.
Para aqueles que não acreditam naquilo que falei, cito outro exemplo deste comportamento matemático embutido na Natureza: Trata-se da Sucessão de Fibonacci, descoberta no ano de 1.200. Cada termo desta sequência é representado pela soma dos dois anteriores:
F(n) = F(n-1) + F(n-2), para n = 0,1,2,3,...
1,1,2,3,5,8,13,21,34,55,...
Esta sequência é encontrada em toda a Natureza: no comportamento dos átomos, na refração da luz, no crescimento das plantas, nas aspirais das galáxias, nas ondas do mar, nos fenômenos naturais em geral (como a razão entre o número de fêmeas e de machos em qualquer colmeia do mundo; na proporção em que aumenta o tamanho das espirais de um caracol; na proporção em que diminuem as folhas de qualquer arvore e na medida em que a sua altura aumenta; nas distribuições das estrelas em torno de um astro principal, em uma espiral de qualquer galáxia do Universo; na proporção entre a distância de várias partes do corpo humano, etc.).
Muitos acreditam serem estas as impressões digitais deixadas pelo Criador, como prova de uma inteligência superior por detrás de todos os fenômenos da Natureza.
Assim - finalizou o sábio - com base naquilo que relatei, esteja Vossa Majestade certa de que comportamentos totalmente virtuosos ou totalmente viciosos serão, sempre, considerados como extremos; enquanto a espécie humana continuar habitando a superfície do nosso planeta.
O normal dos integrantes desta espécie (aquilo que a maior parte fará, buscando a evolução) será, sempre, pautar a sua conduta por procedimentos que incluam virtudes e vícios, em doses consideradas aceitáveis pela moral e pelos bons costumes de cada época.
Ouvindo as declarações finais do sábio, o rei concluiu, então, que não havia necessidade de seu bisavô, de seu avô, de seu pai e dele mesmo, haverem excluído os mutilados, os deficientes e as mulheres, daquelas ações iniciais, que haviam tomado no passado, destinadas a levantar templos às virtudes e a cavar masmorras aos vícios.
Aquilo que haviam feito - pensou, enquanto se dirigia para os seus aposentos reais - tinha sido fruto, apenas, da ignorância e do preconceito, de cada tempo com os seus costumes.
- Ó Tempora!, Ó Mores! - exclamou o velho rei coçando a sua longa barba branca.
_*/ Economista e Doutor pela Universidade de Madrid, Espanha.
_**/ Conto
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